ilustração de Reginaldo Farias
Um pouco sobre os Irmãos Aniceto e a ancestralidade cariri/kariri (por Pablo Assumpção):
“[...] Hoje, reconhecidos como patrimônio cultural do Ceará, os Aniceto e as outras bandas do Cariri nem sempre foram bem vistos. Revendo a história, descobre-se que a trajetória das bandas cabaçais no Crato é historicamente marcada por altos e baixos. No começo desse século [à época, século XX], só nessa cidade foram juntas mais de trinta para receber o bispo do Ceará, D. Manuel. Era o período áureo da cabaçal. Com o passar dos anos, elas foram reduzindo-se e refugiando-se unicamente nos sítios. Uma verdadeira luta se travou contra as zabumbas, consideradas como verdadeiras inimigas do progresso.
Assim, em nome da civilização que penetrava no vale, contra as velharias que prendiam a cidade ao passado, a música de couro precisava desaparecer. O forasteiro litorâneo não podia surpreender-se a tocar em instrumentos tão bisonhos e primitivos, em pleno centro citadino. do Crato, a cidade que a essa altura já tinha eletricidade, jornais, cinemas e colégios. Foi então que o prefeito – na época, José Alves de Figueiredo – proibiu a execução das bandas cabaçais em dias comuns, nas feiras, e a desfilar pelas ruas. Essa foi a época de decadência da zabumba, quando a tradição apresentava-se como a grande inimiga do progresso.
Não se sabe as consequências dessa proibição para a tradição das cabaçais, embora seja provável que isso pôde muito bem ter significado a extinção de um bom número delas. Mas o fato é que não significou o desaparecimento desta arte, tendo ela perdurado até os dias de hoje, quando, às vésperas do século XXI, ainda se tem oportunidade de assistir a representações da mais pura dissipação estética e popular. Esse é bem o caso da música de couro e performance da Cabaçal dos Irmãos Aniceto, grupo musical que melhor representa a permanência de elementos ancestrais cariris na cultura cearense.
[...] É perguntar a qualquer Aniceto vivo, hoje, e ouvir a mesma resposta: ‘essa bandinha vem de longe, ela já vem dos índios cariris; que os índios daqui do Crato eram assim muito alegres’. Há uma célebre frase entre eles, dita por Mestre Chico, Aniceto já falecido, que diz ser a banda cabaçal uma manifestação mais velha do que a própria invenção do Brasil: ‘A banda cabaçal vem desde a criação do mundo. Você já viu o retrato do Descobrimento do Brasil? Pois bem, pode reparar direito que lá tem uma banda de música dos índios tocando’.
E há sempre alguma verdade escondida por trás dos ditos e do imaginário popular. A cabaçal, tal como a aplaudimos hoje nos centros culturais, não existia antes do colonizador, mas é mesmo entre os índios que encontramos as matrizes culturais que justificam essa manifestação cênica e musical e o capital simbólico arrastado com ela. Foram os tapuias de língua travada os primeiros a rasgar no céu do Cariri cearense o canto místico da acauã, ave devoradora de cobras peçonhentas, entidade cujo canto trazia a lembrança de que os malignos seriam destruídos. Hoje, é Antônio da Silva, pifeiro e agricultor, quem grita no palco.
A região do Cariri inteira era povoada, antes da chegada de portugueses, africanos etc., por inúmeras tribos que, com outras tantas espalhadas pelo sertão nordestino, formavam a grande nação cariri. Etnia de idioma próprio, os cariris foram, constantemente, incluídos sem denominação especial no confuso grupo tapuia, compreendido pelo colonizador como o grupo indígena de língua travada, inimigos do tupi, que habitavam o litoral e falavam a língua real. [...]”
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No livro Irmãos Aniceto, de Pablo Assumpção. Edições Demócrito Rocha (Coleção Terra Bárbara), 2000.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
Os Irmãos Aniceto e a ancestralidade Cariri em trecho de livro de Pablo Assumpção
quinta-feira, 20 de agosto de 2020
Revisitando Karimai

