Centenário de Juazeiro do Norte # 76
Na postagem# 65 do Centenário, disponibilizamos o texto "Xilógrafos de Juazeiro do Norte", de Gilmar de Carvalho, sobre a tradição da xilogravura na cidade.
Naturalmente, essa tradição do trabalho dos xilógrafos anda lado a lado com a tradição da literatura de cordel e, consequentemente, com a produção desses impressos em uma tipografia especializada.
Para falar sobre essa parte tipográfica, disponibilizamos outro texto do livro Xilogravura: doze escritos na madeira, intitulado "A última tipografia", que fala sobre o histórico da Tipografia São Francisco, fundada por José Bernardo, que atualmente é a Lira Nordestina. Como o texto é de 1993, naturalmente é finalizado relatando a situação daquela época.
____
A Última Tipografia
Gilmar de Carvalho
O range-range onomatopaico nos dá a dimensão do presente. Um herói ladino escapa das páginas amarelecidas de um folheto e nos conduz à dimensão do sonho. Estamos na última tipografia de cordel.
Em 1926, José Bernardo da Silva chegava a Juazeiro do Norte. Atraído pela figura mítica do Padre Cícero, que o abençoou, e motivado pela esperança, ficou de vez na cidade. Vendia ervas, raízes e quinquilharias no circuito das festas religiosas.
Como levava folhetos na bagagem, resolveu imprimi-los. A edição popular dava mostras de vitalidade no Nordeste brasileiro. As máquinas que se tornavam obsoletas para os grandes centros se interiorizavam. Leandro Gomes de Barros, em Recife, e Chagas Batistas, na Paraíba, desempenhavam o papel de organizadores deste corpus e animadores desta atividade.
O personagem abre a porta da tipografia e a página, até então fechada, de um romance de aventura. Astuto, remexe a caixa de tipos. O tipógrafo puxa a gaveta, senta-se no banco e começa a dar forma a uma história, a este texto que está sendo esboçado. As letras retiradas formam um quebra-cabeças. Caixas altas e baixas se revezam. É trabalho e jogo. O tipo que falta é improvisado. Ou deve ficar a lacuna?
José Bernardo passou a integrar o rol dos editores de cordel. No início, timidamente, recorria a gráficas locais e da diocese de Crato. A receptividade foi a melhor possível. O folheto vivia seu auge. O leitor queria os clássicos e a novidade dos lançamentos. O pregão se fazia nas feiras. A história era contada para se criar uma expectativa, como estratégia de sedução. Até que o vendedor parava e deixava plateia intrigada. Era preciso comprar o exemplar para saber o final do relato. E qual o desfecho desta reconstituição da trajetória da última tipografia?
No final da década de 30, José Bernardo comprou caixas de tipos e sua primeira impressora. A máquina, manual e barulhenta, era apelidada de “quebra-pedras”. Porque marcava com sua engrenagem emperrada o ritmo da atividade. Pontuava de ruídos rascantes os dias arrastados de Juazeiro do Norte.
O range-range onomatopaico contrapunha-se ao planger dos sinos. Ao fundo, o monocórdio das ladainhas e os passos da procissão. Confundia-se com a matraca. Expressava a mesma crença, em outros códigos. Tecia um grande texto ancestral renovado dia após dia.
José Bernardo montou a tipografia como uma extensão de sua casa: o mesmo espaço de amor e tensão. A mulher e os filhos trabalhavam no acabamento. Dobravam os folhetos. A máquina de costura antecipava a colagem da capa.
Aos empregados se acenava com estes valores de grande família. Lá eles almoçavam, tomavam café, nos instantes de folga, e de lá saíam, escorregadios, para a cachaça, no final do expediente que não tinha hora para acabar. E podia virar as noites sertanejas pontuadas por monstros que batiam portas, princesas em suspiros de amor e valentes que duelavam nas páginas impressas.
A estrutura era da cooperação medieval de ofícios: a tipografia como o local de iniciação nas artes gráficas. Aprendizes varriam aparas de papel, distribuíam tipos e tomavam contato com as etapas do processo. Operários se aplicavam na composição, paginação, revisão, impressão e acabamento. A figura do mestre, como uma sombra enérgica e doce, dava ordens e aconselhava. E a tipografia escrevia sua própria história.
O clima era de euforia. José Bernardo montara sua rede de comercialização, com agentes e revendedores. E já era um nome da edição de folhetos quando adquiriu, em 1949, os direitos da publicação do acervo de João Martins de Athayde, o maior do Brasil. Deslocava-se para o número 263 da rua Santa Luzia o foco da produção popular. Foi um salto de qualidade e quantidade. O cordel ganhava dimensão de negócio.
Com os originais chegaram as capas em zincografia. Os leitores estavam familiarizados com estas imagens que satisfaziam a necessidade do sonho. O analfabetismo nunca foi entrave à difusão deste produto popular que se debatia entre o conformismo e a transgressão. Alguém lia para um público atento e participante. O personagem esperto fugia outra vez das páginas e bisbilhotava o sarau. Um cheiro forte de cigarro artesanal, a espontaneidade de uma observação, um muxoxo de desprezo e a torcida por um final. O receptor não queria ter suas expectativas frustradas. Não é verdade que a gente gosta de ler o que já conhece porque tem o domínio do relato?
