sexta-feira, 17 de junho de 2011

Xilógrafos de Juazeiro do Norte

Centenário de Juazeiro do Norte # 65

Para falar sobre a tradição da xilogravura em Juazeiro do Norte, reproduzimos um texto de Gilmar de Carvalho, intitulado exatamente "Xilógrafos de Juazeiro do Norte", que integra o livro Xilogravura: doze escritos na madeira, da Coleção Outras Histórias, do Museu do Ceará, publicado em 2001.

No texto, Gilmar de Carvalho fala um pouco da trajetória dos primeiros xilógrafos que trabalharam nas tipografias em Juazeiro, e também comenta as técnicas e as opções estéticas de alguns dos xilógrafos.



Xilógrafos de Juazeiro do Norte
Gilmar de Carvalho

A xilogravura é esta técnica milenar, cujas raízes se perdem no tempo e no espaço. Ressalte-se a permanência e a atualidade de uma manifestação que, segundo os historiadores, passa pela China, é retomada na Europa quinhentista que avança nos meios de reprodução da escrita, com iluminuras e emblemas e desemboca no Brasil três séculos depois.

Cumpre assinalar a defasagem entre o início da colonização e os primeiros prelos e fixar como um dos balizamentos dessa reflexão o ano de 1808 que teria trazido a implantação da Impressão Régia.

A partir daí a xilogravura tem um papel a cumprir, que ganha importância a partir do momento em que a imprensa se dissemina pelo país.

É quando a maquinaria obsoleta para os grandes centros se interioriza e chega ao Nordeste.

Aqui os estudiosos vão evidenciar a importância da xilogravura como ilustração, a partir dos cabeçalhos, o que passa a ser prática freqüente de uma atividade marcada pelo aporte do artesanal como forma de suprir as deficiências da maquinaria.

Em Juazeiro do Norte, para onde quero deslocar a reflexão que me proponho a desenvolver, o jornal chega em 1090, com “O Rebate”, órgão de propaganda e mobilização em favor da emancipação política do então importante povoado atrelado ao Crato.

Na consulta à coleção deste jornal, disponível na biblioteca do Memorial Padre Cícero, vamos encontrar as primeiras manifestações da xilogravura, na forma de charges políticas — o “Boletim Caricata” — favoráveis à emancipação que se efetivaria em 1911.

Este boletins, em número de quatro, na coleção consultada, (no formato 34,5 x 45,5 cm) estão encadernados com a edição de quatro páginas do semanário e constituem um marco que restou e do que poderia ter sido o primeiro exercício da xilogravura, sem referência à autoria, mas com certeza já recorrendo à mão-de-obra local, de notória habilidade.

Neste mesmo “O Rebate”, vamos encontrar os primeiros poemas e folhetos de Leandro Gomes de Barros e Cordeiro Manso, sob a rubrica “Lyra Popular”, sem dúvida um ponto de partida para a intensa produção e edição de folhetos que se desenvolveria nesta cidade, a partir da década de vinte, com José Bernardo da Silva.

Foi a partir da intensificação da atividade de editor deste alagoano de Palmeira dos Índios, nascido em 1901, que aportou em Juazeiro do Norte como romeiro e trabalha como vendedor ambulantes, que a xilogravura se impôs no Cariri cearense.

O vendedor de folhetos passou a publicá-los e a requisitar santeiros e artesãos da região para cortar as capas.

Num primeiro momento, João Pereira, Manoel Lopes e, principalmente, Mestre Noza criaram dragões, princesas, valentes e apaixonados das capas dos folhetos. Some-se a estes nomes Antonio Batista e Walderêdo Gonçalves e estaria fechado um primeiro ciclo.

A intensificação das atividades, com a aquisição de máquinas e a consolidação da casa editora, nos anos 40, coincide com a contratação de Damásio Paulo para gerenciar a gráfica, a Tipografia São Francisco. O gerente era xilógrafo, além de poeta, e conforme depoimentos de Expedito Sebastião da Silva, Manoel Caboclo e Antonio Batista que com ele trabalharam, teria sido um disseminador informal desta técnica, não porque desse instruções ou orientações, mas porque os improvisados discípulos se interessavam em vê-lo trabalhar e reproduziam sua arte.

