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sábado, 18 de julho de 2020

Isolamento social, ventilação e apneia



por Amador Ribeiro Neto

Quando o poeta Alberto Bresciani escreveu e publicou Fundamentos de ventilação e apneia (São Paulo, Editora Patuá, 2019), ainda não se falava em coronavírus. Porém não deixa de ser indicial que a literatura mais uma vez antecipe a realidade. Senão, consideremos o que uma das estrofes do poema “Metabolismo” pontua:

Pode ser que um vírus se espalhe,
Uma brand new de gripe
Todo acaso pode ser letal

Me lembro que o saudoso Bóris Schnaidernann, em uma de suas aulas, nos dizia que o cinema existe na literatura antes de ser inventado pelos irmãos Lumière, com os planos de câmera, iluminação, fade out e fade in, etc. Iúri Lótman, pai da Semiótica Russa, na mesma direção, não hesita em afirmar que as artes antecipam as tecnologias.

Bem, falávamos da poesia de Alberto Bresciani, e é o que importa aqui. Seu livro, desde o título é um feliz achado em qualquer época. Nesta nossa, de isolamento social e afins, ganha especial realce. Friso: sua poesia não é destinada apenas a este momento, a esta circunstância: ela transpõe o agora porque é: 1. linguagem poética transtemporal e 2. imersão na condição humana. Ou como diria Pound: linguagem carregada de significado.

O livro de Bresciani possui duas partes/dois pulmões: 1. Ventilação espontânea e 2. Apneia. Ambas são coloquiais mas têm, no entanto, distintas dicções poéticas. E tal procedimento oxigena o livro. Lembro-me que comentando Incompleto movimento, livro de estreia do poeta (2011), escrevi: “A poesia de Alberto Bresciani tem um dos pés na busca do coloquial e outro na tradição clássica. Ora acerta, ora não. Ele parece almejar uma descontração da linguagem, mas tolhe-a com construções que lembram a poesia canônica bem comportada. Aquela poesia que nos remete aos neoclássicos, aos parnasianos e até – parece paradoxo – aos simbolistas”.

No livro seguinte, Sem passagem para Barcelona (2015), ele faz uma transição entre o primeiro e o agora lançado. Pois Fundamento de ventilação e apneia vale-se da mais fina linguagem coloquial e poética sem nenhum cacoete literário. Lê-se o livro com desembaraço e leveza tais como se estivéssemos numa sessão de cinema assistindo a um bom filme. E, se faço a comparação com cinema, ela não é gratuita. Desde o livro de estreia, o mundo imagético é uma das dominantes da poesia brescianiana.



Na primeira parte, o tratamento literário, para valer-me aqui de uma expressão cara a Cortázar, tinge-se de tal naturalidade que lemos os poemas em um ritmo que chega a dispensar seus títulos. A poesia flui em música e imagens. A narratividade é de tal forma fluida em ritmo e melodia, que o tema se faz música e dança para o leitor.

Mas há o outro lado da moeda. O medo do inevitável, a crueldade da evolução dos acontecimentos e a inexorabilidade da sequência dos fatos apavorantes ganham igualmente os sentimentos e a cumplicidade de quem lê. A forma poética imanta.  Há desespero e regozijo, febre e gozo, temor e alívio. Pode o leitor vivenciar a catarse, ou o distanciamento brechtiano. Depende de seu grau de consciência/vivência poética. De toda forma – com ou sem trocadilho –, a arte pulsa e impulsiona-se enquanto provocação. Regozijo ou flagelo, cabe a cada um.

Versos como

E então um tombo da cama para a vala
de corpos passados nos desperta,
assusta e empurra e estamos de pé

são um cutucão no leitor apático, ou ao menos, desligado. O que ele fará com este desenredar-se, só a ele lhe cabe. À poesia, a sequência de vogais fechadas (poucas) e abertas nos versos acima, bem como as consoantes linguodentais e bilabiais entre surdas e sonoras, desenham o tombo e o abrir-se para o despertar do novo mo(vi)mento.

No poema a seguir, a urgência do aproveitamento de cada instante faz-se na brutalidade de atos desesperados de felicidade.  O poema que leva o nome de um multicolorido peixinho moçambicano de apenas 6cm, “Nothobranchius Rachovii”, traz a convocação sob forma concisa, leve e breve:

Façamos como killifishes africanos
:que explodem as cores mais violentas,
Cuspamos agora todo som, ódio, fúria

Sabemos que tudo se vai à brevidade
de um único ano e nossas vidas nunca
terão a chance de beber outra chuva

A segunda parte, igualmente narrativa, ao abdicar da terceira pessoa e da fluência rítmica, opta por abrir mão de alguma indagação e mistério. E por trabalhar certa cadeia de sons com mais cadência. 

Agora as emoções nascem de um eu que fala, via de regra, diretamente ao leitor. Mas como aquele é também alguém interessado, parte do problema, a empatia se estabelece com rapidez. Embora com menor taxa de adesão. A dicção da voz poética, ainda que em alta, tem menor amplitude que na primeira parte.

Esta parte, ao ser aberta com uma epígrafe dúbia – “Que a vida não tinha cura, / o tempo me ensinou, e mais tarde” – orienta-se com seguidos movimentos de oxigenação e sufoco, ventilação e apneia. A epígrafe desenha os movimentos que esta seção terá. Poemas como “Escape” e “Corvos” desenham o percurso da vida que se afirma e se nega, avança e retrai, pois a vida não é unidirecional. Antes: é complexa, bastante complexa – e os tempos, côncavos e convexos.

Escape

Tanto rumor nos ossos e ainda
Esperamos a válvula, alavanca
Que desarme, alavanca
Que desarme artefatos fatais,
Espalhados pelos companheiros
De causa, doces irmãos, pais

Erga-se o velame, abra-se o ar,
Venha outra voz, convencimento
De que vale ainda respirar
Neste mundo ou em outro plano
Imaterial, se mais houver além
De nervos vocacionados ao fim

Retorne o tempo gasto no nada
E reconheçamos nossos quartos,
Feridos e mortos, os fantasmas,
Por mais que relutem em abandonar
A cena de sangue que nos retrata
Acreditar pode ser o estopim da queda.