por Petrônio Sampaio de Alencar
Acredito que o mais próximo que cheguei de um laboratório de alquimista foi quando visitei o ateliê de Luís Karimai pela primeira vez, conduzido por um amigo em comum. Ele não tinha qualquer pretensão de alquimia, mas a atmosfera maravilhosa e estranha do local assim se revelou para mim, naquele momento. Talvez mais ainda pelo aspecto mágico e fascinante que suas pinturas apresentaram perante meus olhos ainda tão acanhados em termos de noção de arte. Contemplei formas e cores num grau de complexidade jamais visto por mim.
Claro que eu já conhecia algumas obras dele, especialmente a tela que retrata a subida do Horto (obra que deveria ser tombada como patrimônio artístico municipal), muitas delas espalhadas pela cidade, em coleções particulares. Porém, como acontece de forma quase geral, só se conhece realmente a obra de um artista vivo visitando seu ateliê e apreciando sua produção pessoal e livre das amarras e limitações da encomenda. E a obra de Karimai é uma autêntica expressão de liberdades e experimentações. Daí o caráter revelador para mim daquela visita.
Recuando no tempo, lembro-me vivamente de quando era escoteiro e, participando de uma campanha de vacinação numa clínica, passei quase um dia todo, nos breves momentos de folga, admirando uma pintura em tela com uma assinatura no seu rodapé: Karimai 82. Era uma cena simples, mas comovente. Retratava uma cena nordestina, mãe e filho no cenário sertanejo de pobreza e desolação, tão típico da nossa região. Eu, que já gostava de desenhar, fiquei cativado pela tela.
Não longe dessa data, sem saber eu conheceria o autor daquele quadro num trecho de comercial televisivo da antiga Coelce. O artista aparecia pintando em seu ateliê sob a luz de lâmpadas. E aquilo não era só uma cena ensaiada. Karimai era um trabalhador infatigável, compenetrado e laborioso. Anos depois, ele me diria, demonstrando a necessidade de trabalharmos com seriedade, que havia largado a boemia do início de carreira, as noites nos bares, por considerar um desperdício de tempo. Então, dedicou-se integralmente ao trabalho artístico, dia e noite.
Eram tantas as obras ocupando os espaços das paredes do ateliê, entre pinturas próprias e encomendas, todas tão ricas em detalhes e efeitos que o espectador atencioso levaria horas para consumir tudo aquilo com os olhos. Paisagens de vastidões abertas, só interrompidas pelas serras distantes; figuras femininas divididas entre o sensual, o erótico e o dramático; flores exóticas reais e irreais; personagens misteriosos; cenas rurais e urbanas; ambientes metafísicos e sobrenaturais; a gente do Cariri; os mais humildes tocando suas vidas simples; as tradições culturais populares; etc., etc. E todo esse universo abarcado em formas e cores exuberantes exercia um hipnotismo que nos dominava até muito tempo depois da visita.
O desenho e a pintura de Luís Karimai constituíam uma força magnética e um campo gravitacional muito intenso sobre um sem números de artistas e jovens iniciantes que, como eu, o elegeram nosso referencial, nosso ídolo e mestre. Desse modo, formou-se uma legião de seguidores, de discípulos que o imitaram ou se deixaram influenciar pelo seu estilo. Influência inconfundível, pois inconfundíveis são suas criações, seu traço, seu repertório de temas e sua paleta única.
Luís Karimai era um pai amoroso, uma pessoa receptiva e um homem generoso. Mesmo necessitando de tempo e concentração para o trabalho, cuidava de sua prole com cuidado e carinho, bem como conciliava as brigas e disputas entre os filhos pequenos com calma e diálogo. E da mesma forma agia com visitas e estranhos que lá chegavam, sem demonstrar contrariedade ou aborrecimento pelo tempo roubado dos seus afazeres. Sei disso porque, como muitos outros, estive lá tantas vezes, e sempre fui recebido com sorriso e atenção. Pacientemente ensinou-me segredos do metiê artístico, a preparar telas de pintura, quando não ajudando-me a montá-las. Outras vezes cedeu-me materiais para trabalhar ou livros sobre arte para ler e estudar. E, tempos depois, indicou-me ou apresentou-me a colecionadores, para os quais vendi alguns desenhos e pinturas, começando profissionalmente minha carreira. Assim também procedeu com tantos outros iniciantes na arte.
O trabalho social que ele desempenhou com pessoas carentes foi uma decorrência natural da sua imensa bondade e consciência coletiva, bem como do seu caráter fraterno. A necessidade premente de pobres, indigentes e aflitos não poderia aguardar indefinidamente pelas promessas vagas dos governantes nem pelos frutos de uma luta social que, embora justa e necessária, tende a se arrastar por um longo tempo. A justiça social foi uma preocupação constante de Karimai, e ele sempre reagiu contra a discriminação, o preconceito, a violência, o machismo, o arbítrio, a ditadura e o fascismo. Sua obra plástica é um testemunho vivo disso. E por décadas, a fome de muitos foi atenuada por sua campanha de arrecadação de alimentos que percorria as ruas de Juazeiro do Norte.
O ensino de arte, as associações artísticas das quais participou, o cargo de secretário de cultura que exerceu nos anos 90, os projetos culturais que encabeçou ou colaborou, enfim, tudo o que ele fez ou se envolveu no setor artístico-cultural, toda a intensa e extensa contribuição de Karimai em distintos campos da sociedade juazeirense e caririense, nada impediu que injustiças fossem cometidas à figura publica e proeminente que ele se tornou. Sendo a mais séria e descabida de todas, na minha opinião, a ausência de suas obras na I Bienal de Arte do Cariri, realizada em Juazeiro do Norte, em 2002.
Numa demonstração de menosprezo pela produção pictórica local, a curadoria da bienal, estranha à terra, resolveu excluir os trabalhos dos pintores caririenses, desconsiderando o valor de um mestre local, como Karimai, cujas obras eram consagradas como símbolo do Cariri, uma das riquezas culturais da região e já alcançavam há tempos o reconhecimento para além dos limites do território nordestino, premiadas em diversas mostras, sendo vencedora de várias edições do concurso para a escolha da capa da Listel, a lista telefônica do Ceará. Ao mesmo tempo, ampliando o equívoco, a curadoria da I Bienal de Arte do Cariri abriu espaço expositivo para artistas vindos de fora, sem vínculo algum com o Cariri. A exclusão dos artistas, a revolta e celeuma gerada e a ausência de uma figura de proa do porte de Karimai causaram péssimas repercussões e prejuízo para o próprio evento, no final, apequenado e reduzido em importância e brilho. Um erro crasso cometido pela curadoria com a conivência das autoridades públicas. A bienal teve vida efêmera.