O grande momento da xilogravura vem em 1949, quando José Bernardo da Silva adquire os títulos da folhetaria de João Martins de Athayde.

Muitas capas vieram gastas na matriz de metal e precisavam ser refeitas e foram na madeira. Demorariam de uma semana a dez dias para serem feitas nas clicherias do Recife ou Fortaleza, o que implicaria na perda de agilidade no processo editorial.

Os novos títulos ganhavam com as capas ilustradas por xilogravuras maior agilidade em função das demandas do mercado. E assim esta técnica atingiu sua maturidade e ápice, como a tradução visual de um relato, recorrendo aos elementos mais fortes que permitissem uma leitura do folheto ou do romance a partir dessa ilustração.

Os novos títulos eram as novidades que o mercado exigia e conviviam com os clássicos numa produção entre renovação e permanência, novidade e redundância de uma equação que pressupunha vitalidade e consumo.

Esta atividade editorial passou a dar sinais de crise a partir dos anos 60, o que coincide com a seca de 1958, as propostas de industrialização do Nordeste, a chegada da televisão e a crise do papel, já no período autoritário.

Convém ressaltar que, além de José Bernardo, que tinha um filho xilógrafo — Lino — e que depois veio a ter o neto Stênio Diniz, um dos grandes nomes da xilogravura brasileira, se estabeleceu na cidade a Tipografia Lima.

Fundada em 1952, por João Ferreira de Lima, em sociedade com Manoel Caboclo, era uma forma de o autor do “Almanaque de Pernambuco” ter seus trabalhos impressos com custos mais baixos e cumprimentos dos prazos.

No início dos anos 60, os sócios se apartaram, ficando o Caboclo com o parque gráfico e com o saldo de iniciação de seus filhos Zé Caboclo e Arlindo Marques da Silva na arte da xilogravura, por conta de seu ex-impressor Antonio Batista.

Foi nesse período de crise e de impasse entre a precariedade artesanal e a antevisão modernizadora da industrialização defendida pela Sudene, pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e pelas agências do governo estadual, além da Universidade do Ceará, que a xilogravura passou a ganhar nova conotação e importância.

A propostas era retirá-la do contexto das capas dos folhetos e dar-lhe uma dimensão mais ampla.

Em 1961, a Universidade do Ceará, então dirigida por um reitor — Martins Filho, que na juventude havia sido tipógrafo no Cariri cearense, onde nascera —, criou seu Museu de Arte. A ideia de trabalhar com a xilogravura passou da teoria à prática.

A interferência se deu em dois sentidos: na garimpagem dos tacos de madeira, adquiridos para formar um dos maiores acervos brasileiros desta área, com mais de 400 matrizes e na encomenda de trabalhos novos.

Este ímpeto colecionador da Universidade ainda hoje não foi compreendido e assimilado por alguns gravadores e tipógrafos, mas essa interferência, de certo modo autoritária, preservou um verdadeiro tesouro da criação popular, apesar das objeções que possam ter levantadas em relação aos equívocos da atitude, da mesma maneira que o policial Nisard teria proporcionado a preservação da Biblioteque Bleue...

As peças foram literalmente museificadas e retiradas do circuito popular onde cumpriam uma função estética e mercadológica, em termos de embalagem.

Uma segunda interferência se deu na encomenda dos álbuns. São desta época o “Apocalipse”, de Walderêdo; a “Vida de Lanpião (sic) Virgulino Ferreira; e “Os Doze Apóstolos”, de Noza; “A Vida do Padre Cícero”, de Lino, e “As Aventuras de Vira-Mundo”, de Zé Caboclo, todos do acervo de Museu de Arte da UFC.

Foi quando Sérvulo Esmeraldo encomendou a Noza sua Via Sacra, publicada na França, por Robert Morel, em 1965.

Neste contexto, a Universidade do Ceará organizou exposições de seu acervo xolográfico em Paris, Barcelona, Basileia, Madri, Viena e Lisboa, fechando um périplo europeu de legitimação e de propaganda da Instituição.