Corvos

Não via os corvos,
mas eram corvos,
prendendo o tempo
E eu criava pombos

Quando você saiu,
as sombras
tinham penas negras
e ficaram pela casa,
pela garganta,
as suas penas

Ontem entendi
e acendi a luz.

Eis uma das belezas de Fundamentos de ventilação e apneia, de Alberto Bresciani: colocar a palavra em primeiro plano, privilegiar o lugar da linguagem poética e, concomitantemente, anexar elementos essenciais da vida pessoal e social. De hoje? De hoje e de sempre. Pois sua poesia não é didática e sequer datada. A atemporalidade é sua marca histórica. Ela é aliada do leitor que busca ver beleza.

Ver beleza é afundar os dedos no peito até alcançar o coração com as mãos quentes e acolher-lhe os pulsares: os todos-inteiros e os quase-quereres.  As migalhas trituradas e as dores de imensos vermelhidões sangrando coágulos. A beleza da entrega e da recusa. Do amor e da indiferença. Do temor e da licenciosidade. Do mar e do semáforo fechado. Esta é a oferenda, o ofertório, o dom, a dádiva do mundo de poesia que Bresciani nos brinda com ventilação e brisa.

Beleza para todos os tempos, num livro maduro, elaborado, sólido – e, acima de tudo, muito bonito.
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Publicado pelo Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, maio, 2020. Ano LXXI – Nº3, p. 38-40. Encartado na edição do jornal de 31 de maio de 2020.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular aposentado do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica), Barrocidade (poesia) e Poemail (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos mais recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- Da novíssima poesia paraibana: Edypo, Expedito e Guilherme
- ‘Para quando’, de Kaio Carmona
- ‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho
- ‘Identidade’, de Daniel Francoy

- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido

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sábado, 13 de junho de 2020

9 (+1) poemas de Fernando Pessoa e alguns de seus Outros Eu(s), por Flávio Queiróz



por Flávio Queiróz

Fernando Antônio Nogueira Pessoa (*13.06.1888 +30.11.1935): poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político português. Nele 1 é  um número múltiplo...

Nesse contexto, interessa-nos o POETA lírico, épico, dramático, saudosista, nacionalista, Português e Universal!

A Obra Poética de Fernando Pessoa pode ser estudada a partir de três aspectos:
1.Textos Ortonímicos: aqueles escritos com o próprio nome.
Mensagem é o único livro escrito e publicado por Ele/Si mesmo em português (1934).

2.Textos Heteronímicos: escritos com outros nomes, poetas com biografias, características e estilos diferentes do Fernando Pessoa. Destacamos três:
* Alberto Caeiro
* Ricardo Reis
* Álvaro de Campos.

3. Textos Semi-heteronimicos: neste caso o poeta, apesar de assumir Outros Nomes, mantém traços característicos de Fernando Pessoa quando escreve.
* Bernardo Soares, um dos autores de uma das obras pilares da Prosa Moderna em Língua Portuguesa, é o principal responsável por mais uma estratégia literária inimitável de Fernando Pessoa.

E, para aprofundar ou se conhecer mais sobre o que falamos até aqui, deixo uma bibliografia para iniciantes; um livro que aborda boa parte da Obra Poética; e um terceiro para quem deseja uma Leitura Crítica do Autor(es) e da sua produção literária.

1.Para Iniciantes:
Margens do Texto / Fernando Pessoa, de José de Nicola e Ulisses Infante. Editora Scipione (1995).

2.Literária:
Fernando Pessoa / Obra Poética, volume único. Companhia Aguilar Editora (1965). Organização, Introdução e Notas de Maria Aliete Galhos.

3.Crítica Literária:
Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa, de Fernando Cabral Martins. Editora Assírio & Alvim (2014).




E sem colocar um ponto final (não sejamos tão dogmático, pedia o próprio Poeta, ao tratar de sua obra), deixamos 9 (+ 1) POEMAS de Fernando Pessoa e alguns dos seus Outros Eu(s):


1. “Ulisses” (Fernando Pessoa)O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

*


2. “O infante” (Fernando Pessoa)

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

*


3. “Mar Português” (Fernando Pessoa)

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

*


4. “Nevoeiro” (Fernando Pessoa)
 

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

                Valete, Fratres.

*


5. “Autopsicografia” (Fernando Pessoa)

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

*


6. “Isto” (Fernando Pessoa)
 

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

*


7. “Poema em Linha Reta” (Álvaro de Campos)
 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

*


8. “Segue teu Destino” (Ricardo Reis)

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

*


9. “Há metafísica bastante em não pensar em nada” (Alberto Caeiro)

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

*


+1. “Emissário de um Rei Desconhecido” (Fernando Pessoa)

Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
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QUASE TODOS os poemas citados e outros não citados podem ser encontrados no YouTube, com  belas interpretações de atores, cantores, poetas e intelectuais do Brasil e de Portugal.

Apresentamos dois desses vídeos:

“Autopsicografia”, com Paulo Autran:


“Segue teu Destino”, com Maria Betânia (música de Sueli Costa):

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Flávio Queiróz: Professor das Disciplinas Literatura Portuguesa III e Introdução à Obra de Fernando Pessoa, no Curso de Letras da Universidade Regional do Cariri (URCA); Professor, Cronista e estudioso das influências ibéricas na leitura regional, assunto que o levará a uma viagem de estudos por terras lusitanas em 2021; publicou diversos trabalhos na área de Literatura e Cultura. Tem um livro publicado: Escrever de verdade: práticas de produção textual (2014).
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Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
9 (+1) poemas de O Belo e a Fera, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)
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9 (+1) importantes obras de filosofia, por Camila Prado
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9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins
9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira
9 (+2) contos de Rubem Fonseca para ler, por Elvis Pinheiro
9 (+1) filmes para assistir na Netflix, por Wendell Borges



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quarta-feira, 10 de junho de 2020

9 (+1) poemas de ‘O Belo e a Fera’, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)



Neste dia 10 de junho, data em que nasceu o poeta cratense Geraldo Urano (ou Efe, ou Lima Batista, ou Gandhi, ou Mérkur...), em 1953, nossa editoria inaugura uma perspectiva diferente das Listas O Berro 9 (+1), com a nossa própria equipe apresentando uma seleção de poemas do livro O Belo e a Fera (cantigas), lançado originalmente em 1989, com a assinatura de Lima Batista.

