Centenário de Juazeiro do Norte # 83

Juazeiro do Norte possui na sua história figuras populares que ficaram conhecidas por sua arte, por atuações religiosas e algumas por serem consideradas sonhadoras, fazerem da imaginação uma ponte para uma vida mais mágica, menos burocrática, menos tediosa. Quem viveu na cidade até umas duas décadas atrás relata várias histórias de pessoas que circulavam pelas ruas e viviam nesse universo mágico do sonhar, sendo incompreendidas pelo mundo restritivamente "lógico", recebendo apelidos, sendo alvo de chacotas e outras invencionices em prol da "brincadeira".
Um dos personagens que entrou para a história de Juazeiro sob este prisma foi o Joaquim Gomes Menezes, que ficou conhecido na cidade pela alcunha de
Príncipe Ribamar da Beira Fresca. Em texto (
clique aqui para lê-lo), o escritor Daniel Walker afirma que o Príncipe Ribamar "era apenas um sonhador, um visionário, uma figura popular da cidade de Juazeiro do Norte e pessoa muito querida por todos que o conheceram". Por sua vez, o professor, historiador e sociólogo Titus Riedl classifica-o como "o personagem mais rico da história de Juazeiro".
Em vários relatos sobre o Príncipe Ribamar temos o depoimento de que se tratava de um exímio carpinteiro, que abandonou a profissão para perambular pelas ruas de Juazeiro e mostrar as condecorações recebidas, simbolizadas em medalhas penduradas na sua incrementada vestimenta. O Príncipe Ribamar faleceu em 1978 e hoje nomeia uma rua no bairro Carité, em Juazeiro.
Logo abaixo, reproduzimos um belo texto do ator juazeirense José Wilker, relatando histórias do Príncipe Ribamar e defendendo que o Aeroporto Regional do Cariri deveria se chamar "Príncipe Ribamar". Entenda o motivo no texto.
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O Príncipe Ribamar
José Wilker
(extraído da Revista Globo Rural, 1995, e republicado na edição 85 do JuaOnline, de 7 de janeiro de 2007)
Imagine uma pequena cidade do interior do Ceará aí pelos primeiros anos da década de cinquenta. Imagine Juazeiro do Norte nessa época. Aconteceu lá isso que vou contar. Pode ser que não tenha sido assim, mas é assim que eu me lembro e é assim que eu conto.
Havia lá um príncipe que se chamava Ribamar. Sempre vestido em seu traje de gala, todas as condecorações derramadas no peito, a solenidade atrapalhada pelas sandálias de dedo e um chapéu-coco. Com chuva ou com sol, ele descia a Rua Grande de Juazeiro todas as tardes, vindo de lugar nenhum e indo para nenhum lugar. Debaixo de um guarda-chuva branco, ele passeava sua solidão. É que o príncipe era noivo. A noiva morava num lugar distante, do outro lado do Oceano Atlântico. A viagem era uma aventura e ela demorava a chegar. O navio em que ela vinha, ele contava, enfrentando piratas, dragões, sereias e a inveja de outros príncipes preteridos, tardava, mas o amor era imenso e o mar pequeno. Ela, estava escrito, um dia chegaria.
Conheci o príncipe já perto dos anos 70 e, diziam, desde jovem ele esperava. A quem lhe perguntasse ou duvidasse, ele exibia as apaixonadas cartas de amor que ela escrevia e, para os mais incrédulos, o seu retrato. Com dedicatória: ao príncipe do meu coração, todo o amor da sua Gioconda da Vinci. O príncipe Ribamar era noivo da Gioconda, de Leonardo da Vinci.
Para muitos, o príncipe era maluco, um pobre coitado com o cérebro derretido pelo sol do sertão. Riam dele, roubavam e escondiam o retrato da Gioconda. Nestes momentos, o príncipe se imobilizava, uma explosão de dor o congelava. Eu me lembro dele, assim privado da sua amada, feito uma estátua no meio da praça. Parecia tão triste e ausente de si que, eu juro, flutuava a meio metro do chão, pendurado no guarda-chuva branco. Quando uma alma boa lhe devolvia seu bem mais precioso, a felicidade saltava dos seus olhos como um raio na tempestade. Talvez ele fosse realmente louco. Mas uma loucura que fazia nascer uma tal felicidade e uma felicidade que vinha de um amor tão grande me deixavam na dúvida.
E, um dia, a dúvida se dissipou. Cansado do descrédito e do deboche em relação ao seu noivado, ele decidiu apressar seu encontro com a noiva. Chega de navios, ela viajará por via aérea. Para uma plateia de invejosos, ele leu o telegrama: “embarco hoje Roma-Juazeiro
vg via Panair do Brasil
pt amor
pt Gioconda da Vinci”. Depois de um silêncio cheio de ironias, alguém perguntou: e o avião desce onde? Foi quando o príncipe resolveu construir um aeroporto. Depois de um tempo lutando para conseguir adesões, argumentando com uns e com outros para que lhe ajudassem a preparar o terreno, montou uma pequena tropa de trabalhadores e começou a construção. Havia quem trabalhasse apenas por farra, mas o príncipe não tentou enganar ninguém. Todos seriam pagos. Afinal, trazia na sua bagagem o tesouro do seu dote. Ribamar, sem nenhuma ambição material, todo amor, prometia dividir aqueles bens entre o que o ajudaram.
Um belo dia, o aeroporto ficou pronto. Ou melhor, uma longa clareira aberta no Vale do Cariri, delimitada de um lado por um jardim plantado com capricho e, de outro, por um pomar onde faziam sombra juazeiros e mangueiras. E Ribamar esperou com seus companheiros. Os dias se passaram, os companheiros se foram e ele continuou esperando, só. Não sei quanto tempo ele esperou. Na cidade, ninguém mais falava ou lembrava dele. De repente, num domingo de sol nordestino, Ribamar reapareceu. Todo de branco, com aquele ar de quem viu Deus, dirigiu-se para a Matriz de Nossa Senhora das Dores, ajoelhou-se diante do altar e esperou. Aparentemente ia se casar. Ninguém se preocupou com ele. Foi esquecido e lá dormiu. Na manhã seguinte segurando um buquê, caminhava de volta para sua casa, que ninguém sabia onde era. Depois desse dia, não o vi mais. Minha família mudou-se para Recife e, durante muito tempo, Juazeiro era uma lembrança, nada mais. Nunca mais soube do Ribamar. Entretanto, o atual aeroporto de Juazeiro do Norte, trazido pelo progresso, foi construído sobre o terreno aberto por Ribamar para a chegada da sua Gioconda. Eu acho que, por justiça, deveria ser chamado de Aeroporto Príncipe Ribamar.
José Wilker, 1995