Em 1987 eu tinha vinte anos. Foi quando conheci Karimai. Ele morava numa pequena e agradável chácara, numa área quase rural, com a casa cercada de árvores, onde a criançada brincava à vontade. Pendurada numa parede do alpendre da casa havia uma pequena pintura retratando um homem de chapéu, um personagem estranho e misterioso que nos olhava fixamente. Ainda um pouco tímido, sentindo-me intrometido (e era!), criei coragem e perguntei a Karimai quem era tal pessoa. Sem rodeios ele afirmou se tratar de alguém que sempre aparecia por lá. Daí, tomei o sujeito como um visitante. Só tempos depois descobri que tal indivíduo era, na verdade, um ser espiritual. Desde então, olhar para as obras do meu amigo passou a ser um exercício de maior profundidade, pois a superfície da tinta poderia ser algo bem enganador.
Embora eu não seja vocacionado para o misticismo ou coisas do gênero, afirmo categoricamente, a partida precoce de Luís Karimai fez esta cidade perder sua mágica.
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Petrônio Sampaio de Alencar é artista plástico e professor de arte juazeirense. Iniciou sua carreira artística em 1987, dedicando-se ao desenho e à pintura. É também quadrinista, e mantém um curso regular de arte, o ateliê-escola Enclave Artístico, desde 2002.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020
Belchior realizou show no Navegarte (Espaço Cultural do Crato) em 2002
Em 17 de agosto de 2002, Belchior fez uma de suas últimas aparições nos palcos caririenses com um show no Navegarte (Crato), espaço cultural que sediou, no início dos anos 2000, diversos shows de artistas da MPB.
Dois berristas antes do show se aventuraram naquele dia: Ythallo Rodrigues em uma rápida entrevista no shopping de Juazeiro do Norte [tem fotos da entrevista no nosso Instagram @oberronet, confere lá!], enquanto, paralelamente, Hudson Jorge produzia o show que iria abrir a noite, com o músico goiano Chico Aafa, conhecido por sua participação no disco Cantoria 2, de Elomar, Xangai, Vital Farias e Geraldo Azevedo.
Ythallo relembra: “O tempo passa rápido e já estamos aqui, 18 anos depois daquela aventura. As lembranças da tensão de produzir o show de abertura, misturada a goles de vinho a mais, já meio que bagunçam a memória, mas lembro que foi uma noite memorável: ver pela última vez um show de Belchior (algo que, óbvio, não tinha noção que seria), num lugar onde pudemos produzir diversas atividades artísticas importantes na nossa trajetória. Para além de tudo, sinto saudades do Navegarte como um espaço das artes no Cariri”.
Na memória de Hudson: “Estive presente naquele show de um dos maiores nomes da música brasileira. Apesar de, naquele tempo, ainda conhecer muito pouco da obra do Belchior, a promessa é de que seria um grande espetáculo. Foi um show épico, talvez, mais pela simbologia da presença desse grande ícone. Cantou alguns clássicos e interagiu com o público. Aparentava estar bem feliz, mas, naquele show, a impressão que tive foi de um Belchior cansado do palco e, sabe-se lá o porquê.
O fato é que, nos anos seguintes, o desdobramento da vida desse grande artista, ao meu ver, comprovaria aquela impressão que tive naquele 2002, quando Belchior cantou umas poucas músicas e saiu do palco para beber e conversar com amigos, enquanto seu parceiro de show fazia o público vibrar com seu violão. Um espetáculo à parte”.
Na imagem: detalhe do Guia Cultural O Berro, edição 28, de 15 de agosto de 2002, anunciando o show de Belchior no Navegarte (Crato), que aconteceria dois dias depois.
sábado, 1 de agosto de 2020
Exposição virtual (IN)POSSIBILIDADES apresenta amostra da obra de Luís Karimai