Em 2015 a obra de Geraldo Urano foi reunida e editada no volume O Ferrolho do Abismo, com design gráfico do Estúdio Caravelas e prefácio da poeta e professora Cláudia Rejanne. No dia 5 de fevereiro de 2017, Geraldo fez sua viagem para outros planetas, deixando como legado tantas histórias e poesias.

A imagem em destaque nesta postagem é uma ilustração de Reginaldo Farias, a partir de fotografia e desenhos do poeta (estes últimos incorporados ao design de O Ferrolho do Abismo) e a capa original do livro O Belo e a Fera.


Livro O Belo e a Fera (cantigas), de Lima Batista

Prefácio

O Poeta chega ao dia em que desperta e tem a certeza de que nunca adormecera. Olha o Sol e inicia um caminho de alguns poucos passos para beber na fonte cuja água lhe molha os pés, enquanto no peito dói a ânsia de sobrevoar o Universo, sem pátria e muito menos pouso certo.

Uma manhã de junho. Na Serra, esperança afoita, donde trinam pássaros coloridos, nas flanelas das bananeiras. O gado pasta indiferente ao triturar das moendas dos engenhos em começo de moagem. E as águas descem gorgolejantes as lajes da Cascata.

Frio bom, brisa gostosa e a música do estio. Uma solidão cúmplice a falar de planos maiores em elaboração na mente de Deus. O homem e a espera, qual centauro que abrisse os olhos pela primeira vez. Vê o Vale que desce das encostas, indo repousar lá embaixo, nas cidades esdrúxulas; minutos que voam em farejo do novo que nasceu.

O Cariri traz, em Geraldo Lima Batista, a escrita da renovação, mais do que poesia, vigília e certeza, aviso de preparação do Futuro.

José Emerson Monteiro Lacerda
_


meu amigo geraldo,

acabei de brincar lendo teu livro. e que brincadeira gostosa e tranquila é sentir o encaixe perfeito das tuas palavras. essas palavras são nossas. são palavras de um mundo mágico que você sabe muito bem encontrar no meio de tantos truques baixos.

a vida tem disso. às vezes você recebe um soco por sobre o estômago. é um golpe seco e cruel. às vezes nós encaramos o algoz e partimos para um próximo e infinito round. às vezes nós vamos a nocaute técnico ou violento, humilhante e injusto, mas nunca definitivo.

imagine muhammad ali numa esquina de new york ou de mauriti distribuindo sorrisos em vez de socos, nocauteando a espera, pois quem sorri não tem o que esperar.

é, brother, só nos resta sorrir diante da baixaria. isto é uma arma. e como diz o poeta: uma arma muito quente.
do seu amigo,

carlos rafael dias
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9 (+1) poemas de O Belo e a Fera (cantigas)

os ladrões estão satisfeitos
com a terra nua
todos os poderes
tiram partido dela
políticos artistas e religiosos
fazem loteria de suas vestes
mas não tarda
o dia da verdade
não tarda a hora da justiça


*


o sino está tocando
nada de novo no manicômio
ela tem lábios encarnados
pergunta quando vou fugir
escrevo seu nome na parede
meu anjo
qualquer dia nós vamos sair


*


antes que eu te chame escandalosa
vê se achas uma rosa
deixa o sol entrar
adeus cidade de detroit
vou embora pra chicago
apenas outro lugar
a outra é não me toque
te abaixes nova iorque para o luar passar


*


és como um tigre minha flor de roma
lirismo meu
ou quem dirá que sonhas?
a semana passou
como um cavalo veloz
como uma flexa passou por nós
se eu fosse um bicho
eu não teria sábado
amo israel
saí do mar procurando o céu
meu anjo
essas coisas de menestrel


*


escuta o vento
tu que és inspirado
elas não vão mal?
se aborrecem com a claridade
não és tu que és desajeitado
que só sabes passar mal
é a noite que invadiu o dia
melhora!
lava o teu rosto na pia


*


não sei de nada
não digo nada
nem nadar eu sei
mas sai do meu caminho
tu que és violento
ladrão de ninhos


*


o destino cruel de um país
confusão na praia
hotéis vazios
a juventude castigada
do noticiário sai fumaça
a paz de cachimbo
some por entre dedos nervosos


*


as condições históricas
a distribuição geográfica das raças
os sobradões coloniais
o amarelo da ásia central
tudo é caleidoscópio
eu consulto o relógio
quando se quebrará o espelho?
nada a contar
a não ser cacos prá todo lado


*


lorena sabe o que é
ser nesse tempo mulher.
atirei o meu anzol
para pescar um sonho
pesquei o abandono.
quando o futuro vier
não quero estar tão nua
as multidões carentes
no modernismo das ruas.
o grito do tucano
no domingo pernambucano
lorena sabe o que é
ser nesse tempo mulher
é bolero prá um deus
por telefone um adeus.
sempre ouvindo o vento
guardado o velho senso
no céu o sol e a lua
na terra a vida crua.


*


o planeta amarelo está em brasa
são os vulcões que se espalham
se eu dissesse
as moças de saigon
caminham pela noite azul da ásia
estaria mentindo
a primavera agora é só verdade
quem deterá os oceanos?
ou impedirá os rigores do inverno?
e essas cidades
para onde querem ir?
que crescimento besta é esse? 
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Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
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9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira
9 (+2) contos de Rubem Fonseca para ler, por Elvis Pinheiro
9 (+1) filmes para assistir na Netflix, por Wendell Borges
10 (+1) livros de escritoras que me tocaram, por Dia Nobre



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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Que saber é esse?



