Mostrando postagens com marcador Do papel. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Do papel. Mostrar todas as postagens

domingo, 3 de setembro de 2017

‘Enfim, sai o disco de Abidoral’: matéria no Diário do Nordeste, em agosto de 1987, sobre o álbum ‘Avallon’



Compartilhamos texto publicado no jornal Diário do Nordeste do dia 27 de agosto de 1987. A matéria, assinada por Carlos Raphael, baseava-se em depoimentos de Luiz Carlos Salatiel e Abidoral Jamacaru sobre o Avallon, disco de estreia de Abidoral, que seria lançado no Crato no dia 30 de agosto de 1987.

Leia a matéria na íntegra:
_

Diário do Nordeste, 27 de agosto de 2017
Enfim, sai o disco de Abidoral

Primeiro LP do cantor e compositor cratense Abidoral Jamacaru. Gravado nos Studios Vice-Versa (São Paulo), entre outubro e dezembro de 1986; Técnico de gravação: Nico; Técnicos de mixagem: Paulinho Chagas, Ary Rogério e Nico; Corte: Juca; Capa: Romildo Alves; Encarte: Edelson Diniz; Fotografia LC Salatiel; Assistência de Produção: Carlos Raphael (Crato) e Marcos Vinícius Leonel (São Paulo); Co-produção: Maria Socorro Salatiel; Projeto, direção de produção e executiva: Luiz Carlos Salatiel; Músicos convidados: Adriana, Audízio Tapioca, Bá Freire, Betão, Cacá Malaquias, Dementier, Gil, Grupo Bendegó, Izânio, Luís Brasil, Manel DiJardim, Proveta, Paulinho, Paulinho Chagas, Rubão, Suzana Belo, Teningson, Tiago Araripe e Xico Carlos. Selo OCA.

* Os depoimentos de Abidoral Jamacaru e Luiz Carlos Salatiel foram dados no pré-lançamento do disco Avallon, no programa Terra Brasilis, da Rádio Cidade do Crato.

Necessárias foram quase duas décadas para que o público pudesse ouvir o registro, em disco, de um dos trabalhos mais coerentes da Música Popular Brasileira (MPB) - a música do compositor cratense Abidoral Jamacaru. O LP, gravado entre outubro e dezembro de 1986, em São Paulo, já é antológico pela sua própria atuação. Não poderia ser diferente. É o que se percebe ao ouvir Abidoral falar da obra com ares de contente.

Há tempos não tão remotos, Abidoral descartava a possibilidade da gravação de um disco. Era uma ideia engavetada. Não pelas dificuldades, mas pelo preço ideológico que se paga para ser editado pelas gravadoras comerciais. E para que as “nativas” canções de Abidoral sofressem um tratamento tecnológico e serem transportadas para os sulcos do vinil, foi preciso a interferência do também compositor Luiz Carlos Salatiel, que se disfarçou de produtor.

“Produzir este disco era um projeto de longas datas”, afirma Salatiel. “Era pública a resignação de Abidoral quanto ao lançamento de discos, mas pesou um convívio que temos de mais de uma década. É um processo artístico de interferência, de dar certo e estar certo para a gente. E foi uma questão de tempo que tivemos para amadurecer o projeto”, explica o produtor.

Luiz Carlos Salatiel continua dizendo que na cidade os artistas são muito bem tratados quando animam e divertem, “mas durante o dia são chamados de vagabundos e drogados”. “Daí, continua a importância de nós mesmos lutarmos pelas nossas coisas. Então, dentro desse projeto, existe o empenho de escrevermos a nossa crônica. Agora, esse disco não é o ‘disco de Abidoral’, num sentido personalístico. É um disco nosso, com ideias de toda marginália da cidade”. Concordando, observa Abidoral: “a gente gravou com músicos de nível excelente, que liberaram toda a criatividade que tinham, e o disco saiu bem à vontade, como combinamos, uma espécie de cooperação de ideias que fluiu dessa forma”.

Baião-de-todos
É controvertido saber que Abidoral representa toda a iconolatria necessária ao bairrismo da cidade somada ao seu provincianismo mitológico tipo “na-minha-terra-tem-um-grande-cantor”. E mais controvérsia é saber que Abidoral, depois de ser aclamado como uma revelação, ao vencer vários festivais da canção regional nos anos 70, ser praticamente banido da cidade por incomodar demais.

Dez anos de exílio voluntários na Cidade Maravilhosa foram suficientes para dimensionar ainda mais a personalidade, também controvertida, deste autêntico representante da geração que batalha por um lugar ao sol, sem o falso requinte da vida meramente artística.

Nesse ínterim, Abidoral foi motivo de noticiário. Não porque gravou um disco e estourou no rádio, mas justamente pelo oposto, tendo rejeitado inúmeras propostas de grandes gravadoras em nome de sua música, cristalina e serrana. Eis porque esse disco não tem anacronismo nas suas oito faixas. Abidoral teve a dignidade de manter viva até agora uma expressão artística que há muito é alvo do inescrúpulo da mídia. “o problema atinge o artista em geral, enfatiza Abidoral, principalmente quando você se propõe a fazer um trabalho fora dos padrões estritamente comerciais”.

O lacre de controle de qualidade e idoneidade ideológica de Avallon está no aroma acentuado do pequi, que pode ser sentido por quem respira pela alma. Um “cast” quase 100 por cento de músicas caririenses invoca os ancestrais Kariris e o clima de magia corre solto. Essa aura sela o LP em definitivo, sendo o ingrediente básico desse “baião-de-todos”. Salatiel explica melhor: “é aquele negócio do sentimento. Você pode comprar uma quadro e jogá-lo na parede para ornamentar sua casa, mas a sensibilidade só passa quando você tem uma sensibilidade artística. Não adianta comprar um disco, jogar na prateleira e dizer ‘pô, eu tenho um disco do Abidoral’. O negócio é ouvir e tirar lições dali”.

Jardins abandonados
E quantas lições têm ali! A primeira está na produção autossuficiente, até de certo modo cara-de-pau, por ter sido feita no meio de uma crise da indústria fonográfica e tudo mais. Por ser 100% autoproduzido, Avallon tem um caminho próprio a percorrer. E fica difícil prever resenhas da crítica oficial (pelo menos, elogiosas). E fica também impossível a cena de uma família do melhor estilo cratense em volta de uma vitrola acompanhando sorridente os versos cáusticos de Geraldo Urano (em duas faixas - “Cuba” e “Deixa Estar”).

Mas não tirem conclusões apressadas: na mesma medida que Avallon não é um postal do Grangeiro, com seus belos jardins e piscinas, também não é um panfleto cru da podridão em que estamos metidos. E da mesma maneira que Abidoral é o orgulho (mesmo que ferido) formal da cidade, ele é também uma unha nas mais recônditas feridas. Numa cidade que já foi cantada pela sua exposição agropecuária, pela sua efervescente vida cultural, pelo seu passado de heróis e revoluções e pela “subida do Lameiro”, onde se toma “um trago de aguardente”, Abidoral redimensiona o valor do torrão cantando uma outra cidade, tão cheia de  contradições que é possível ouvir da inteligência pública um plano de demolir o Parque Municipal para a construção de um hotel.

E nisso há uma razão histórica para entendermos Avallon como uma raridade arqueológica em que o texto-fábula presente no disco define: “...Dos doze pares provindos de França, sete druidas bretões eram e cavalgavam a enorme baleia dourada e desposaram sete índias das tribos deste vale do Cariri e festejaram por sete luas seguidas: cantaram e dançaram e banharam-se nas fontes e provaram da bebida do fermento da mandioca e roeram caroços do pequi e saborearam o doce do fruto do buriti e trocaram mágicas e fumaram do mesmo cachimbo com o pajé. Prosseguiram viagem pela trilha de Sumé, a oeste, rumo ao santuário inca de Machu Picchu onde...” (Manuscrito em papel-seda, datado de MCMLXXXVI d.C., encontrado nos jardins abandonados de um parque em Crato-Cósmica, distrito de Avallon).
Carlos Raphael

Agradecimentos especiais a Luiz Carlos Salatiel.
_

Outras postagens no blog O Berro com Abidoral Jamacaru:
- 30 anos do lançamento do LP de estreia de Abidoral Jamacaru; e lançamento do teaser de ‘Menestrel de Avallon’
- ‘Mais tarde, mais forte’, composição de Abidoral Jamacaru
- ‘Discurso’, de Abidoral Jamacaru
- 'O Peixe', poema de Patativa do Assaré musicado por Abidoral Jamacaru
- Entrevista com Abidoral Jamacaru (edição 30 d'O Berro, ano 2000)

.

sábado, 4 de abril de 2015

'Cidadão Kane' na Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais



Do papel # 30

Texto da Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Cidadão Kane ocupa o primeiro lugar da lista. Clique nas imagens abaixo para ampliar as páginas da revista.
____


Cidadão Kane - Orson Welles
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)

Inventividade formal e narrativa são as chaves que fizeram o filme ocupar o lugar divino no céu da cinefilia

Só mesmo um talento de fora do cinema para revolucionar a linguagem cinematográfica quando esta já se encontrava próxima de ter meio século de existência. Ator desde adolescente, diretor de teatro e de programas de rádio em seguida, Orson Welles encarna todos os estereótipos do gênio precoce. Para arrematar a fama, estreou no cinema aos 25 anos, dirigindo Cidadão Kane, obra que ocupa a posição de Deus no ceú da cinefilia.