“... (IN)POSSIBILIDADES é uma exposição virtual que atende a situações distintas: é registro simbólico de uma década do desencarne do artista Luís Karimai e trazer o diálogo de sua produção; é a pedra angular de um projeto maior de exposição permanente, fonte de aprendizados e acessibilidade ao acervo; e, por último e não menos importante, é um fio de esperança a tecer coloridos matizes em nossos insólitos dias de restrições e isolamentos. A denominação (In)possibilidades extrapola o lugar dos neologismos para aportar em um convite à desautomatização do olhar, a enxergar nos contrastes, nos paradoxos, os diálogos e possibilidades, eis a separação do prefixo. É resolver conflitos para encontrar equilíbrio capaz de sugerir esperança, movimento e transposição. É olhar para fora, mas também ser capaz de olhar para dentro (IN) e reconhecer-se apto para transcender e amenizar tensões. O chamado é apreciar ‘os víveres para a alma, desde humanos ‘sonhos’ enquanto lembranças infantes ou internos pássaros, tudo são de a vida caminhar altaneira em sofridos dias de agora’.”
Trecho de texto de Maria Eneida Feitosa na apresentação da exposição.
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Exposição virtual (IN)POSSIBILIDADES
Obras do artista plástico Luís Karimai (in memoriam)
Curadoria: Profa. Dra. Maria Eneida Feitosa e Clara Karimai
Expografia: José Vanderlan Araujo Mendonça
Música: Di Freitas
Agradecimentos: Penha Karimai, José Vanderlan
Endereço da exposição:
https://exposicao.institutokarimai.com.br/
Perfil do Instituto Luís Karimai no Instagram:
https://www.instagram.com/institutoluiskarimai/
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sexta-feira, 31 de julho de 2020
9 (+1) obras de Luís Karimai, por Clara Karimai