Poesia não é questão de verso, pressupõe trabalho, racionalização, construção e, principalmente, um saber. É o que mostra Amador Ribeiro Neto em Poemail, em linguagem experimental e consonante com o concretismo

por Anelito de Oliveira

Novo livro do paulista Amador Ribeiro Neto, radicado em João Pessoa, apresenta coletânea de poemas, em que apresenta a possibilidade de saber de si e do outro: “Livros nos devolvem quem somos”

Meu jovem filho
“quisera eu cosê-la / (a natureza) // a navalhadas /
e punhaladas // foices / e facadas // enxadadas / e machadadas //
sová-la / e sová-la // até devolver/ -me // intacta em sua alegria /
de mil sóis // a vida / de meu // jovem / filho”

Quando publicou seu primeiro livro de poemas em 2003, Barrocidade, Amador Ribeiro Neto, paulista de Caconde radicado em João Pessoa desde 1991, já era conhecido e admirado como um dos mais importantes pesquisadores da obra de Caetano Veloso e sensível crítico de poesia. Os poemas que publicou na antologia Na virada do século, organizada por Cláudio Daniel e Frederico Barbosa para a Landy, em 2002, constituíram uma “avant première” para uma poesia desejosa – não saudosa – de “avant garde”, de se concretizar como objeto dinâmico, movimento vivo. O segundo título publicado pelo autor depois de longos 12 anos, já em 2015, o “futurista” (ressoando Álvaro de Campos) Ahô-ô-ô-oxe, foi uma espécie de “tuitaço” artesanal, publicação aparecida em Florianópolis pelo selo Cartonera, anunciando o seu novo livro: Poemail, uma coletânea de poemas que agora sai pela Patuá.

A experimentação de linguagem, desarticulações e rearticulações do código verbal, é o traço que primeiro salta à vista numa poesia que se coloca abertamente no horizonte do concretismo e de outros tantos “ismos” do passado. Elucidar essa relação, num exercício de crítica intertextual, é importante, sem dúvida, num momento em que questões externas, sobretudo a questão de gênero e da mediação, sobrepõem-se muitas vezes de modo grotesco a questões internas, que dizem respeito à mecânica mesma da poesia. Todavia, o reconhecimento da relevância do gesto de Amador depende da qualificação dessa relação, da explicitação dos seus índices de autenticidade, de tal modo que possamos perceber um “intercessor” (Deleuze) dos “ismos”, que acrescenta dados ao repertório já convertido em tradição literária, não um mero emulador desses “ismos”.

Em consonância com o concretismo, a poesia não é, para o poeta de Poemail, uma questão de verso, mas uma questão de fazer, que pressupõe trabalho, racionalização, construção e, antes de mais nada, um saber. Que saber é esse? Este é o ponto fulcral, eu diria, que é preciso tensionar, tentar elucidar, sabendo, de antemão, que não é tarefa fácil, sobretudo em razão do fato de que estamos diante de um poeta “savant”, não de um criador de poemas espontâneo, movido pela famigerada inspiração. Toda a primeira parte de Poemail, denominada “Elos”, decantando poetas, críticos e prosadores, atesta não apenas uma rede de relações intertextuais – dado previsível –, mas um “modus operandi” do saber letrado, cuja particularidade consiste num dobrar-se, num volver sobre si mesmo: “Livros nos devolvem quem somos /: o avesso / do / nada / de / novo / a / o avesso” (A morte e os livros).

Ao contrário de grande parte dos poetas ditos cultivados, que ainda hoje percebe a relação com a poesia a partir de um preceito beletrista herdado do século 19, Amador Ribeiro Neto encontra nos livros – de poesia, no sentido genérico de “poiesis”, de criação – uma possibilidade de saber de si – e, concomitantemente, saber do outro. Seu gesto poético, como já o demonstrava desde o turbulento Barrocidade, não é narcísico, autocomplacente, mesmo quando se empenha em falar do sentimento de pai diante da morte trágica de um filho. Vejamos já, para exemplificar este aspecto, o que se passa no belo “Meu jovem filho”, um dos momentos viscerais de Poemail: “Quisera eu cosê-la / (a natureza) / a navalhadas / e punhaladas / foices / e facadas / enxadadas / e machadadas / sová-la / e sová-la / até devolver/ -me / intacta em sua alegria / de mil sóis / a vida / de meu / jovem / filho”.

Esse poema, ao lado de outros em que o poeta atém-se a eventos dolorosos, como depressão e suicídio, figura na terceira e última parte de Poemail, denominada “Dentros”, precedida por “Sítios” e a já citada “Elos”. Saber de si, adentrar-se, dobrar-se, coloca o poeta numa situação de enfrentamento brutal da natureza, em que reluz uma verdade experienciada, com sabor de agonia, que tem sido sistematicamente evitada, quando não censurada, desde os anos 1990 na poesia brasileira em nome (quem sabe?) de uma saúde institucional, acadêmica, do campo literário. O movimento – corajoso – que “Meu jovem filho” realiza é compreensível à luz do que Foucault explora n’A hermenêutica do sujeito: a perspectiva socrática do conhecer a si mesmo consiste num despertar da interioridade como esfera incômoda, cuja imagem é a de um animal acometido por um tavão, o inseto que produz uma coceira terrível, um mal-estar no corpo.

Resistência ao Estado opressor

Nascido em 1953, Amador Ribeiro Neto tinha 11 anos em 1964, quando os militares tomaram cinicamente – tal como tem acontecido no país de 2016 para cá – o poder, investindo na demonização da democracia e instaurando, a partir de 1968, um “estado de exceção”, com a negação de direitos fundamentais, a começar pela liberdade de expressão. Tendo vivenciado as agruras daquele cenário, Amador pertence à geração que teve no incômodo, na insubordinação, no “desbunde”, como se dizia nos anos 1960 e 1970 ao ritmo da contracultura, uma questão de honra, um índice de resistência ao Estado repressor. O fato de sua poesia ter começado a aparecer em livro somente em 2003 não pode constituir estímulo para leituras agorais, presentistas, convenientes, pautadas apenas em valores teórico-críticos considerados atuais. Evidente que, como Murilo Mendes se via, o poeta de Caconde não é seu próprio sobrevivente, mas seu próprio contemporâneo – com toda a complexidade que este conceito implica, todavia.