Segundo palavras do próprio Welles, o filme “conta a investigação feita por um jornalista para descobrir o significado da últimas palavras de Kane [um magnata da imprensa livremente inspirado no milionário e dono de jornais William Randolph Hearst]. Na visão do repórter, as últimas palavras de um homem devem explicar sua vida. O que talvez seja verdade. Ele nunca chega a descobrir o que Kane quis dizer com a palavra ‘Rosebud’, mas o público descobre. Sua investigação leva-o a se aproximar de cinco pessoas que conheceram bem Kane, que o amaram ou o detestaram. Elas lhe contam histórias diferentes, cada uma de um ponto de vista parcial, de tal modo que a verdade sobre Kane só pode ser deduzida pela soma de tudo o que foi dito sobre ele, como aliás qualquer verdade sobre um indivíduo”. O roteiro engenhoso traz a assinatura de Welles e de Herman J. Mankiewicz.

A sobreposição de diferentes focos é resolvida, na estrutura do filme, por meio da ruptura com padrões bem estabelecidos da indústria, como a narrativa linear, a definição clara da psicologia dos envolvidos e a sobriedade no recurso a simbolismos e extravagâncias visuais. E é essa atitude de desobediência a códigos definidos e a invenção visual e narrativa que transformam o filme numa fabulação cinematográfica da vida de seu personagem em vez de simplesmente uma crônica de fatos pessoais narrada com início, meio e fim.

Além disso, vários elementos formais identificam sua singularidade: o uso dramático da profundidade de campo, o recurso do flashback para narrar distintos pontos de vista de um mesmo indivíduo e a presença visual no teto nos cenários em contraponto à posição baixa da câmera, cujo efeito é ampliar a estatura e o significado dos personagens. As soluções visuais são do genial diretor de fotografia, Gregg Troland.

Já experiente em recursos sonoros depois de seus trabalhos no rádio, Welles também acentuou o visual da obra com efeitos dramáticos, como o barulho da chuva batendo num telhado de vidro, os passos no silêncio da biblioteca e a sobreposição de vozes que transforma em cacofonia as diversas falas que se misturam no tempo.

Nem tudo, porém, se explica pela genialidade de seu diretor. Welles se preparou para a tarefa de sua estreia em Hollywood estudando a linguagem dos clássicos, em visitas frequentes ao acervo da Cinemateca de Nova York. Por todo um ano antes de começar as filmagens, ele visitou bastidores de outras produções para aprender segredos técnicos. Com essa experiência, importou recursos visuais e narrativos que haviam sido usados por outros cineastas, mas deu a eles uma personalidade, uma caligrafia única; em resumo, um estilo.


Radicalidade levou artista ao fracasso
Depois de alcançar o apogeu instantâneo em sua estreia, a carreira de Welles no cinema tomou um rumo errático. O problema maior do artista não foi a falta de talento, mas o excesso.

Apesar de elogiado, Cidadão Kane deu prejuízo a seu estúdio, a RKO. A discordância entre ambição artística e baixo desempenho de mercado determinou dificuldades nos passos seguintes de Welles, que ficaram marcados pela interferência dos produtores em sua concepção autoral.

Seu filme seguinte, Soberba, feito em 1942, teve a montagem original completamente modificada enquanto Welles se encontrava no Brasil filmando It’s All True. Irritado com suas más relações com Hollywood, o diretor exilou-se na Europa em 1948 e nas décadas seguintes produziu irregularmente, contando com a ajuda de amigos e admiradores.

O que não impediu que, mesmo aquém dos resultados de Cidadão Kane, Welles prosseguisse sua revolução em títulos indispensáveis, entre os quais Mr. Arkadin (1955), A Marca da Maldade (1958), O Processo (1962) e Verdades e Mentiras (1974).


Título lidera lista de 100 melhores desde 1962
Lançado nos Estados Unidos em 1941, o culto a Cidadão Kane só começou de fato a partir de 1946, quando chegou à Europa (cujo mercado só se reabriu para produções norte-americanas após o fim da Segunda Guerra).

A partir de 1952, com a iniciativa da prestigiosa revista inglesa Sight & Sound, as principais publicações começaram a produzir suas listas de melhores filmes de todos os tempos, feitas com base em consultas a centenas de diretores e críticos de cinema de todo o mundo. A cada dez anos, ela refaz sua enquete, que mantém o posto de a mais tradicional.

Curiosamente, na lista de 1952, o filme de Welles não se encontra nem entre os dez primeiros. Mas, em 1962, conquista a primazia, lugar que manteve até a última publicada pela revista, em 2002.

A própria Sight & Sound aponta os motivos: “ainda é rebelde ante Hollywood, irônico no tratamento da realidade e da celebridade, reflexivo ao jogar com as convenções cinematográficas e perspicaz na combinação de gêneros, desde a comédia maluca até o primeiro noir”. [Atualizando a informação: na lista de 2012 da Sight & Sound, o Top 50, posterior ao lançamento da Revista Bravo!, Cidadão Kane perdeu o primeiro lugar para Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock, de 1958. A estreia de Welles ocupou a segunda colocação]

Cidadão Kane / Citizen Kane
Diretor: Orson Welles
Estados Unidos (1941).
Bravo! Especial - 2009

.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Entrevista com o 'brega star' Falcão na Revista Bizz de outubro de 1994



Do papel # 29

"10 + 1 perguntas para Falcão": entrevista com o brega star cearense Falcão, publicada na revista Bizz 111, de outubro de 1994. À época, o cantor-galã divulgava o disco Dinheiro Não é Tudo Mas é 100%. Para ampliar as páginas da revista, clique nas imagens.
____

10 + 1 perguntas para Falcão
Uma grande dificuldade ao se entrevistar Marcondes Falcão Maia, um cearense nascido em Pereiro há 36 anos, é perceber quando ele fala a verdade ou parte para a gozação. Falcão dispara suas frases malucas ao mesmo tempo em que entra num papo sério. O cantor nordestino e símbolo sexual ataca as paradas com seu disco O Dinheiro Não É Tudo Mas é 100%, entoando letras “sábias”, como “Prometo Não Ejacular Na Sua Boca” ou transformando a brega “Fuscão Preto” em “Black People Car” num inglês “shakesperiano”. Falcão, que digamos, não é o Keanu Reeves,  se diz assediado pelas mulheres e quer se eleger presidente do Brasil pelo PCB do B (Partido dos Cornos e Bregas do Brasil)

1 - Como nasceu O Dinheiro Não é Tudo Mas É 100%?
FALCÃO - Eu estava saindo da Continental [onde fez Bonito, Lindo e Joiado, em 1991] e decidi bancar meu próprio disco. Até que um dia o Fagner apareceu e disse: “Vou te levar para a BMG-Ariola”. Ele chamou o Robertinho do Recife para a produção e até hoje não sei por que eles caíram na besteira de fazer isso. O título saiu da esculhambação geral que acontece no Brasil. Se tivesse o real na época em que pensei no disco, eu sairia com um real na capa. Vale mais.

2 - Estão surgindo muitos valores humorísticos que são cearenses. Além de você há o Tom Cavalcante, Zé Modesto (ambos da Escolinha do Professor Raimundo). Existe algum tipo de Clube dos Bregas?
O Ceará hoje em dia vive uma onda de bregas. Eu sou mais pelo lado musical, mas há pessoas de teatro e de televisão fazendo isso. Há outros que fazem música, como Lailtinho Brega, que canta bregões clássicos. Sobre o Zé Modesto, eu costumo chamá-lo de “irmão do Falcão”.

3 - Como foi a história de você se candidatar a presidente?
Eu tenho um partido chamado PCB do B (Partido dos Cornos e Bregas do Brasil) e me candidato em tudo que é eleição. Fui candidato a rei, a prefeito de Fortaleza e agora a presidente. Sou uma alternativa para essa verdadeira legião de cornos e bregas desse meu Brasil. Eles já têm em quem votar.