Luís Karimai e Clara Karimai (foto - detalhe: Rafael Vilarouca)
por Clara Karimai
Quando me foi solicitada essa seleção, foram muitos os anseios e possibilidades na elaboração de um conteúdo sobre a produção imagética de Karimai. Bateu a insegurança. Apesar de ter crescido frente às inúmeras produções artísticas dele, alcançar as suas significações sempre me foi desafiador já que não se tratavam apenas de telas com paisagens de realidades objetivas, elas sempre me convidavam a olhares mais atentos.
Em nossos diálogos, sem nenhum argumento de autoritarismo, ele confortava a minha ignorância com a única orientação de deixar-me envolver pelos sentidos e percepções. O demais me viria por acréscimo.
Claro que por muitas vezes demorei o olhar e não apreendi o que hoje, mais madura e com mais vivências e sensibilidades, assimilo com as instigações que me resgatam sempre que preciso lutar contra essa insistente reificação da consciência, sobretudo neste momento em que o mundo vive essa pandemia e em que tudo pode/deve ser repensado, ser revisto.
Captar sentido do mundo à nossa volta é um percurso sugerido a quem aceita o convite a essa proposta artística de repensar as estruturas; de criar outras perspectivas humanas, sociais; de reflexão sobre o nosso alheamento diante da vida; de questionar sobre a razão de ser; das limitações impostas, mas também das infinitas possibilidades.
Eis algumas obras de Luís Karimai, meu pai querido. A decisão é individual, o caminho é único...

Homo lumen - luz da natureza – desenho - Nanquim em bico de pena - 48 X 33,5. Do álbum Destino Peregrinações e Mentes, 1982 – cópia em offset. Essa obra é de uma fase em que Karimai trabalhou muito com o nanquim. Há uma extrema valorização aos detalhes e ao jogo intencional de imagens, luz e sombra. O início da sua produção artística se manifesta convenientemente durante um período de descobertas pessoais, algumas angústias juvenis. O sofrer é representado com pedras, cipós, corpos transpassados por lâminas e pregos, elementos recorrentes nesse período.

Óleo sobre tela – Auto-peregrinação: compõe a série que Karimai produziu com a temática Horto. Retratou tudo que dá movimento a Juazeiro do Norte com narrativas férteis e múltiplas. As cores dão total sentido à obra. É quase possível sentir o calor característico do mês de setembro, durante a Romaria de Nossa Senhora das Dores. Gosto dessa tela porque é uma retratação nada simplista de como a cidade foi gerada. Dá uma nova realidade às coisas cotidianas. Tem sempre algo novo para ver. Além de revelar o impacto que essa cidade causou em Karimai, em meados de 1970, quando aqui chegou para pesquisas acadêmicas e daqui não quis mais sair.

Tela de 1995: alusão ao Juazeiro antigo, plantio de algodão e aos vários trabalhadores nos seus labores. Lembro dessa tela durante um bom tempo na parede da sala de casa e o quanto gostava de olhar para ela. A terra que se funde com o céu e a vastidão de espaço nos remete a perspectivas, esperanças, ao olhar adiante. Mais que a representação de um lugar preexistente, a cena não é irreal, mas toca o nosso imaginário.

Óleo sobre tela: a riqueza e harmonia dos detalhes prende o espectador. Eu gosto muito dessa perspectiva aérea. Ela possibilita a visão da paisagem como um todo para depois olhar por partes. A diminuição dos elementos é uma sugestão de distanciamento do observador para acomodar e revelar a profundidade da imagem. As obras de paisagem de Karimai possuem certa atmosfera meditativa. De beleza na simplicidade e silêncio que se alastra. Não muito habitual, nesta tela Karimai usou camadas grossas de tinta (impasto) nas árvores e em algumas vegetações para dar mais perceptibilidade à tinta.