Ainda à luz do modo inquietante como Foucault repensa a subjetividade, é possível dizer que o tavão de Amador – e de todos os marginais, alternativos, vanguardistas da sua geração – é a ditadura militar, o “Estado de exceção”, que provoca ânsias rimbaudianas de desregramento de sentido, ataques de “beat generation”. Poemail nos permite perceber uma espécie de passo a passo desse processo no âmbito específico de uma poética: os “elos” autorais, os “sítios” habitados, os “dentros” acessados. O que conta nesse processo, segundo essa ordenação, é, em primeiro lugar, o nível discursivo, a representação, a “realidade de signos”, para lembrar Haroldo de Campos, uma das referências estruturantes do poeta em Amador, ao lado de Caetano Veloso e, como Poemail o revela agora, João Cabral. Em segundo lugar, contam nesse processo duas geografias – a paulista e a paraibana. E, em terceiro lugar, conta a vida vivida, a experiência nua e crua de existir, afeto familiar, doença, morte – e a alegria!



De fato, é a alegria que, como assinala o poeta Ronald Polito no prefácio a Poemail, desponta como fatura geral, ponto luminoso da geleia, nesse livro que é tão século 21, afim da internet, hipertextual, rizomático, quanto modernista, generoso com as brasilidades, as feiras, as malícias, os altos e baixos, as contradições cotidianas de um país transbarroco. A “alegria é a prova dos nove”, como sentenciou Oswald, mas não só isso; é um torquatiano porto seguro, mas também não só isso; é uma caetânica auto-afirmação sobre os podres poderes circundantes, mas algo que também vai mais além disso. A alegria de Amador é uma alegoria, para lembrar Celso Favaretto lendo a Tropicália, do processo de desregramento de sentido como processo de barroquização, que pressupõe uma compreensão da matéria de poesia – temas, eventos, sensações, experiências, signos diversos – como algo modulável, dobrável, variável. Trata-se de uma alegria que resulta de um saber sobre si mesmo como objeto comunicante, espécie de “eumail”.

Toda a autenticidade desconcertante que atravessa Poemail se deve, sem dúvida, a uma perspectiva sobre a alegria, esse controverso capital nacional, muito próxima àquela concebida pelo poeta e psicanalista mineiro Hélio Pellegrino, um dos maiores poetas-sabedores do país, numa crônica que é uma obra-prima, hoje constante do seu A burrice do demônio, coletânea organizada pelo jornalista Humberto Werneck. “Toda alegria longa e autêntica – é severa”, diz Hélio, “o que não impede que a alegria seja leve e tenha gosto de vinho.” Essa crônica se chama “A construção da alegria”. Ainda no início desse belíssimo poema em prosa, diz o autor de alguns dos versos mais pungentes de sua geração, reunidos pelo mesmo Werneck no volume Minérios domados: “Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis”.

Realmente, não são fáceis as ferramentas com as quais Amador Ribeiro Neto constrói o seu barco-alegria. Poemas como “Ensimesmado” (“cada dia / entendo / mais & mais / profundamente / o som / surdo / dos / suicidas”), “A cerca da dor” (“a dor / corrói o metal dos edifícios”) e “Invocação das dores” (“largar livros / leituras / escritas / todo / & / qualquer / texto / para que / adentrem / angústias / desgraças / flagelos”), todos pertencentes aos “Dentros” de Poemail, dão a precisa dimensão existencial dessas ferramentas, desvelando a razão da particularidade “ivre”, bêbada, por isso mesmo humana, frágil, sensível, do barco do poeta. O artifício vanguardista, atualizado em clave concretista ou barroquizante, articula-se, nessa poesia, de modo produtivo a uma substância sempre tensa, agitada, transbordante, que não aspira apenas à leitura fria, mas a um envolvimento corporal, dançante, cantante, com o leitor. O Poemail do poeta do barco-alegria grita, como o Cazuza de “Boas novas”: “Então, vamos pra vida!”.
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Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O iludido (Páginas, ficção), Traços (Patuá, poemas) e A aurora das dobras (Inmensa, ensaio) entre outras obras.

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domingo, 19 de abril de 2020

‘Ao locutor da Rádio Araripe, Elói Teles’, poema de Patativa do Assaré




Ao locutor da Rádio Araripe, Elói Teles

Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas nunca esmorece, procura vencê,
Da terra adorada, que a bela caboca
De riso na boca zomba no sofrê.

Não nego meu sangue, não nego meu nome,
Olho para fome e pergunto: o que há?
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Tem munta beleza minha boa terra,
Derne o vale à serra, da serra ao sertão.
Por ela eu me acabo, dou a própria vida,
É terra querida do meu coração.

Meu berço adorado tem bravo vaquêro
E tem jangadêro que domina o má.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ceará valente que foi munto franco
Ao guerrêro branco Soare Moreno,
Terra estremecida, terra predileta
Do grande poeta Juvená Galeno.

Sou dos verde mare da cô da esperança,
Que as água balança pra lá e pra cá.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ninguém me desmente, pois, é com certeza,
Quem qué vê beleza vem ao Cariri,
Minha terra amada pissui mais ainda,
A muié mais linda que tem o Brasí.

Terra da jandaia, berço de Iracema,
Dona do poema de Zé de Alencá.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.
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Patativa do Assaré em Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino (Editora Vozes, 15 ed., 2008).

O radialista, escritor e folclorista Elói Teles de Morais nasceu em Crato, no dia 19 de abril de 1936, e faleceu no mesmo município, em 9 de outubro de 2000.
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Seu Elói recitando poesia de Luciano Carneiro no programa Coisas do Meu Sertão, na Rádio Educadora:

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sexta-feira, 17 de abril de 2020

Da novíssima poesia paraibana: Edypo, Expedito e Guilherme



por Amador Ribeiro Neto

Não é novidade pra nenhum leitor que há uma efervescente produção de livros de poesia no país. De um lado, as facilidades da Internet e, de outro, a ousadia de novas editoras que vêm revolucionando o viciado mercado brasileiro ao apostar em novos nomes.