4 - Qual sua plataforma de governo?
Primeiro, vou lançar a Declaração de Direitos do Corno. Diz que todo corno tem direito de ser tratado como gente. Inclusive tem um lema entre a gente, que agora foi redigido numa linguagem mais técnica: “toda penalidade imposta a um ser humano do sexo masculino cuja fidelidade conjugal tenha sido abruptamente subtraída, mesmo assim ainda é ineficiente”. Resumindo: todo castigo pra corno é pouco.

5 - Os cornos terão uma espécie de sindicato?
Pretendo fazer uma Confederação do Corno. No meu governo, ele vai ser legalizado e vai virar um “estado de espírito”. Podemos colocar no registro civil do sujeito, na carteira de identidade que ele é corno. Isso vai facilitar a vida da pessoa. Se o cidadão chega numa empresa procurando emprego e o chefe também é corno, é lógico que ele terá prioridade.

6 - Em quem você se inspirou para escrever “As bonitas que me Perdoem mas a feiúra é de lascar”? Na letra dessa música você diz que um analista pediu para que você o comesse. Como é essa história?
Depois que eu reacendi a carreira de Waldick Soriano com “I’m not dog no”, eu sonhei com Vinicius de Moraes. Ele se queixava para mim que a obra dele andava esquecida. Pensei em fazer uma música em francês, mas escrevi uma letra original, parafraseando a famosa frase do Vinícius. Agora o analista: como sou um cara fisicamente muito cobiçado, tenho muitos fãs — que chamo carinhosamente de “falconetes”. Esse analista “anda de marcha a ré”, gostou da personalidade e me queria de qualquer maneira. Mas eu dei um jeito de deixar ele na mão.

7 - Você acha que as pessoas que ouvem o seu disco ficam mais inteligentes?
Claro! É um disco didático, feito para ensinar as pessoas através do humor e da irreverência. Faço uns bolerões, umas valsas para o povão. Eles acham que sou um Frank Sinatra, um Julio Iglesias, querem me rasgar todo. Devo perder umas trinta cuecas por mês. E os jovens gostam de mim porque, apesar de não ser roqueiro, eu tenho uma certa irreverência — marca registrada no rock.

8 - E o que você achou do Ciro Gomes assumir o Ministério da Fazenda?
Acho bom. Só estou me escondendo porque tenho medo que ele me chame para ser assessor dele. Dizem no Ceara que ele anda me procurando. O Ciro Gomes é um cara novo, não tem rabo preso e vai fazer uma boa administração.

9 - Uma das suas grandes características é a “dança do jegue”, não?
Foi uma dança que eu inventei baseada nos movimentos sensuais do jegue. Mas eu observei de longe, porque eu não sou bobo de ficar espiando um jegue excitado de perto.

10 - O Falcão hoje em dia faz sucesso no mundo todo?
Sem dúvida. Inclusive o Paul McCartney entrou em contato comigo para fazermos os New Beatles. Era eu, ele, Agnaldo Timóteo e Genival Lacerda. O projeto só não deu certo porque houve ciumeira por parte da Linda McCartney.

+ 1 - Sendo uma figura tão desejada, sua mulher não tem ciúmes de você?
Não, ela já sabe administrar essa criatura aqui. Ela sabe que isso é coisa de um galã como eu.
____

"Dinheiro não é tudo mas é 100%", música do álbum homônimo de Falcão, de 1994:

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Entrevista com a banda Ira! na Revista Bizz 33 (abril de 1988)



Do papel # 28

Entrevista com a Banda Ira! (Nasi, Edgard Scandurra, Ricardo Gaspa e André Jung), publicada na revista Bizz 33, de abril de 1988. À época, a banda tinha acabado de gravar o disco Psicoacústica. Para ampliar as páginas da revista, clique nas imagens.
____

A Idade da Razão? Ira!

Quais terão sido as mudanças de comportamento do grupo paulistano depois de ter uma música na abertura de uma novela? Será que as sementes funky que já aparecem em Vivendo e Não Aprendendo se desenvolveram? O que aconteceu de fato no Hollywood Rock? E mais dezenas de interrogações para uma banda que sempre pontuou sua trajetória com vigorosas exclamações (!)

por Marcel Plasse

Descontração no estúdio Nas Nuvens do Rio. A mixagem do novo LP acaba de ser finalizada: trabalho duro para o quarteto que resolveu assumir a produção das gravações. Como colegiais na véspera dos exames finais, colocaram a fita para tocar pela primeira vez. Não há dúvidas: o Ira! gravou seu melhor LP. E, sim, comecemos pelo novo disco...

André - No fundo, esse disco tem o que a gente queria que o Vivendo e Não Aprendendo também tivesse tido: sonoridade acústica e pesada ao mesmo tempo. O problema é que o disco anterior foi feito em várias fases — fases demais! Foi gravado no Rio e mixado em São Paulo, passou por muitas mãos...
Edgard - A gente não procurou ter uma linguagem única de sonoridade nesse disco, enquanto que nos anteriores rolava essa preocupação em ter uma espécie de padrão, uma uniformidade.
Nasi - Muitas pessoas me falaram: “pô, já sei, o próximo disco do Ira! vai ser todo funk” — ou vai ser funk ou mod... Não é nada disso! Nossa música está acima dessas coisas.

BIZZ - Vale a pena ter música em abertura de novela?
Gaspa - Vale se você se situar no Brasil e se colocar numa carreira de músico profissional, onde você toca no país inteiro por causa dessa música e não pelo teu trabalho.
André - A gente não tem a pretensão de estourar e ser “A Banda do Brasil”. Nunca foi a nossa! O nosso lance é muito mais musical. Então, a gente procura ter uma divulgação que preserve esse nosso critério. Vamos aparecer na TV? Vamos, mas vamos aparecer tocando, sabe, não fazendo playback. Não vamos aproveitar qualquer onda! A impressão que algumas pessoas têm é que a gente nada em dinheiro. (Com malícia.) “Ah, vocês estão com música na novela, né? Agora vocês estão ricos!” Puxa, a gente dá um duro danado e a conta bancária zerando...

BIZZ - Vocês não acham que tem muita gente ganhando dinheiro com música neste país?
Nasi - Da nossa geração é uma minoria absoluta. Mas existem os marajás, claro (risos)!
André - De qualquer forma, eu sempre vou tocar com os amigos quando eu tiver oportunidade. Nada supera esse prazer. Aliás, a coisa mais legal que a gente fez no ano passado foi ter trabalhado com caras como o Thaíde, o pessoal da Fábrica Fagus, o Theo Werneck e todas as pessoas que a gente teve contato. Foi uma experiência enriquecedora...

BIZZ - Foram essas experiências que geraram expectativa de que o Ira! poderia pender para o funk no novo LP. Em pelo menos uma faixa, “O Advogado do Diabo”, dá para sentir essa influência. Se bem que eu esperasse ouvir um rap, a música tem uma sonoridade meio brasileira...
Nasi - Eu fico p* quando alguém fala que é rap! Essa música tem uma característica dançante, mas a gente procurou não usar nada que a conduzisse eletronicamente. O que existe é uma condução humana, mântrica.
André - Ela é toda baseada em percussão. Ela começa com um padeiro, depois entram tímbales, uma pandeirola e temrina com uma conga. A gente também usou o sampler de uma caixa de “It’s a Man’s, Man’s World” (James Brown!)

BIZZ - Apesar disso, a característica mais marcante do novo trabalho é o hard, um rock mais pesado que o dos LPs anteriores...
Edgard - É o lance da guitarra. Agora tem muito mais guitarra. Nos outros discos, ela foi meio contida. As guitarras dos primeiros discos são conceituais, naquela postura mod de guitarra simples, limpa, radical...

BIZZ - Como foi que isso mudou?
Edgard - Teve uma época em que eu me senti meio no meu limite de criação como guitarrista. De repente, eu me dei conta de que já toquei de outras formas. Não fui somente um guitarrista de ritmo, já fui solista também. E já experimentei coisas bem ousadas em jams, como o resultado final da música “Mesmo Distante”, que encerra o disco. Ela tem efeitos de inversão de guitarra, base de violões e inúmeras sacadas que a maioria das pessoas vai ficar se perguntando do que se trata.
André - É, no disco o Edgard toca banjo, craviola, guitarras, sampler de voz...

BIZZ - Até o segundo disco, por sinal, o Ira! só gravava composições do Edgard...
Edgard - As músicas do primeiro LP eram composições da primeira formação, já prontas. As do segundo também eram músicas antigas — nós ainda estávamos tentando registrar o nosso material —, de uma época em que eu escrevi muito. Agora eu estou mais calmo (risos)! Nesse disco, como nós fomos os produtores, tivemos mais tempo pra questionar, experimentar. E isso fez pintar músicas de todo mundo. Todos compõem no Ira!