O papel chegava do Recife, junto com a tinta e os novos tipos. A “quebra-pedras” foi substituída por maquinaria menos arcaica que imprimia dezesseis páginas de uma vez. Novos revendedores agilizavam a comercialização, além da venda pelos Correios. No balcão da tipografia, as gavetas eram etiquetadas com os títulos mais procurados: “A Morte dos Doze Pares de França”, “Roberto do Diabo”, “O Romance do Pavão Misterioso”, “João Grilo”. O depósito se escondia no sótão. As tiragens, significativamente grandes, davam conta dos pedidos. E a tipografia lançava seus catálogos, incorporando novos títulos. A tradição não podia prescindir da novidade.
José Bernardo atendia às solicitações do público que conhecia tão bem. E aproveitava as lacunas da imprensa que chegava com atraso ao interior ou não abria espaço para o que este leitor queria saber, encomendando folhetos jornalísticos. Surgiram vocações dentro da tipografia. Nomes expressivos saíram de lá. O compositor atento e o impressor loquaz deram vazão á veia poética.
Rima e métrica transformaram a notícia em poema. O personagem sabido abre uma gaveta e não encontra nada. Foi tudo vendido ou não se publica mais aquele folheto? Onde se perderam essas histórias? Em que fio se enredam as narrativas que são tecidas agora?
Quando os clichês de zinco demoravam a chegar das capitais, as capas eram encomendadas aos artistas de Juazeiro. Que passaram a cortar na madeira dragões, cangaceiros e beatos, reforçando-se uma iconografia na ponta do canivete, na haste do guarda-chuva e na faca de cortar fumo. Nosso personagem astuto começa a ganhar contorno nos sulcos da umburana. As veias da madeira se enchem de tinta. Tira-se a cópia da triste figura que ri, debochando de nossa perplexidade. E tem consciência de que um dia vai se perder numa gaveta e amarelecer como o papel. Mas pode ressurgir na memória e se tornar álibi para novas histórias.
Homens e máquinas trabalhavam mais e mais. Os folhetos se acumulavam. Os leitores esperavam, ávidos, pelos lançamentos. As manufaturas da região passaram a utilizá-los como suportes de mensagens publicitárias: cachaças, cigarros, doces e fogos de artifícios. Cujos rótulos, cortados pelos mesmos xilógrafos das capas, eram impressos na mesma Tipografia São Francisco.
E porque era preciso rodar as máquinas e ocupar todos os nichos do mercado, os poetas se tornaram astrólogos. E traçaram horóscopos prevendo o futuro. Teriam previsto o declínio da tipografia? E os editores incorporaram a seu acervo os almanaques, tesouros da sabedoria popular que difundiam no sertão rudimentos de ciência. José Bernardo imprimiu o mais importante deles: o “Almanaque de Pernambuco”, de João Ferreira de Lima.
Padre Cícero, que abençoara a tipografia, tornara-se personagem. Um bando de cangaceiros fazia vigília nas noites de insônia. Em volta da mesa, as pessoas trabalhavam e contavam histórias. Por isso não viram o tempo passar. AS máquinas deram os primeiros sinais de emperramento. As caixas de tipos estavam incompletas. As traças ameaçavam as folhas de papel. As histórias começaram a se apagar da memória.
No final dos anos 50 falava-se muito em desenvolvimento. O progresso significava máquinas novas e a manufatura passava a ser índice de atraso. Acenavam com fábricas e chaminés. Números e índices se transformaram em gráficos. O rádio se vulgarizava com o transistor e amplificava pelejas e repentes com o cantador a narrar outras façanhas. Nosso personagem tinha direito a voz, anasalada. Com a televisão ele ganhava um rosto e ação. Só que é outro imaginário com que trabalha a mídia eletrônica. As vendas de folhetos despencavam A rede de comercialização se esfacelava. Os poetas teimosos ainda versejavam. E os xilógrafos imprimiam imagens da Via Sacra, cenas da História Sagrada e estampas de Padre Cícero.
Em 1972, José Bernardo morreu sem preparar um sucessor. A empresa familiar dava sinais de decadência. A filha Maria de Jesus tentava injetar algum ânimo. Mas não estava preparada para tocar a tipografia. Os tempos mudaram, as relações sociais se deterioravam e o mercado se retraía. Tentava-se, desesperadamente, manter um ritmo de atividades. E a tipografia, agora Lira Nordestina, era vendida no início dos anos 80, ao Governo do Ceará. Os títulos deixaram de ser reimpressos. Os conflitos se aguçaram. O público podia comprar folhetos com capas coloridas, como a televisão, vindo de São Paulo. A perspectiva de uma indústria cultural popular se rompia. O personagem Amarelinho sentia-se vingado, mesmo sabendo que cairia no esquecimento.
Hoje as máquinas rangem num lamento de dor. Que os poetas não conseguem traduzir em palavras; os xilógrafos não cortam mais na madeira e os astrólogos não foram capazes de prever.
Faltam tipos na caixa para compor essa história nada exemplar. A impressora Alauzet é peça de museu. As gavetas deixaram de ser mostruários. Já não se estoca papel nem tinta. Poucas pessoas trabalham. Jovens repetem histórias que lhes foram contadas, de um tempo de fausto. Restam a habilidade, o amor e o sonho sempre adiado de retomar um ritmo de produção. O velho poeta rabisca uma história que não será impressa. As xilos estão agora nas galerias, museus e nas paredes dos colecionadores. O tempo se arrasta na última tipografia. O personagem debochado não disfarça a emoção e fecha as páginas de um folheto que nunca será lido. E vai embora.
_
Jornal de Cultura – Órgão de divulgação da UFC, dezembro de 1993, páginas 20 a 22 / Livro As Crostas do Sol (org. Robert Grelier), Rio, Recife / Index, Massangana, 1995, páginas 153 a 159.
Nenhum comentário:
Postar um comentário