Aqui na Paraíba temos uma geração de poetas que começa a publicar nos anos 2000 e já prima pela excelência de qualidade. A esta produção estou nomeando- a “novíssima poesia paraibana”.

Há vários nomes de peso. E a antologia que estou organizando, com o recorte acima, deve retratar o que se produz em nosso estado hoje.

Na presente coluna vou ater-me a três nomes, motivado por seus recentes lançamentos. De cada poeta transcrevo três poemas.


1. Edypo Pereira

A poesia de Edypo Pereira tem a manha de ser leve e certeira. Não faz rodeios. Pega o leitor. Prende-o. E dá-lhe um banho de prazer. Não sem, antes, pregar-lhe um bom susto. Sim, este poeta não faz concessões às facilidades. Não ajuda o leitor a ser beócio. Antes: sacode-o pelos colarinhos, pela gola da camiseta. E lança-lhe, no peito, o corpo de uma poesia encorpada.

De uma poesia que pega o leitor e o conduz a caminhos inusitados. Ainda que usuais. Sim, Edypo toma o mais usual como matéria viva e cortante de sua poesia. E o converte, subverte, advertindo o leitor de que o bom é também prazeroso e pode divertir. Além de fazer pensar.

Sim, esta poesia é leve e aguda, faz rir e refletir. Seduz e escoiceia. Não há como fugir de seu domínio. O leitor vai perceber que um poema abre-se para outro e que há uma trama de linguagem e de sentidos que é muito atual. Que é dinâmica. Que não deixa a peteca da qualidade cair. Qualidade entendida como trabalho com a palavra. Trabalho tão bem feito que chegamos a pensar que esta poesia é feita por um espontâneo digitar na tela do computador. Como se Edypo escrevesse e dissesse: é isso aí, está pronto.

É tão fluente, tão apaixonantemente engendrada, que o possível peso de sua construção dilui-se. Rarefaz-se. E fica o sólido da imagem, do som, da ideia girando na cabeça e no coração da gente. Uma poesia que dá o recado e nos provoca. Por isso, o poeta não hesita em valer-se tanto de palavras de baixo calão como de palavras da alta tecnologia. Não importa o universo semântico. Importa o que ele faz com a palavra. O mundo é esta carnavalização entre o baixo e o alto, o sujo e o sublime, o remendado e o inconsútil. A poesia é a linguagem singular. Aquela que estremece a cabeça e o coração.

Por isso mesmo Edypo Pereira lança sua ágil poesia para leitores espertos. Antenados. Aqueles ligados no aqui e agora. Amor, humor, rancor, despavor. Enfim, uma poesia intensamente século XXI. Pra ler e vibrar. Bem-vindo Turbolento (Ed. Penalux).


contato

ói
ói o disco
fazendo

ziggyziggyziggyziggyziggy

hora parece star distante
(ou)tra posso escutar
um tom major

você pode ouvir?

oficina da ideia

primeiro vem martelada
no hipotálamo

crashcrashcrashcrashcrash

como se eu tivesse tatuado
na cabeça
cuthere
passa
o tempo inteiro
serrando o crânio

vrukumvrukumvrukumvrukum

picareta
de onde ela veio
&
pra onde ela vai
não sei dizer

juízo final

no telão de led do juízo final
a humanidade saberá
que você nunca fez
poemasgoodvibes

sal e espeto nas mãos de mefistófeles
aguardando a carne

vai rolar
canibalismopoemofágico
na casa de satanás


2. Expedito Ferraz Jr.

Expedito, desde sua estreia com Poheresia, já se firmara como poeta que tem o que dizer. E, mais que isso, sabe como dizer o que quer, o que deve, o que merece ser dito. Antenado com as coisas da literatura, e arguto observador do cotidiano, com este seu novo livro reafirma a pegada certeira e lírica de sua poesia.

Como poucos – como os grandes sabem fazê-lo –, ele imbrica o lirismo mais sublime a um lirismo social que denuncia as fragilidades e as fragmentações da vida – social ou entre quatro paredes. O eu-lírico, perspicaz quanto sagaz, tanto veste como despe-se, das manhas, manias, saliências e reentrâncias da vida e da representação dela, via palavra.

Nesta poesia a linguagem é o vetor que nos conduz ora por estreitos, ora por largos caminhos, em linha reta ou labirintos, divisando a ampla geografia aberta ou os claustrofóbicos emaranhados de sombras. Uma poesia limítrofe entre a afirmação e a negação, sem ater-se à amarra dos valores. Uma poesia que vence as mordaças, sociais ou pessoais, para avançar rumo a uma expressão que diz o não dito, que capta o pouco – ou nada visto –, que flagra a fragrância do volátil, dissolvendo-se do concreto. E nos devolve a ele em eterno retorno.

Uma poesia que engendra outra máquina dentro da máquina usual do mundo. Por isso mesmo, ler Expedito Ferraz Jr. é adentrar na densa floresta de signos que a vida, a linguagem e a poesia nos oferecem. E para a qual, estamos pouco – ou, quase sempre – nada atentos.

Por isso mesmo esta poesia é um chute na canela da mesmice, da pasmaceira, do rol beócio de estar e reagir segundo controles remotos autoprogramáveis. Ela cava um abismo face às seguranças e certezas do leitor. Deleta o conhecido. Detona o dèjá-vu. Abre abismos aos pés de cada um. E anuncia uma possível ponte, que somente ao leitor atento é dado perceber.

Por isso mesmo, cativa, apaixona e prende o não hipócrita, o gêmeo, o irmão que está farto do conhecido, surrado, repetido. Aquele que, por sentir fome e sede, não teme imiscuir-se no visgo da vida, no visgo das coisas. Lambuzar-se de poesia.