BIZZ - Vocês têm uma ligação muito forte com São Paulo. Nos primórdios, costumavam até usar uma bandeira do Estado como cenário.
Edgard - Era uma ligação juvenil. Naquela época era uma postura mod. A gente queria mostrar o nosso som e ao mesmo tempo mostrar de onde a gente vinha...
Nasi - Personalizar a origem. Acho que isso acontece, de certa forma, também no Sul. O público do Sul gosta com um carinho especial das bandas de lá. O nosso som agrada a pessoas aqui no Rio e em vários outros lugares, mas é especial você saber que existe uma coisa além...
Edgard - Além do mais, a gente tem uma música para São Paulo: “Pobre Paulista”, uma música feita há muito tempo. Eu e o Nasi estávamos no colegial. O bairrismo era extremo, então. Não era nem São Paulo, era Vila Mariana, o bairro onde a gente vivia.
Nasi - Acho que o legal de “Pobre Paulista” é que ela veio do nosso tempo de escola, mas consegue se comunicar com a juventude ainda hoje. Ela cresceu da nossa escola pro nosso bairro, pra nossa cidade...

BIZZ - Acho que ninguém discorda que as músicas do Ira! são as que melhor retratam aquele espírito de rock’n’roll que sempre se espera que as bandas manifestem, mas que elas não produzem mais. Ou seja: o espírito de rebeldia juvenil.
Edgard - O jovem está se arriscando a se tornar um babaca, um reacionário, um cara com a mentalidade da televisão. As nossas letras falam de caras que se tocam desse perigo.
André - As pessoas precisam ser chacoalhadas. Tem muita gente no Brasil só assistindo ao noticiário pela TV. Assistindo o que vai acontecer agora — mais um pacote, mais um congelamento, e agora?
Nasi - Às vezes, tratam a gente como moleques. Eu sinto isso, por nos tacharem de rebeldes de uma maneira jocosa. “Ah, os garotos”...
Edgard - O jovem tem que se tocar que ele não é obrigado a virar um velho conformado que apoia a direita!

"O jovem está se arriscando a se tornar um babaca, um reacionário, um cara com mentalidade de TV. As nossas letras falam de caras que se tocam desse perigo" (Edgard)

"As pessoas precisam ser chacoalhadas"
(André)

BIZZ - Por sinal, André e Gaspa acabaram de virar papais e o Edgard está a caminho.
Edgard -
Não somos mais moleques tocando, mesmo! Acho que eu vou ser... um bom pai. Mas, independente de nossa idade, que nem é tanta assim [nenhum tem 30 anos], a gente sempre vai procurar se dirigir à juventude. A gente nunca vai fazer música de dor-de-cotovelo, por exemplo.
Nasi - Eu vi a apresentadora do Hollywood Rock na TV dizendo: “O Ira!, que depois de ‘Fores em Você’ saiu da clandestinidade...”. Pô, eu acho que nunca teve tanta gente nos vendo tocar ao vivo na televisão quanto naquele dia, mas, sabe, a gente não saiu da clandestinidade depois de “Flores em Você”. A gente tinha um LP que foi super bem conceituado, tinha uma estrada, uma legião de fãs etc. e tal. Parece que a gente vai crescendo como naquele filme, O Tambor [de Volker Schlöndorff], com as pessoas nos tratando como se ainda fôssemos crianças. Só porque você parece ingênuo, porque você ainda é um pouco idealista — coisa que você tem que ser realmente... Hoje em dia, a gente não vive mais exatamente no mundo dos ideais, mas num mundo com coisas que a gente sabe que são importantes, por exemplo, posições firmes para que possa existir um espírito no nosso trabalho. Nós temos personalidades inquietas!

BIZZ - Bem, nesse novo disco não há nenhuma balada com quarteto de cordas (risos). E ele acabou se chamando Psicoacústica. O que é psicoacústica?
Nasi - É o estudo das influências que ambientes de tamanhos diversos causam num mesmo som, numa mesma música. Esse nome saiu no final das gravações, no estúdio, depois da gente ter tentado vários outros.
Edgard - Trata-se de um disco de mensagens inspiradas. E essa inspiração é psicoacústica.
André - A gente deu valor a detalhes do nosso som que são quase incidentais, procurou não fazer as músicas em bloco. No meio de um processo cada vez mais industrializado da indústria de consumo, a gente procurou preservar um processo bem artesanal de fazer música.
Edgard - A gente utilizou os recursos modernos de maneira simples. Procuramos soluções muito mais arcaicas, de repente, do que o uso de um sampler, por exemplo.
André - Tem muita gente vendendo qualidade pelo preço do equipamento que tem... Isso, meu, é um papo furado! Criatividade se faz com três instrumentos.
Nasi - Os caras do Vzyadoq Moe, por exemplo, são modernos, usam tecnologia de uma forma arrebatadora e são supersimples.
André - Há muito tempo as bandas nacionais conseguiram reunir capital para investir em equipamentos, tipo últimos lançamentos tecnológicos. Não que isso não tenha valor. Eu acho que a música tem que evoluir em todas as frentes, inclusive a tecnológica. Agora, não dá para colocar isso acima da criatividade. Trazer uma proposta musical não é trazer um aparelho novo e ligar. A criatividade, de repente, caminha muito mais rápida do que a tecnologia. E chega de papo furado, entendeu!

BIZZ - O Ira! tinha um carma de ser uma banda anos 60...
André -
Coisa que a gente preserva, bicho!
Nasi - O rock dos anos 60 nos influencia de uma forma muito maior do que a paixão pelo Who ou pelo Zeppelin, mas pela ousadia que existia nessa época, de meter a mão no som, de criar sons radicalmente diferentes do padrão de qualidade vigente.

BIZZ - Vocês pegaram mais o punk do que os sixties...
Nasi -
Não necessariamente. A gente já se imaginava no rock um pouco antes do punk. As influências são muito amplas, apesar do punk estar mais próximo da nossa geração.
Edgard - O Ira! pintou na época do movimento punk em São Paulo. Nosso primeiro cartaz de show falava em “punk rock e new wave”... Isso pra nós era uma coisa só.
Edgard - Quer dizer, a gente associava isso a um lance novo.
André - Aquele momento foi uma despadronização radical. E era genial por isso.
Edgard - Até virar moda. E new wave pra nós era o Jam, não o B-52’s! A gente tocou em festival punk. Até que começamos a encontrar um som nosso, próprio, que se distanciou desse movimento.
Nasi - O nosso som era rock’n’roll, do mesmo modo que o dos Sex Pistols era. A gente tocava música do Who, dos Stooges... Era uma coisa muito maior do que ser hardcore — eu até curto coisas de hardcore, de energia rock, juvenil... É bom descobrir ou redescobrir boas músicas.

BIZZ - Vocês também curtem quadrinhos, não?
Edgard -
É, eu até escrevi e desenhei quadrinhos. Uma vez eu mandei umas das minhas histórias para um programa da TV Cultura, chamado A História do Desenho Animado, e o apresentador mostrou. Chamava-se “João, o Caveira” (risos).
Nasi - A letra de uma música do nosso disco, “Rubro o Zorro”, é quase uma história em quadrinhos.
Edgard - É uma BD [Banda Desenhada, termo de Portugal para história em quadrinhos] clássica.
Nasi - Tudo começou com uma pesquisa sobre “o bandido nacional” que acabou se tornando uma mistura de vários personagens, inclusive do “Bandido da Luz Vermelha” americano — ou seja, um cara que foi condenado injustamente e executado. O lance de morte é uma coisa que ainda existe e que paira, inclusive, sobre o Brasil. Em suma, o mais importante de tudo isso é a barbárie da Grande Morte. Com a maior naturalidade, executa-se uma pessoa sensível como o possível Bandido da Luz Vermelha, capaz de escrever livros, tornar-se advogado, tudo dentro do regime opressivo de uma prisão. Na música, claro, isso passa de uma maneira mais relaxada, como um bangue-bangue de quadrinhos... Hoje mesmo eu me encontrei com o Rogério Sganzerla [autor do filme O Bandido da Luz Vermelha nacional, de onde foram extraídos alguns tiros e falas para a música] e foi uma sincronicidade de ideias incrível! Acho que ainda devem rolar coisas disso (um clip, talvez? Suspense, suspense).

