Centenário de Juazeiro do Norte # 48
Embalado pra viagem # 19
Seguindo na esteira da postagem anterior do centenário, na qual Xico Fredson comentou o livro O Padre e o Romeiro, hoje destacarei outra produção livresca que trata do universo do Juazeiro e do Padre Cícero. Nos últimos dias tive a oportunidade de reunir alguns livros relacionados à história, à cultura e ao universo mítico de Juazeiro. Aos poucos disponibilizarei alguns trechos dessas publicações e comentarei outras.
Hoje destaco o livro Nos tempos do Padre Cícero, de Francisco Nóbrega Teixeira, vencedor do Prêmio Estado do Ceará de 1985 para a Prosa de Ficção. O livro trata-se de uma reunião de contos históricos, baseados em fatos reais, mas naturalmente modificados e reelaborados pela criação literária. O enfoque é sempre o Nordeste do tempo de Lampião e Padre Cícero, tendo como principais personagens dos contos o povo: romeiros, beatos ou o padre santificado pela crença popular, o Padre Cícero Romão Batista.
Do livro de Francisco Nóbrega Teixeira, reproduzi abaixo o conto "O Santo Boi Mansinho", que trata de fatos que já foram destacados na postagem # 07 do Centenário de Juazeiro do Norte.
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O Santo Boi Mansinho
Corria o tempo nos idos de vinte e dois. Em rua do Juazeiro duas comadres se encontram:
— Dos Anjos, minha amiga, to aperreada que nem sei!
— Ôxente, Maricota, nunca tive de lhe encontrar com tamanha palidez. O que aconteceu?
— Foi com meu santo marido, o Zuquinha: pegou uma curuba, que a pele tá que é uma ferida só. Vive morto na coceira — parece um desesperado. Tá se deformando, comadre.
— Valha-me Deus, comadre — retrucou Dos Anjos.
— O pior de tudo é a desesperança na Medicina. Zuquinha já correu todos os médicos do Cariri, sem encontrar alívio.
— Comadre Maricota, vosmicê já viu falar do Boi Mansinho do beato Zé Lourenço, lá do sítio Baixa Dantas? Dizem que a urina dele pode mais que qualquer remédio.
— Já vi falar sim, inté pensei em levar seu Zuquinha lá. Mas voscimê conhece o feitio do meu marido — revoltado com a devoção dos romeiros — tudo ele acha que é supserstição e beatice desta gente ignorante.
— Pois se comadre quiser, me ajunto a vosmicê para tentar um convencimento do Major. Um morador de nossa fazenda jura por todos os santos, que a urina de Mansinho lhe curou de uma sapiranga. Quem sabe se eu lhe contando isto, o Major Zuquinha se convence?
Após muitos rogos gastos para convencê-lo, Major Zuquinha aquiesceu na ida ao sítio Baixa Dantas, fazendo, entretanto, impertinente observação:
— É a primeira vez que vejo mijo servir para alguma coisa!
No sítio Baixa Dantas, Mansinho de refestelava em ornamentado estábulo. Com o olhar perdido no horizonte, degustava lentamente uma saborosa papa. Ofertada pelos romeiros. Seus chifres engalanados com grinaldas davam-lhe um ar imponente. Dezenas de romeiros ajoelhavam-se em torno do boi, na reza de uma novena. Beirava à comoção aquele espetáculo de fervor religioso. Um romeiro gritou emocionado:
— Valei-me Padim Ciço, alcancei uma graça: a dor de cabeça que me maltratava há anos pegou no rasto do sumiço.
Apesar de comovido com aquele espetáculo de fé, o Major não admitia compartilhar daquilo que para ele parecia uma manifestação de misticismo primitivo. Sentia-se preso na emoção, contudo, de um arranco falou ríspido para a esposa:
— Vamos para casa, Maricota. Tudo isto aqui é besteira e da grossa!
O plano resultou em nada. Não obstante, Dos Anjos, convencida do poder curativo da urina do boi, não desiste de seu intento de ajudaro Major — mesmo contra a vontade dele. Resolve lhe levar um litro do miraculoso líquido, tomando antes o cuidado de disfarçar o odor característico com Leite de Rosas e outros ingredientes.
— Major Zuquinha, lhe trouxe um remédio maravilhoso para curar curuba. Seu Teófilo, famoso farmacêutico do Crato, disse que era a última palavra. Um banho com o remédio, molhando o corpo todo e vosmicê vai ficar bonzim de verdade.
De relutância em relutância, o Major se debatia no dilema: no íntimo a suspeita de que se tratava da urina de Mansinho lhe repugnava, mas por outro lado, uma grande fé no remédio lhe dominava o espírito. Por fim a fé predominou. O Major, após dias de sofrimento, obteve pela primeira vez alívio com o banho terapêutico.
Após alguns dias, bastante alvoroçada, Dos Anjos aparece na casa dos amigos.
— Minha gente nem conto o que aconteceu — prenderam o beato Zé Lourenço e esquartejaram o boi Mansinho defronte a cadeia. Todo a mando do Dr. Floro.
— Não acredito, comadre! falou o Major consternado, pois que após sua cura, tornara-se simpático às crendices populares.
— Aliás, Major, quando me deram a notícia da morte de Mansinho, senti remorso por ter lhe enganado, e uma obrigação assentou-se em mim e quero lhe fazer uma confissão: o remédio que lhe livrou da curuba era urina do santo boizim mesmo.
O Major, que apesar de gabar-se de que não admitia ser enganado, respondeu:
— Não se preocupe, minha comadre. Cá comigo já era sabedor disto. Pra lhe falar a verdade, inté dei pra gostar dos romeiros, e sou muito grato a Mansinho.
— Será que o Major num podia fazer alguma coisa para soltar o beato Zé Lourenço?
— Faço sim, comadre, e com muito gosto. Coçou a barba e falou em seguida:
— Oh, Maricota! Traga meu revólver 38 que vou tomar uma satisfação com o encrenqueiro do Dr. Floro. Este aventureiro da bexiga precisa saber que não pode fazer tudo o que lhe der na telha aqui, no Juazeiro.
Com a raiva lhe esquentando o espírito, o resoluto Major da Guarda Nacional dirige-se para a cadeia. Soltaria o beato Zé Lourenço nem que fosse a ferro e fogo. Chegando lá, entretanto, esfriou o ânimo: o Dr. Floro já mandara soltar o beato, atendendo a inúmeros pedidos. E assim o chefe político de Juazeiro escapou, sem o saber, de perigoso confronto.
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Francisco Nóbrega Teixeira, em Nos tempos do Padre Cícero (1986).
Bem legal a história do boi,mas também mostra até que ponto chegava o fanatismo do povo sertanejo simples daquela época, se bem que imagino que a própria atmosfera do Juazeiro favorecia a isso, pois boa parte da população chegou ao lugar por conta dos milagres da hóstia e era composta de gente simples mas fervorosa na fé. Na época da morte do boi, os líderes políticos do Juzeiro, principalmente Floro Bartolomeu, queriam mudar um pouco a visão que se fazia da cidade de "lugar de fanáticos", por isso ordenou sua morte, e li que o beato José Lourenço e seus seguidores, antes de serem libertados, ainda foram obrigados a prestar alguns trabalhos forçados na cidade, e o boi virou churrasco.
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