O livro está dividido em duas partes – uma com poemas inéditos e outra com poemas (alguns revistos) que compõem Poheresia. Reunir parte dos poemas de livro de estreia ganha relevância ao deixar claro que o poeta, ainda que com apenas dois trabalhos, já é o feliz proprietário de uma dicção própria, um modo de alinhar-se dentro da produção contemporânea – aquela composta pela mais expressiva poesia de nossos tempos. Em ambos os livros, a verve sublime e irônica, a contenção e contenção verbais ao lado dos poemas mais discursivos, a espacialização vocabular, os trocadilhos vívidos e, de fato, inusitados – quer seja, criativos – o verso intratexto, intertexto e extratextual. Resumo da ópera: um poeta que sabe o ofício do verso e não abre mão da emoção de exercê-lo com finesse e humour. Bem-vindo O visgo das coisas (Ed. Penalux).

Desconcerto

um quarteto
de cordas

um arranjo
de flores

um solo
infinito


Brinde

dois copos
ocultam
um
mesmo luar
no
espaço


O visgo das coisas

Tempo em que, pra ter ensejo,
o ser das coisas carecia
de se valer da alma dos bichos
ou de pessoa humana
(modo de sedizer).

Máquina-de-escrever, por exemplo:
pra quê? pra quem?
Mas, quando deu fé,
ela sorrindo tanto dente,
muito que brancos,
foi ficando ali que ficou sendo
máquina-de-sorrir-ainda-que-todavia.

Guarda-chuva também, resignado,
em surdo haver de ser ave noturna,
recolhido em si, mofino, desalado,
sem uso sem asa sem voo sem chuva sem chão,
dormindo pendente, no esquecido
de nunca ter sido morcego,
antes a flor enlutada,
o agourento corvo
e nunca bengala,
e não sequer seu guia

Dos bichos alados, porém,
o janelão era o demais vivente,
suas venezianas costelas azuis
assoviando sempre e sempre,
e o grande par de asas
que se rebelava alguma vez,
mas só quando o vento suscitava,
como um gesto da mão
responde em sestro
ao zoom da escuridão de um pensamento
e sofrendo e sofrendo a deslembrança
de um talvez antigo voo.

tempo em que, por ser espelho,
o visgo das coisas padecia
mísero de luz, que é sem o que
sequer as réstias das orquídeas crescem,
nem as mandalas das aranhas acontecem.


3. Guilherme Delgado

Estrear com um livro consistentemente estruturado, sob o ponto de vista formal, e com uma gama admirável de significados, é coisa pra poucos e raros. E Guilherme Delgado está entre eles.

Dividido em duas partes, simetricamente compostas num geometrismo espe(ta)cular, o livro é coisa de poeta que faz sabendo muito bem como se faz bem, como se faz bonito, como se faz gostoso. Sim, porque esta poesia, sendo cabeça, é também estômago e coração. Sensibiliza e emociona porque pega o leitor pelo cerebralismo, pelo sublime – e por ambos. Sorte de quem sabe (é capaz de) recebê-la.

São vinte e dois poemas. Onze em cada campo. Digo, em cada seção. Por isso mesmo a explicitação verbal do título torna-se desnecessária – porque redundante. Basta o sinal gráfico dos dois pontos. Eles explicam tudo. Não é isso ou aquilo. Nem isso e aquilo. Nem aquilo ou isso. Nem aquilo e isso. São dois pontos. Sem nada antes nem depois. Instigando o leitor a pensar, a sentir. Convidando-o a ser copartícipe. A tomar o livro nas mãos, na mente, na emoção, na elaboração. O livro em sua unidade.

Esta dinâmica reverbera clara na primeira seção, intitulada “caligrafias”, em que poetas, ficcionistas, ensaístas, e até um diretor de cinema, surgem reciclados em suas biografias pessoal e intelectual.

Guilherme Delgado recicla de dentro. Penetra o corpo da vidobra de cada artista – e, uma vez nele, solta a poesia (do Guilherme) pra dentro da vida de representação de cada um deles (dos artistas).

Então, o gozo do texto do próprio poeta soma-se, em parcelas matemático-simétricas, ao prazer do texto do artista eleito, presenteando o leitor a soma das frações fractais.

Tal processo, planejadamente in progress, conduz à fruição de sins, nãos, talvez. Entregas e dissimulações. Lances dos lados de dados que, per se, desenham a poesia que se fabrica – e que se concebe enquanto plurívoca: música, imagem e significado no mesmo quadrado.

A segunda seção, intitulada “aqui o eco”, reverbera as obras e seus artistas da seção um, não mais reciclando, mas como produto acabado e final da poesia deste novo poeta. Tempo de conhecimento da dicção poética de Guilherme Delgado e seu tônus poético de densa materialidade.

Se antes o poeta imiscuía-se na dança instigante da conversa entre homens inteligentes, agora coloca sua voz no alto-falante e proclama de si, per si, por si.

Eis a voz do poeta. Eis seu livro de estreia. Que nos chega grande. Parcimonioso, mas exato. Denso. Leve. Delicioso. Deixando aquele gostinho de quero mais. Aquela vontade de já ler o livro que ainda vai chegar. Assim se faz poesia. Assim nasce um poeta. Bem-vindo : (Ed. Patuá).

caligrafia para haroldo

leio um livro e livro-me viro o livro lido e lido comigo até me ver livre
que lendo-me no outro torno-me outro ou isto sou esse um ao outro que
por força do hábito a um outro habito um outro que não se sabe mas desconfia
que é sentido pois sinto que se isso não é tudo na vida ao menos é delícia pros meus
sentidos posto que livre também livro se ao espelho shhhh rosno àquele
acumulador cínico para que doe outro de seus tantos livros lidos e nesse seu doar
nesse ser-se seu sem mim doa a semente de si ou simplesmente o eu le livre
que mallarmé não leu livro-lenda livro-infinito livro que ele legou a quem lê livre
de livros e um livro relido por dois leitor amigo já são dois livres a ler livros


VI

A fala é falo
afiado
trespassa a fenda
do grito
ampara o silêncio
tesado
faz filtro de ruídos
rimados
tem raiva mas ri
se relaxa
desembaraça
o pelo-novelo
quebra o gelo
calado
e ainda hoje
tem o seu apelo
preservado
pois haja o que
houver
ver é ágil


XI
Julgado
pronto
acabado
definitivo
julgo

Aponto
o dedo
deduro
o próprio
punho

Ponto

* * * * *

Eis um café pequeno da poesia que se produz hoje na Paraíba. Não nos faltam motivos de satisfação e orgulho.