BIZZ - Que outros sons foram sampleados?
Nasi -
Em “O Advogado do Diabo” tem um final com um discurso religioso captado em AM, que eu não queria que se falasse que é da (...). Eu nunca vou declarar isso! Não tem nome de ninguém lá. E eu não quero fazer propaganda desse órgão que eu acho terrível, tá? A música é “O Advogado do Diabo” e nós pensamos em colocar o verdadeiro diabo no fim dela: o discurso religioso moralista desses caras, uma coisa muito perigosa [o discurso diz: “Não adianta, porque tem que haver rico, tem que haver pobre; tem que haver branco, tem que haver preto; tem que haver patrão, tem que haver empregado, porque Deus quer assim...”]. Mas é algo que eu quero que entre como acidente. Como qualquer pessoa que ligue o rádio AM e capte uma mensagem dessas a qualquer hora. Foi o que eu percebi. Eu peguei superacidentalmente, na madrugada antes de colocar isso no disco.

BIZZ - Edgard, o que houve no Hollywood Rock, que você acabou jogando a guitarra no chão?
Edgard -
A gente teve muitas dificuldades durante a passagem do som, limites, cobranças de tempo para montar o palco, não teve luz... Mil coisinhas que foram alimentando um nervosismo. E tudo explodiu na música “Gritos na Multidão”. Depois daquela guitarrada ficou tudo mais tranquilo.
André - E depois que a gente fez um show em São Paulo que não acredito que a crítica tenha visto — e se viu... Bom, a gente tem uma fita do show inteiro gravada que mostra como ele foi excelente! E isso também serve de resposta ao que aconteceu no Rio.

BIZZ - Essa fita vai entrar no disco?
Edgard -
Na verdade, é uma surpresa. Tem músicas muito boas gravadas. Aguardem, aguardem...
____


Abertura da novela O Outro, com "Flores em Você" (Edgard Scandurra):


"Rubro Zorro" (Scandurra, Jung, Gaspa, Nasi), de Psicoacústica:
 

"Advogado do Diabo" (Nasi, André Jung), do disco Psicoacústica:

domingo, 2 de março de 2014

'Hiroshima, Meu Amor' na Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais



Do papel # 27

Neste dia 02 de março de 2014, quando foi noticiada a morte do cineasta francês Alain Resnais (falecido ontem, dia 1º de março, aos 91 anos), reproduzimos um texto sobre o clássico Hiroshima, Meu Amor, publicado em uma Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Clique na imagem abaixo para ampliar a página da revista. 
____

Hiroshima, Meu Amor - Alain Resnais
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)

O tempo e a memória servem de matéria na construção de obra que se posiciona contra os riscos do esquecimento

O tempo, como o vivemos, é composto de camadas nas quais o passado se acumula a cada minuto que passa. Em seu longa de estreia, o francês Alain Resnais foi saudado pela capacidade de traduzir em imagens e palavras tanto as múltiplas presenças do tempo quanto o lugar e a ação da memória, como a faculdade que faz tudo sempre retornar. Essa habilidade seria retomada dois anos depois em O Ano Passado em Marienbad (1961), sob uma forma ainda mais radical.

Hiroshima, Meu Amor não é apenas um filme, é também um texto de autoria de Marguerite Duras, que imprime às imagens uma densidade poética que ultrapassa o mero sentido dos diálogos. A trama se resume ao encontro entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês na cidade, reconstruída depois de ter sido devastada por uma das bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos em 1945. “Você não viu nada em Hiroshima”, ele insiste. “Eu vi tudo”, ela retruca. Pois, mesmo que nenhum dos dois tenha estado lá no momento do ataque, é a memória que se encarrega de não fazer esquecer os grandes traumas.

E ela pode afirmar que “viu tudo” porque viveu a guerra a seu modo, na alma e na carne, quando jovem, ao se apaixonar por um soldado alemão durante a ocupação nazista na França. O amante foi morto em combate, e ela acabou punida pelo envolvimento. Entretanto, para além das lembranças pessoais, é a memória coletiva que interessa a Resnais, o que já estava evidente em alguns de seus primeiros curtas (As Estátuas Também Morrem, de 1953, e, sobretudo, em Noite e Neblina, de 1955, e em Toda a Memória do Mundo, de 1956).

Em Noite e Neblina, um documentário sobre os campos de extermínio nazista, o texto do escritor Jean Cayrol servia de alerta contra os riscos do esquecimento: “Onde estão os futuros carrascos? Com certeza, entre nós...”.

Nesse sentido, Hiroshima, Meu Amor é acima de tudo um filme político, em que o romance individual serve de guia para a lição coletiva expressa nas palavras do texto de Duras, que reitera os riscos “da desigualdade posta em princípio por alguns povos contra outros povos, da desigualdade posta em princípio por algumas raças contra outras raças, da desigualdade posta em princípio por algumas classes contra outras classes”.

Hiroshima, Meu Amor / Hiroshima Mon Amour
Diretor: Alain Resnais
França (1959).
Bravo! Especial - 2009

.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O nobre Ribamar



Do papel # 26

Hoje compartilhamos um texto de Cecilia Sobreira sobre o Príncipe Ribamar, publicado na Revista Geral (número 16, de abril de 2013). Para ampliar a página da revista, clique na imagem abaixo.
____

O nobre Ribamar
por Cecília Sobreira

Era uma vez, no árido sertão nordestino, um homem que virou príncipe. Seu nome era Joaquim Gomes Menezes, nascido e criado em Juazeiro do Norte, excelente carpinteiro e uma pessoa de bom coração. Certo dia, veio ao seu encontro, uma jovem mulher, muito bem vestida, dizendo-se princesa. No meio de sua conversa, proposta de casamento e um mundo de nobreza.

Daquele dia em diante, Joaquim ele deixou de ser. Aos poucos abandonou sua profissão e tudo o mais que o ligava ao mundo dos plebeus. Encomendou novas e galantes vestimentas, ganhou identidade real e, por anos, alimentou a ideia de ser um príncipe: Príncipe Ribamar da Beira Fresca. Assim ele circulava pela cidade, imponente, sempre com uma maleta à mão.

A princesa nunca mais voltou, mas vez por outra, chegavam às mãos do príncipe, cartas escritas por uma certa Princesa Gioconda, do reino da Eslóvia.

Uma dessas cartas dizia que estava sendo enviada pela corte real grande quantia em dinheiro para ser entregue ao Príncipe Ribamar, o que causou considerável transtorno entre o príncipe e o gerente do banco local.

Apesar de muitos duvidarem de sua nobreza, Príncipe Ribamar era  querido pelas pessoas da cidade, sendo figura constante nos palanques em dias de festa. Seus planos e projetos eram dos mais grandiosos e criativos, como desviar o curso do rio que passava pela cidade de Barbalha, para que este fizesse parte do município de Juazeiro do Norte. Também fez a planta de um prédio que deveria ser construído no subterrâneo da serra do Horto, para que não fosse alagado quando o Rio Jordão (na realidade Rio Salgadinho) desencantasse.

Príncipe Ribamar morreu sem conseguir construir as fábricas (de fazer fumaça ou desentortar banana) ou criar a cavalaria marítima que planejava. Também nunca soube que a Princesa Gioconda não passava de uma brincadeira ocorrida no carnaval, assim como a identidade real da mesma, ou a autoria das tão famosas cartas. Mas, como todo príncipe que se preze, sua morte foi notícia de jornal e hoje existe uma rua com seu nome. Provavelmente nunca mais ouviremos falar de um príncipe juazeirense com sangue azul real lavável.
Cecilia Sobreira 
(Revista Geral, abril de 2013)
____ 

Confira outras postagens no blog sobre o Príncipe Ribamar:
- Príncipe Ribamar, o sonhador de Juazeiro
- Dois sonetos em homenagem ao Príncipe Ribamar
- Foto rara do Príncipe Ribamar


.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

'Pérola Negra', disco de Luiz Melodia, na Discoteca Básica da Revista ShowBizz

Do papel # 25

Hoje compartilhamos um texto de Luís Antônio Giron, da seção Discoteca Básica da Revista ShowBizz, antiga Bizz (edição 136, novembro de 1997), sobre o clássico álbum Pérola Negra, de Luiz Melodia, lançado em 1973. Para ampliar a página da revista, clique na imagem.


Discoteca Básica 
Pérola Negra - Luiz Melodia

Algumas vidas se revelam como nota de rodapé, a sombra, o apêndice de um único gesto da juventude. Por mais que um artista queira se subtrair do estigma, este se impõe contra a vontade do criador, como letra marcada a ferro.

Aos 46 anos de idade, o compositor e cantor carioca Luiz Melodia tenta esquecer em que ano estamos — exatamente como nos versos de "Pérola Negra", a faixa-título do seu primeiro LP, de 1973. Houvesse ele abandonado a carreira para virar contrabandista na África, como o poeta Arthur Rimbaud (outro maldito pelos feitos juvenis), ainda assim seria lembrado por causa de Pérola Negra. Estacou ali, aos 23 anos, num ano que todo mundo já esqueceu, salvo ele.