O formato álbum tinha o papel de disciplinar a produção popular, o que facilitava sua assimilação pelo mercado de arte.

Havia uma padronização do tamanho, uma serialização, melhoria do acabamento, capa. O popular ganhava uma embalagem atratente. Mas em nenhum instante se cogitou da inutilização das matrizes, como na gravura erudita.

Uma nova concepção foi vendida ao artista popular e a Universidade adquiria as matrizes e antes fornecia a madeira e pagava para que o artista produzisse as peças.

Em relação aos moldes em que se dava a encomenda, há uma lacuna já que não consegui entrevistar os intermediários, com exceção de Sérvulo Esmeraldo, que forneceu ao Mestre Noza uma Via Sacra massiva, reprodução banalizadora da iconografia oficial da Igreja que ele transformou em um trabalho seminal para a xilogravura de todos os lugares e de todos os tempos.

Com exceção de Esmeraldo, não consegui pistas para saber se era dada sugestão de motivos, quantidade e tamanho dos tacos e não posso precisar até que ponto eram fornecidas referências aos xilógrafos.

O “Vira-Mundo”, de Caboclo, revela forte influência da linguagem dos quadrinhos, enquanto “A Vida do Padre Cícero”, de Lino, tem pontos de contato com topografias antigas do padre do Juazeiro e Walderêdo traduz para o contexto popular nordestino influências eruditas europeias. Noza reproduz um mundo só seu, de perfis egípcios e economia de detalhes.

Uma consequência da interferência da Universidade passou a ser a autoria. O trabalho que antes era anônimo passou a ter o seu titular, que representa outra subversão às normas populares e sua submissão ao repertório culto.

Uma peculiaridade dessa produção era a prevalência da arte sobre o engenho, da habilidade sobre a inventiva, a ponto do xilógrafo não temer retomar o que já havia feito antes e reproduzi-lo quase da mesma maneira ou com quase imperceptíveis diferenças ou nuances.

Assim é possível encontrar várias capas para “O Romance do Pavão Mysterioso”, variações em torno da “Intriga do Cachorro com o Gato”, da “Chegada de Lampião no Inferno” ou da “Perseguição de Lampião pelas Forças Legais”, gerando um problema de autoria proporcional ao que já existia no campo da literatura de folhetos. Os exemplos se avolumam e não se pode falar em plágio quando não havia a cobrança por uma autoria assumida. O trabalho era do artesão. A xilogravura era utilitária. O status de obra-de-arte vem por conta dessa intervenção de instituições como as Universidades e das figuras dos marchands (Ranulpho, Baccaro, Pacchelo, no caso de Noza).

Na década de 70 surgiram álbuns esparsos, como a “Retirada”, de Stênio Diniz e Mariza Viana, uma “Via Sacra” de Abraão Batista e outra de Stênio Diniz.

A xilogravura parecia um refluxo, como o folheto ao qual ela serviu durante tanto tempo, e eis que se pode falar em ressurgimento a partir do final dos anos 80.

O formato é o do álbum. As instituições envolvidas são a UFC, o SESC, a Universidade Regional do Cariri (URCA), o IPESC, agências de publicidade, a Teleceará e a Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará. Pode-se contabilizar 13 álbuns entre 1990 e 1993, utilização de xilogravuras nas capas de livros, convites, várias exposições organizadas e até uma individual de José Lourenço, na Pulitzer Art Gallery, em Amsterdã, a convite do galerista Jack Visser.

Parece comprometida uma avaliação dessa retomada, mas evidencia-se uma busca de inserção no mercado, a perseguição de uma originalidade, a rejeição à cópia e a insistência na autoria.

Em relação à temática, os motivos religiosos permanecem fortes, prevalecendo a figura mítica do Padre Cícero como motivo de algumas séries, para não deixar de falar nas “Vias Sacras”, nos “Sete Pecados Capitais” e no filão esotérico que nos deu as cartas ao tarô e os signos do zodíaco. O eterno retorno à mitologia regional, evidencia-se com a recorrência a Lampião e a Luiz Gonzaga, por exemplo. Uma reflexão sobre o próprio ofício informa a série “Lira Nordestina”, nome que a Tipografia São Francisco ganhou nos anos 80, ao ser adquirida pelo Governo do Estado do Ceará. E a ecologia foi incorporada pela insistência das organizações alemãs que passaram a trabalhar em Juazeiro do Norte e a organizar exposições no circuito europeu e pelo álbum “Sertão”, de Cícero Vieira.