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Publicado pelo Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, em janeiro de 2018, ano 68, nº 11, p. 08-11, na coluna Festas Semióticas.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular aposentado do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica), Barrocidade (poesia) e Poemail (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos mais recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- ‘Para quando’, de Kaio Carmona
- ‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho
- ‘Identidade’, de Daniel Francoy

- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido
- Tudo (e mais um pouco)

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terça-feira, 29 de maio de 2018

‘Para quando’, de Kaio Carmona



por Amador Ribeiro Neto

Kaio Carmona (Belo Horizonte, 1976) fez graduação, mestrado e doutorado na UFMG. É professor de literatura. Autor de Um lírico dos tempos (ensaio, 2006) e Compêndios de amor (poesia, 2013). Para quando (Belo Horizonte: Scriptum, 2017) é sua mais recente publicação.

Para quando: o título encerra uma pergunta? Uma reticência? Uma exclamação?

Não há sinal algum de pontuação, mas o título sinaliza para uma das constantes do livro: aquilo que interessa não está nomeado. Vale a espera? Que tempo é esse? Vale o desespero? Vale o silêncio? A contenção? O derramamento?

Há algo que, dirão alguns, beira o místico nos poemas de Kaio Carmona. Para outros, parece que há algo que, simplesmente, escapa a definições. Algo que não se entrega. Que se embrenha na dissimulação e lá faz seu habitat.

Por isso mesmo esta poesia encanta. Ela não parte e nem busca o místico. Ela se instaura e permanece na concretude da realidade. Na materialidade dos corpos.

Há um eu-lírico que lança sua voz a partir de um lugar comum, reles, cotidiano. Mas lança-a com timbres inusitados. Timbres que seduzem nossa audição. Atiçam nossos corpos e desejos. E, por isso mesmo, nos levam a correr atrás. Do quê? Não sabemos. A sedução nos conduz. Seguimos.

O volume está dividido em duas partes: a primeira, homônima ao título do livro, e a segunda, “O eu intermitente”. Ambas com o mesmo denominador mínimo, múltiplo e comum: o amor e suas circunstâncias.

Melhor seria dizer: incomum. Já que o amor, tal como o eu-lírico nos apresenta, embora comum e delimitado historicamente, surge-nos através de formas e modos de uma linguagem que o recria enquanto algo inédito. Recém descoberto. Para ser mais exato é melhor dizer: recém entrevisto.

E aí reside o perigo: o que falar daquilo que já foi mais do que falado/cantado? Na busca pela resposta a essa questão mora uma das qualidades de Kaio Carmona: tocar o mesmo, mas com nova gestualidade.

Outros modos e jeitos. Redizendo: outros des-modos e des-jeitos. Afinal, o poeta opera na faixa da desconstrução do conhecimento alicerçado no senso comum, no déjà-vu, nos saberes canonizados.

O poeta, que é também professor de literatura, sabe que a epifania da poesia deslinda-se na forma do dizer o que busca dizer. E não na mera semeação semântica das ideias. Por isso mesmo seu livro ganha o leitor em vários momentos. Diria até: na quase totalidade.

Sem dúvida alguma, são poemas na linhagem adeliana, naquilo que Adélia foi buscar em Drummond: a naturalidade de uma dicção poética nascida de fonte popular. Daí emerge a poesia das grandes e miúdas delicadezas. Uma poesia que, bela per se, reverbera, despudoradamente, Adélia e a lição do seu mestre, Drummond.

Transcrevo “Banquete”:

E finalmente conheces o amor
e nele apostas teus medos.
Amas com fome:
Dia após dia macerando a carne
com cansaço.
Tenaz.
E amas com raiva.
Torna-te meticuloso de sua posse.
Assassino.
Persecutório.
Vigilante incansável.
Finalmente conheces o amor
Para, conforme a fome, matá-lo.

Kaio Carmona não se envergonha do vasto amor. Como nada tem a esconder na intertextualidade, pari passu, com a poesia dos dois poetas citados e de outros, dentre os quais, Bandeira, Vinícius, Neruda, Florbela.

O amor não tem fronteiras. Foge a dicionários e influências. Tal como a poesia. E Kaio Carmona sabe disso. Por isso sua poesia é bandeira desfraldada com a obra de grandes nomes de nossa literatura.

Em Adélia Prado ele encontra a reverberação do universo drummondiano. Porém, de ponta-cabeça. Com os malabarismos de outra poesia, cozida ao fogo dos sentimentos. Transcrevo “Esse tráfego doméstico”:

De silêncio em silêncio
– em pequenos sustos –
vai se construindo nosso amor
diário.
Os cômodos da casa ainda são grandes,
como eram grandes os cômodos das casas
antigamente.
E mesmo assim nos esbarramos
de cômodo em cômodo,
esse tráfego doméstico.
Passa por mim sem me olhar e deixa sua mão
aleatoriamente
em algum lugar de meu corpo,
propositadamente.
Sei mais de você por esses encontrões e silêncios
que o seu sorriso, talhado na lida
do mundo das relações.
Seu sorriso:
Pequenos silêncios, pequenos encontros.
E o amor se erguendo no ar.
E o amor se entornando no chão.

Mas essa poesia feita da naturalidade da vida e das suas dicções bebe, antes de tudo, nas fontes de Camões e Dante. A grande lírica destes grandes líricos não poderia passar ilesa à poesia de um poeta sensível e ao seu coração. Que é também bombeado pelo sangue de suas leituras enquanto leitor e professor de literatura.

Para quando é um livro pra já. Porque o amor bate à porta. E sua insubmissão é uma lambada na dureza dos dias de hoje, de ontem, de sempre.  Nos dias de hoje, especialmente.

Lambada na dupla acepção: dança/música e paulada/cacetada.

Enfim, poesia de amor. Enfim, poesia de resistência.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- Bambuzal, de Rafael F. Carvalho
- Identidade, de Daniel Francoy
- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido
- Tudo (e mais um pouco)
- Cadela prateada

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