Melodia extraiu material do Estácio, bairro-berço do samba clássico, cuja forma foi fixada em 1931 pelos bambas do local, como Ismael Silva, Bide, Balaco e Brancura. Seu pai, o violonista Osvaldo Melodia, frequentava a roda de bambas, e o influenciou. O auxílio do pandeiro foi luxuoso. Mas Luiz não se via como pagodeiro. O blues e o pop tropicalista lhe eram também fundamentais. O Rimbaud do morro estreou aos 15 anos, num grupo de baile. Compunha sambas acartolados e rocks lisérgicos.

Pouco antes de os poetas Torquato Neto e Waly Salomão descobrirem suas músicas numa visita ao morro de São Carlos (hábito desenvolvido pelo artista plástico Hélio Oiticica), Melodia pensou em parar, em trocar a música pelo serviço de garçom numa academia de ginástica. Waly, então, levou uma fita com "Pérola Negra" para Gal Costa. Ela gravou a música e passou a atuar como divulgadora do seu trabalho. Contratado pelo empresário Guilherme Araújo, ele terminou por ser convidado para gravar um disco pela Philips.

Pérola Negra traz dez faixas arranjadas pelo violonista Pedrinho Albuquerque. Um solo de flauta de Canhoto, acompanhado por seu regional, dá a largada à eternidade de Melodia, no samba "Estácio, Eu e Você" inspirado em Cartola. A segunda faixa já é um blues, "Vale Quanto Pesa", em instrumentação acústica. O destaque é o refrão dos metais, enquanto Melodia canta "Ai de mim, de nós dois", Rildo Hora preludia com a gaita o samba-canção "Estácio, Holly Estácio", peça fundamental do desbunde setentista: "Trago não traço / Faço não caço / E o amor da morena maldita / Domingo no espaço". Versos assim vincaram uma geração.

O rockão "Pra Aquietar" — em estilo Dededrim (inseticida) traçado pela guitarra do soul man carioca Hyldon — conserva em formol um passeio suburbano à calorenta Ilha de Paquetá. "Abundantemente Morte", "Pérola Negra" e "Magrelinha" são blues interligados pelo cordão de amor e morte. Dificilmente superada, essa trilogia de canções forma o tesouro nacional do oxímoro — das frases que se contradizem ("Baby te amo! Nem sei se te amo") para definir uma situação existencial. A verdade é que a sombra sobrevém na obra do compositor a partir das três faixas seguintes. "Farrapo Humano", "Objeto H" e "Forró de Janeiro" já adentram pela rota da variação sobre os primeiros temas.

Pérola Negra é ápice e lápide estética. Ouvimos hoje o Melodia desse disco, ainda que ele cante outros e melhores blues. Todos os seus atos são e serão regidos pelo LP. Não tem por que se lamentar da reprodução do mesmo modelo. O grande artista é sempre resultado de uma cena originária.
Luís Antônio Giron

Performance:
Ano de lançamento: 1973
Direção de Produção: Guilherme Araújo
Direção de Estúdio: Sérgio M. de Carvalho
Arranjos: Perinho Albuquerque e Arthur Verocai
Direção Musical: Perinho Albuquerque
Faixas: "Estácio, Eu e Você", "Vale Quanto Pesa", "Estácio, Holly Estácio", "Pra Aquietar", "Abundantemente Morte", "Pérola Negra", "Magrelinha", "Farrapo Humano", "Objeto H", "Forró de Janeiro"
Músicos: Regional de Canhoto; Perinho Albuquerque (violão e guitarra); Anotnio Perna (piano); Hyldon (guitarra); Rubão Sabino (baixo).

Pérola Negra foi lançado pela Philips/PolyGram. Há alguns anos, a faixa-título ganhou destaque ao virar trilha de um comercial de calça jeans. Outro grupo que viajou na música de Luiz Melodia foi o Barão Vermelho, que regravou o blues "Vale Quanto Pesa". Pérola Negra foi relançado este ano [1996] em CD.
____

"O Morro e o Asfalto no mesmo disco. Luiz Melodia mostra em suas composições que já sabia muito da vida naqueles tempos. Do Estácio para o mundo, um Canário Universal." (Guto Goffi, Barão Vermelho)

"Estácio, Holly Estácio" (Luiz Melodia):

.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

'O Poderoso Chefão' na Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais



Do papel # 24

Texto da Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Clique nas imagens abaixo para ampliar as páginas da revista. 
____

O Poderoso Chefão - Francis Ford Coppola
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)

Saga de família no mundo do crime consolida marca autoral na Hollywood dos anos 1970

O Poderoso Chefão é fruto do casamento entre duas tradições de cinema distintas, a da Hollywood industrial com o filme de arte europeu. Em termos práticos, um grande estúdio financiou a criação extremamente autoral de Francis Ford Coppola, que, ao mesmo tempo, cumpria as exigências de um produto comercial.

A Paramount, nos anos 1970, momento em que os grandes estúdios trabalhavam sem as regras rígidas do período de ouro (entre os anos 1920 e 1950), estava francamente aberta aos novos cineastas e deu a chance para Coppola demonstrar do que era capaz. Ele dirigiu com o mesmo afinco que teria se estivesse sob a vigia dos executivos da casa; se falhasse, eles o teriam substituído.

Mesmo nesse clima tenso, o cineasta conseguiu verter em imagens o romance homônimo de Mario Puzo, que mostra a saga de Vito Corleone (Marlon Brando) na América, lutando para manter intacto o núcleo familiar — que ultrapassa parentes e se estende aos seus protegidos. Não é um trabalho fácil como sugere o semblante sereno do chefão, que até na primeira sequência, durante o casamento da filha, recebe seus clientes e assiste brevemente a festa.

A luta em defesa da família, driblando os mais violentos atentados e sangrentas traições, (algo que o filme mostra em cenas de grande impacto), é transferida, por força das circunstâncias, para o caçula Michael (Al Pacino), que primeiramente rejeita ser o novo "padrinho", mas logo afundará nos "negócios", empurrado pelo destino.

Coppola dá especial ênfase a esse drama que lembra muito grandes óperas, em que os personagens sofrem com as reviravoltas da vida. Isso dá a Vito uma imagem forte, mas é Michael a grande figura do primeiro filme da trilogia. O diretor também consegue um milagre: trazer para dentro de uma produção de modelo comercial alguns elementos da vida pessoal. Seu pai, Carmine Coppola, compôs a trilha sonora, e parentes participam do elenco (como sua filha, Sofia, na época ainda bebê e hoje também diretora de cinema). Essa cultura italiana, bem conhecida por Francis Ford Coppola, é levada ao longa nos momentos quase "documentais" que apresentam danças e costumes europeus. Apesar de se passar entre os anos 1940 e 1950, o filme foi todo rodado em locações artesanalmente caracterizadas, jamais em cenários. A fotografia de Gordon Willis, meio dourada, com iluminação de cima para baixo, fez escola: todas as produções de época realizadas a partir dali usariam tal estilização.

Coppola ainda conseguiu conectar sua obra à urgência política do momento, e ele próprio revelou posteriormente que o Michael desconfiado e paranoico é um retrato do ex-presidente americano Richard Nixon. A Academia, impressionada com o lado espetacular do drama dos Corleone, deu-lhe os prêmios de Melhor Filme, Ator (Marlon Brando) e Roteiro Adaptado.

As raras críticas apontaram o tratamento simpatizante, legitimador e glamoroso com que o filme trata a máfia. Em 1974, Coppola prosseguiu narrando a saga da família em O Poderoso Chefão: Parte 2, no qual Robert De Niro fez o papel do jovem Vito Corleone, e Michael é mostrado, em 1959, ainda mais severo. Os personagens retornam em O Poderoso Chefão: Parte 3 (1990), que mostra o herdeiro dos Corleone envelhecido, nos anos 1970.

Marlon Brando improvisou em teste
Al Pacino só foi aceito pelos produtores de O Poderoso Chefão depois de eles assistirem à famosa sequência do assassinato no restaurante (onde Michael, tenso e ainda bom-moço, tem de executar um traidor). Mas a pior reclamação que Coppola poderia suportar era a exigência de que Marlon Brando fosse submetido a um teste antes de ser aceito para desempenhar Vito Corleone.

O jovem diretor, com pouco tempo de cinema, jamais trataria aquele que era o melhor ator do mundo como um estreante. Em vez das falas previamente ensaiadas, Coppola deixou-o fazer seu próprio improviso. Brando, então, engordou as bochehas com enchimento e utilizou tudo o que aprendera e o havia consagrado em filmes anteriores. O resultado do "teste" é o que foi visto mais tarde, na tela dos cinemas, com ele apenas maquiado.