Jeová Franklin, em artigo constante da “Antologia da Literatura de Cordel”, do BNB, tentou estabelecer parâmetros para o que chamou de Escola de Caruaru, com a figura mais solta, recortada do fundo e a de Juazeiro do Norte mais apegada ao detalhe e trabalhando a madeira por igual, ao ponto de Abraão Batista ter dado a denominação de “paralelos existenciais” a esse tipo de corte a que ele recorre exaustivamente para não deixar claros e carregar, de maneira barroca ou expressionista, a xilogravura de significações.

A colocação é controvertida no que se refere à compartimentação das escolas, mas merece uma reflexão mais detida porque levanta pistas sobre os dois principais polos desta manifestação no âmbito nordestino.

Em relação à técnica, se os antigos recorriam a hastes de guarda-chuvas, quicés, canivetes e lâminas de barbear partidas ao meio, existe a mesma inquietação entre os contemporâneos no improviso de pregos, bisturis e fragmentos de serras de cortar pães, compensando ou superando a falta de goivas, formões, buris e outros utensílios aos quais eles continuam sem acesso.

Estabelecidas distinções e buscados nexos, onde estaria a contemporaneidade dos novos xilógrafos? Se insistem na temática religiosa, se continuam com precariedade de meio, se dispõem de um papel nem sempre de qualidade, se não contam com um prelo que assegure a qualidade das cópias?

O novo estaria numa visão de mundo que possibilitaria outras leituras e a absorção de influências massivas, por exemplo, e uma atitude não tão ingênua diante das regras do mercado, da função social da arte, do papel do artista que eles sabem que são.

Eles não têm apenas habilidade, eles reinventam mesmo quando partem da fotografia (caso da “Lira Nordestina”, de José Lourenço) ou de uma iconografia clássica / tradicional para superá-la (como Francorli fez com os “Santos do Povo”).

Intuitivamente, numa visão pessimista, eles jogam com o que seria um design matuto e ocupam o espaço em função de uma estética que digeriram.

A informação é que os diferencia. Se Antonio Batista (o Relojoeiro) não tem o menor pudor em mostrar os livros de história sagrada que copia, como uma permanência do antigo xilógrafo, Francorli tem o toque de que deve ambientar os santos do seu retábulo na realidade que vive e José Lourenço, mesmo quando parte da fotografia, cita, amplia, recorta, faz com que sua visão prevaleça, não caindo em um hiper-realismo documental.

Se Abraão geometriza no “Tarot do Sol”, encomenda de uma agência de publicidade que revisita aos arcanos maiores em uma proposta iniciática, Stênio delira surreal, em viagens outras, como no “Caldeirão”, experiência de uma fazenda socialista desmantelada em 1936.

É o fosso entre trabalho manual e criação que eles superam, dosando apego às raízes e um faro do que seja Indústria Cultural.

Continuam com a tipografia como referência e são vigorosos porta-vozes de um novo tempo, com propostas de uma nova xilogravura, que dê conta da dinâmica social e não caia no imobilismo de uma visão anacrônica e passadista.

Eles não vivem desta atividade: são tipógrafos, relojoeiros, eletrotécnicos ou professores universitários, mas não são diletantes.

A xilogravura para eles é uma forma de expressão e um ofício que precisa ser mentido porque transgridem a tradição, avançam na sintonia com nosso tempo e dão ou tentam dar conta das perplexidades, crenças e anseios do tempo que vivemos.

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Texto [de Gilmar de Carvalho] apresentado no evento Xilogravura – do cordel à galeria, promovido pela Fundação Espaço Cultural da Paraíba, no seminário Literatura de cordel: Memória, Vozes, Imagens, dia 4 de novembro de 1993, em João Pessoa (PB), lido no auditório do MASP (Museu de Arte de São Paulo), em 31 de agosto de 1994.

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