O tempo espreita: nós - Óleo sobre tela: Uma experiência visual penetrante. Contrastantes nos planos dos tons frios (as figuras humanas) e quentes, as cores reforçam as contraposições das dualidades da temática: Desejo/castração, liberdade/amarras, contração/fluidez, tradicional/contemporâneo, razão/emoção, masculino/feminino, consciente/inconsciente. O semblante de olhos pequenos está compenetrado como quem perscruta. Karimai ainda brinca com os sentidos quando situa essas figuras em transbordo de êxtase, no espaço do cosmo.

Desenho – lápis grafite, aquarela, pastel e colagem: Esse desenho é composto por várias tiras de papel que vão aumentando o tamanho do desenho. Presente ao filho, Paulo. Começou com um papel pequeno e foi tomando forma na medida em que sentia necessidade de continuar e não queria perder o fluxo da criação. O menino descansa na pedra em um estado contemplativo, com serenidade. Essa obra me remete aos passeios de final de tarde que ele fazia conosco (filhos) e a meninada da rua, por cenários como esse, observando as inervações e colorações das folhas secas caídas pelo chão, as torções engenhosas das raízes, as pedras. “Pinta bem quem observa bem”, dizia. Para mim, essa tela tão fértil de detalhes emana a paciência, candura e mansuetude próprias de quem ensinava com a observância interna às orientações cedidas.

Óleo sobre tela: Karimai explora com clareza um pensamento complexo nesta tela. As disponibilidades das narrativas sugerem uma condução do olhar. As emoções envolvem as figuras humanas. Armaduras, caixas e prisões são suavizados por tecidos fluidos e transparentes, flores e seres diáfanos. Transiçõese transformações em que uma coisa vira outra. Caixas que são casas, mas também estradas, pontes, e os pontos de fuga que indicam continuidades... As cores entram como atenuantes às tensões. Onde existe aflição, também se aportam belezas.

Pintura mista: essa foi em parceria com o filho Lui, que na época tinha 6 anos e toda tarde ia desenhar com ele. Esse desenho foi feito despretensiosamente por Lui, deixado de lado após convite a outros afazeres. Karimai viu, gostou, aproveitou o desenho da telinha, reorganizou a forma e fez a pintura. Lui hoje está com 20 anos de idade e tem essa obra na mesa onde gosta de criar artes digitais.

Óleo sobre tela: “Abstrato é coisa de abstração. Capacidade de entendimento do real dever ser elevada e a síntese magistral. Não se faz abstração sem vivência calejada na vida, nem se consegue resultados sem equilíbrio na existência, na geometria dos similares-e-contrários.... Pinta bem quem observa bem” Luís Karimai.

(+1) Óleo sobre tela: me estimula a decifrar abstrações, alma/corpo, sonho/realidade, céu/sideral.
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Clara Karimai: jornalista formada pela UFCA. Assessora de Imprensa. Atualmente se dedica na catalogação e disponibilização da memória e da obra do artista plástico Luís Karimai.
Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
9 (+1) livros sobre Juazeiro do Norte - Parte 1
9 (+1) poemas de Fernando Pessoa e alguns de seus Outros Eu(s), por Flávio Queiróz
9 (+1) poemas de O Belo e a Fera, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)
9 (+1) referências do Design Cariri, por Fernanda Loss
9 (+1) discos preferidos do rock internacional, por Michel Macedo
9 (+1) importantes obras de filosofia, por Camila Prado
9 (+1) artistas visuais contemporâneos, por Adriana Botelho
9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins
9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira
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quarta-feira, 22 de julho de 2020
9 (+1) livros sobre Juazeiro do Norte - Parte 1