Brando ganharia o Oscar por seu papel, mas, em seu lugar, na cerimônia de entrega, subiu ao palco com uma atriz se fazendo passar por índia. Era seu protesto à política anti-indígena do governo americano. Sem maquiagem, mas com muito ensaio.

Os filhos do Chefão
Nos anos 1970, os filmes de gângster, cujo apogeu aconteceu entre 1930 e 1950, com obras como Scarface - A Vergonha de uma Nação (1932), de Howards Hawks, e o noir Os Assassinos (1946), de Robert Siodmak, estavam em baixa. Mais ainda as histórias de máfia, nicho específico do gênero. Al Capone, por exemplo, era um personagem lembrado apenas pela série televisiva Os Intocáveis. Após O Poderoso Chefão, Ben Gazzara encarnou o célebre ciminoso em Capone - O Gângster (1975), de Steve Carver. Em 1983, Brian De Palma refilmou Scarface e, quatro anos depois, levou para a tela grande Os Intocáveis.

Martin Scorsese, mais "democrático", sempre optou pelo baixo clero mafioso, com os bandidos. retratados em Caminhos Perigosos (1973) e Os Bons Companheiros (1990). Em seu mais recente filme, Os Infiltrados (2006) aborda a máfia irlandesa.

Sam Mendes é quem dialogou com a obra de Coppola. Em Estrada para Perdição (2002), o drama do pai feito por Tom Hanks surge quando ele rompe com a família, caminho oposto ao de Michael Corleone.

O Poderoso Chefão / The Godfather
Diretor: Francis Ford Coppola
Estados Unidos (1972).
Bravo! Especial - 2009

.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

'Lawrence da Arábia' na Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais



Do papel # 23

Texto da Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Clique na imagem abaixo para ampliar a página da revista. 
____

Lawrence da Arábia - David Lean
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)

Épico ambientado no deserto explora, na forma de espetáculo, os limites do indivíduo alçado à estatura de herói

Se há um sinônimo para cinemão, este foi durante anos identificado com os filmes de David Lean. O aumentativo se justifica pelo completo domínio das narrativas de dramas épicos, no uso recorrente do formato cinemascope, pelo apuro visual de tirar o fôlego (era capaz de esperar dias por um pôr-do-sol perfeito) e pela longa duração de seus filmes.

Lean já era um veterano de histórias fascinantes (como Desencanto, de 1945, e as duas adaptações de clássicos de Charles Dickens — Grandes Esperanças, de 1946, e Oliver Twist, de 1948) quando, na década seguinte, só confirmou sua habilidade em produzir espetáculos, como A Ponte do Rio Kwai, de 1957.

Ao longo dos cinco anos seguintes, o diretor entregou-se à difícil tarefa de traduzir em imagens as reflexões existenciais e políticas do escritor T. E. Lawrence, oficial que liderou as forças britânicas em combates contra a Turquia durante a Primeira Guerra Mundial e deixou suas memórias da experiência registradas Os Sete Pilares da Sabedoria.

Desde sua publicação, em 1922, o relato chamou a atenção de diretores, que viam nele um heroísmo singular cujas dimensões o cinema poderia amplificar. Ciente disso, Lean filmou a história sem perder de vista nem o indivíduo nem a magnificência das paisagens do deserto, dosando na medida o volume de ação e o de reflexão e entregando ao público uma experiência visual que só na arte cinematográfica é possível.

No início, conhecemos o personagem (interpretado por Peter O'Toole) ainda jovem, mas decaído fisicamente ao fim de uma dura campanha no deserto. No Cairo, ele recebe como missão partir ao encontro do prinícipe Faissal (Alec Guinness) e verificar a situação de uma revolta tribal na Arábia. No caminho, ele é abordado por um rebelde, Sherif Ali (Omar Sharif), que, hostil a princípio, acaba se transformando em seu principal aliado na tarefa de reunificar os árabes.

Com uma estrutura em episódios, o diretor consegue transmitir as ambiguidades do heroísmo do protagonista, envolvido em lutas sangrentas nas quais emerge sua consciência do grau de interferência do colonialismo na autonomia de outros povos.

Indicado a dez categorias do Oscar em 1963, o filme terminou a cerimônia com sete prêmios, entre eles o de Melhor Filme e Direção.
____

Colonialismo forja imagem do oriente

A aura de herói que acompanha a imagem de T. E. Lawrence deriva dos relatos de seus feitos militares e dos enfrentamentos contra valores interpretados como 'bárbaros', com o objetivo de construir um império com base em ideais da 'civilização'.

Produto já do período do declínio da Grã-Bretanha como potência imperial, Lawrence reflete a visão consagrada do homem ocidental e branco sobre outras raças e credos, sobretudo os árabes e muçulmanos.

Apesar de resultar de uma vivência pessoal, em seus escritos se reproduz o que o pensador Edward Said chama de orientalismo, conjunto de ideias formadas a partir de estereótipos de exotismo, que nada mais são do que efeitos de um olhar externo e que constituíram, para nós, uma imagem dos povos orientais.

Além disso, muito se questiona se os relatos memorialísticos de Os Sete Pilares da Sabedoria não passam de mistificação e se os textos de Lawrence não devem ser lidos como ficção de um autor que forjou a própria lenda de um herói.

Lawrence da Arábia / Lawrece of Arabia
Diretor: David Lean
Estados Unidos e Inglaterra (1962).
Bravo! Especial - 2009

.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

'Blade Runner, O Caçador de Androides' na Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais



Do papel # 22

Reproduzimos um texto publicado em uma Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Clique na imagem abaixo para ampliar a página da revista. 
____

Blade Runner - O Caçador de Androides - Ridley Scott
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)

Mistura de ação e filosofia diferencia visão pessimista do futuro de outras ficções científicas

Los Angeles, 2019. Com o planeta transformado em sucata por causa da chuva ácida e de outros desastres ambientais, a humanidade migrou para colônias espaciais e a Terra abriga apenas os excluídos. Nesse cenário de caos, cinco replicantes (androides extremamente desenvolvidos) desafiam a proibição de vir à Terra e são caçados por policiais chamados "blade runners". Um ex-caçador, Deckard (Harrison Ford), é convocado para eliminar os intrusos (cuja vida dura apenas quatro anos), e acaba descobrindo segredos sobre a própria identidade.

O que diferencia Blade Runner - O Caçador de Androides, dirigido por Ridley Scott, de outras produções futuristas centradas na ação é, em parte, seu conteúdo filosófico. Ao serem montados, os replicantes recebem memórias afetivas, o que lhes dá uma consciência quase humana, fazendo com que demonstrem emoções. O fato de serem monitorados por grandes corporações faz referência às formas diversas de controles individuais já presentes no início dos anos 1980, quando o filme foi realizado. A desumanização provocada pela tecnologia, a proximidade do colapso ambiental e a construção que fazemos dos sentimentos e lembranças são outros temas explorados.

O roteiro foi inspirado em Do Androids Dream of Electric Sheep?, do cultuado autor de ficção científica Philip K. Dick. A fotografia, a direção segura de Scott, os cenários futuristas banhados em luzes difusas e a gélida trilha sonora de Vangelis mantêm seu apelo intacto. A obra também serviu de trampolim para Rutger Hauer, Daryl Hannah e Sean Young, que se tornaram atores conhecidos.

A mistura de ação e filosofia e o elaborado visual, fatores que tornaram o filme cultuado, também atrapalharam seu desempenho nas bilheterias no lançamento. Era uma obra cerebral demais para o público, que esperava tiros e perseguições. Como Scott foi obrigado a fazer diversas alterações na montagem para deixar o resultado mais palatável, mudando inclusive o desfecho, originalmente pessimista, a crítica se dividiu entre elogios e restrições. Apenas em 1992, quando o cineasta relançou o filme na edição que ele havia concebido, sem a narração em off de Ford e com o final original, Blade Runner recuperou o status que sempre mereceu.

Blade Runner - O Caçador de Androides
Diretor: Ridley Scott
Estados Unidos (1982).
Bravo! Especial - 2009

.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

'2001: Uma Odisseia no Espaço' na Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais

Do papel # 21



Nesta postagem reproduzimos um texto publicado em uma Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Clique na imagem abaixo para ampliar a página da revista.
____

2001: Uma Odisseia no Espaço - Stanley Kubrick
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)

Ficção científica revolucionária discute a aventura do homem para compreender o mistério da criação

A odisseia no espaço narrada pelo genial Stanley Kubrick pode parecer tediosa quando vista por olhos acostumados ao ritmo incessante das aventuras intergalácticas de Guerra nas Estrelas (1977) Mas, desde seu ponto de partida, trata-se de uma obra surpreendente: o diretor filma um grupo de hominídeos na pré-história disputando domínio à base de paus e pedras. Por certo, um enigmático monólito que reaparecerá em outra etapa como seu símbolo mais marcante. Até que um osso de animal arremessado para o alto se funde com a imagem de uma espaçonave cruzando o cosmos. Assim, nesse famoso plano que esboça um salto no tempo de milênios, está dado o tom filosófico que só cresce ao longo da narrativa.

Sabe-se que os astronautas terão de enfrentar um computador que assumiu o controle da nave, HAL 9000. Construído para gerenciar a missão a Júpiter, o mecanismo tecnológico fala e raciocina como humano e, vaidoso, não se desviará da sua tarefa: garantir que a viagem seja cumprida, mesmo que para isso tenha de se livrar de seus companheiros. O que reflete mais uma inquietação do diretor em relação ao avanço tecnológico. Esse pedaço de trama, por sua vez, não esconde o verdadeiro centro de interesse de Kubrick nessa história saída da imaginação de autor de ficção científica Arthur C. Clarke (que assina o roteiro com o diretor): traçar um painel da humanidade, desde o nascimento até a morte e introduzir nessa trajetória a visão da transcendência.

Há inúmeras outras referências, como a imagem do sol alinhada com a da lua, um símbolo do zoroatrismo, antiga religião persa fundada pelo profeta Zaratustra, na qual o sol e a lua crescente representam a luta entre a luz e as trevas. Ao som de "Danúbio Azul", de Johan Strauss, e de Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, entre outras composições eruditas, Kubrick filma o espaço sideral como se fosse o cenário de uma ópera cósmica.

Indicado a quatro Oscar (incluindo Diretor e Roteiro Original), ficou apenas com o de Melhores Efeitos Especiais. Em 1984, o filme ganhou uma continuação, o pífio 2010 - O Ano em que Faremos Contato, dirigido por Peter Hyams.

2001 - Uma Odisseia no Espaço / 2001: A Space Odissey
Diretor: Stanley Kubrick
Estados Unidos/Inglaterra (1968).
Bravo! Especial - 2009

.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Juazeiro do Norte: a Saga do Centenário

Arquivo Cariri # 24 | Do papel # 20

Neste dia 22 de julho de 2013, quando o Juazeiro do Norte completa 102 anos de emancipação política, reproduzimos um texto que O Berro assinou e foi publicado na última edição da Revista Geral, lançada em abril deste ano.

No texto relatamos a Saga do Centenário de Juazeiro: a missão que O Berro encarou em 2011, no ano do Centenário do município fundado pelo Padre Cícero. Abaixo reproduzimos na íntegra o texto sobre essa "aventura centenária".
____

Saga: Centenário de Juazeiro
Revista Geral (ano 7, nº 13, abril 2013)


Quando dois berristas, André (o detalhista chato e olho de sauron) e Reginaldo (a mãe e bulidor gráfico), trabalhavam em 2010 para enviar propostas para o concurso da Logomarca do Centenário de Juazeiro do Norte, não imaginavam o que estaria por vir. E, de cara,  para animar os trabalhos, a logomarca que enviaram (aquela que ilustrou tudo ligado ao Centenário da cidade) foi a vencedora do concurso. Mas isso só era o pandeiro do Mateu, todo o Mateu ainda estaria por vir com suas estripulias.

Continuando os trabalhos iniciados pelos idos de 1996, O Berro frequentemente se reúne para trocar ideias pro blog, trolagens mútuas e reavivar os ânimos e projetos de seus integrantes. No dia 13 de abril de 2011, uma quarta-feira como outra qualquer, pensamos como O Berro poderia atuar em meio àquele frisson que era a comemoração do Centenário de Juazeiro. Eis que, magnanimamente, a cabeçarra iluminada de Ythallo (poeta, cineasta e matemático de plantão) lembrou, num cálculo rasante, que faltavam 100 dias para o tão esperado Centenário.

Entre devaneios, um acabou sendo fixado: a equipe, formada ainda por Reginaldo e Hudson (produtor, futuro jornalista e ativista revolucionário ultra jovem), fez coro majoritário pela odisseia que surpreenderia até mesmo o olho que tudo vê e Xico Fredson (espião infiltrado e agitador mal humorado): “que tal fazermos no blog uma postagem diária sobre Juazeiro, até a data de seu aniversário?”. Pensa na treta: 100 anos, 100 dias e 100 publicações. Sem noção. Mas Padim Ciço haveria de ajudar. E como diria o General, “tá é danado!”; replicado pelo Capitão Virgulino, “danado o quê?”; treplicado de novo pelo general: “danado de bom”. E “missão dada é missão cumprida!”.

Juazeiro do Norte é uma cidade peculiar — com tanto misticismo em sua história e magia resplandecendo de sua cultura popular — além de viver dias de um pique de investimento financeiro que dá suporte ao crescente “progresso”. Embora com molas que impulsionam seu desenvolvimento, Juazeiro também é uma cidade repleta de problemas, a maior parte fruto de uma sequência de administrações públicas desastrosas.

Com tal cenário não haveria dificuldade para encontrar assunto para os 100 dias. Isso se os berristas fossem desocupados: era sair na praça e “esbarrar na postagem”. Mas ninguém do Berro vive do (e pro) blog. Nossa equipe é formada por pais de família, trabalhadores, estudantes, artistas, espiões, semilíderes sindicais, etc., e aí residia a dificuldade de caprichar diariamente nas postagens. Mas era necessário aquele brado alternativo desvinculado de politicagem banguela. Fomos à trincheira e por 100 dias suamos às bicas para honrar o compromisso.

A cada nova foto, vídeo ou história de Juazeiro saltavam as tintas da forte religiosidade e a tradição das manifestações artísticas. O legado do reisado, do maneiro-pau, do cordel, da xilogravura, do artesanato, da poesia que corre veloz pelo asfalto das ruas estreitas, das cores das pinturas do saudoso Luís Karimai. Tem isso e vai além: Juazeiro que tem rock, hip-hop, publicidade, (muito) trabalho, rádios, TVs, universidades, pastel frito na hora, trânsito caótico e “uma esquina em cada bar”.

Nossa missão era fazer um recorte, transformar a “saga do Centenário” numa oportunidade de passar alguns recados, transmitir para os leitores do blog um pouco do que está sendo e do que já foi produzido na cidade. Vale(u) a pena (re)contar as histórias, que são ricas e curiosas, desde quando o Padre Cícero pisou pela primeira vez no antigo vilarejo, passando pelo início das romarias, pela emancipação política e por tantos outros fatos inusitados que estão no esporte local, na política, na religião e no emocionante grid de motos que você vê diariamente no sinal verde mais próximo.

Sagacidade (algumas postagens sobre Juazeiro do Norte):

■ No cinquentenário de Juazeiro, em 1961, a novidade foi a chegada da energia elétrica (“a luz de Paulo Afonso”) na cidade.

■ 1991: foi em Juazeiro que o então Presidente Collor fez um pronunciamento “inflamado” (com trocadilho mesmo), dizendo que tinha “nascido com aquilo roxo” (maquiando a expressão “saco roxo”). No ano seguinte o Brasil que não teve mais saco e Collor foi obrigado a largar a presidência.

■ 100 anos de emancipação política, mas de grandes romarias a cidade já tinha 122: em 1889 chegou pela primeira vez a Juazeiro (ainda um pequeno vilarejo) uma grande quantidade de fiéis atraídos pelos relatos da hóstia transformada em sangue na boca da Beata Maria de Araújo.

■ Em 1995 o ator juazeirense José Wilker publicou um texto defendendo que o Aeroporto de Juazeiro deveria se chamar Príncipe Ribamar, em homenagem ao personagem conhecido na cidade. No blog publicamos o texto que explica o porquê.

■ O poeta Carlos Drummond de Andrade publicou no Jornal do Brasil, em 1970, artigo comentando o poema “Artesãos de Juazeiro” escrito por Pedro Bandeira. No blog publicamos tanto o poema como o artigo.

O Estádio Romeirão foi o palco da despedida de Sócrates do Corinthians, em 1984, em amistoso contra o Vasco da Gama. O evento inusitado para a cidade foi tratado por muitos como sendo mais um milagre.

■ Como toda cidade que se preze, Juazeiro também tem o seu “Monumento da Besteira”. Pelo menos um.

■ O trapalhão Didi subiu na estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Mas o repórter Roberto Bulhões não fez por menos e subiu na estátua do Padre Cícero no Horto. “Temos ibagens”.

■ Juazeiro tem, em praça pública, até relógio que marca (ou que pelo menos deveria marcar) as fases da lua.

Equipe O Berro, na Revista Geral, abril de 2013
.