por Ythallo Rodrigues e Luís André Araújo
“Juazeiro é uma terra de pouca geografia e muita história”. Com essa frase, Monsenhor Murilo de Sá Barreto naturalmente se referia a toda a riqueza de fatos, histórias e culturas na vida de um município relativamente novo e com pouca extensão territorial.
E neste 22 de julho – dia da emancipação política do município – para ilustrar que o que não falta é história sobre o Juazeiro, resolvemos lançar a primeira de uma série de listas com livros que contam muitos dos fatos ligados à gênese e ao desenvolvimento de Juazeiro do Norte, em seus aspectos religiosos, políticos, econômicos e culturais.
Assim sendo, é importante pontuar algumas questões:
A produção editorial e acadêmica de trabalhos sobre Juazeiro é vastíssima, mas as listas são finitas, implicando no inevitável: muita coisa boa (e importante) naturalmente (e infelizmente) ficará de fora.
Como faremos mais de uma lista (aguardem as próximas!), possivelmente um livro não contemplado agora pode ser citado numa próxima postagem.
Para tentar diversificar as épocas, estilos, autores e autoras das obras, a lista não segue um critério de importância/relevância da publicação, então colocamos em ordem cronológica, considerando a data de lançamento da primeira edição.
Ressaltamos que a lista não é assinada por especialistas na história do Juazeiro e sua religiosidade, mas O Berro resolveu se lançar nessa missão por sempre demonstrar um eminente interesse e admiração pelo assunto, como quem se surpreende com a riqueza de cada história deste lugar. Então as listas surgem dessa curiosidade e admiração.
Por fim, enfatizamos que não estão sendo listados, necessariamente, livros com qualquer tipo de temática ligada ao Juazeiro ou pelo fato do escritor ou escritora ser juazeirense. A ideia é enumerar livros “sobre o Juazeiro”, com temáticas caras à sua origem e desenvolvimento enquanto município, no que se refere às questões religiosas, à história do Padre Cícero e/ou da Beata Maria de Araújo (e demais religiosos conhecidos), das romarias, etc., também pincelando aqui e acolá as questões econômicas, políticas e culturais.
Boa(s) leitura(s)!

O Padre Cícero que eu conheci (verdadeira história de Juazeiro) - Amália Xavier de Oliveira (Gráfica Olímpica, 1969): o livro da professora e memorialista Amália Xavier busca descrever a vida de Padre Cícero, tendo como recorte o período em que este viveu em Juazeiro, entre 1872 e 1934 (ano de sua morte). O texto que abre a edição de 2001 é uma carta da escritora Rachel de Queiroz, de 1968, com considerações que demonstram algumas características importantes do texto da professora juazeirense: “Estou acabando a leitura de seu livro O Padre Cícero que eu conheci. E quero agradecer a distinção que me fez, proporcionando-me a leitura em original, desse depoimento honesto, veraz e fiel. Sabe quanto venero a figura do nosso padrinho Padre Cícero; é uma dor de coração ver esses ‘depoimentos’ e ‘interpretações’ que saem por aí, assinados por aventureiros, por pessoas que se querem beneficiar da glória do nosso santo – ou por conhecidos inimigos dele. O seu livro vem pôr a verdade no seu lugar. É claro, sincero – e se é apaixonado, algumas vezes, – será desse paixão da justiça, que reclama quando vê a mentira entronizada.”

Milagre em Joaseiro - Ralph Della Cava (Paz e Terra, 1976): publicado originalmente em 1970 nos Estados Unidos – com a primeira edição brasileira lançada em 1976 – tornou-se importante referência pela apreciação e divulgação de documentação até então inédita sobre o “Milagre da hóstia do Juazeiro”, protagonizado pela Beata Maria de Araújo e pelo Padre Cícero. Ralph Della Cava, um historiador e antropólogo estadunidense, acabou apresentando, assim, um dos trabalhos de grande fôlego sobre a formação e desenvolvimento de Juazeiro do Norte, calcado no fenômeno religioso do fim do século XIX e impulsionado ainda com mais vigor durante o século XX. O livro – lançado originalmente pela Paz e Terra e reeditado em 2014 pela Companhia das Letras – estimulou tantos outros trabalhos acadêmicos e produções audiovisuais sobre a história do Padre Cícero e de Juazeiro.

Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus - Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (Francisco Alves, 1988): nesse estudo pioneiro, desenvolvido no decorrer da década de 1970 e apresentado como tese de doutorado em 1980 pela antropóloga Luitgarde Oliveira, acompanhamos o percurso de constituição histórico-social do sertanejo, em que seguimos até a vila de Juazeiro em seu nascedouro no final do século XIX e a partir de lá somos convidados a entender os meandros do catolicismo popular na formação de Padre Cícero como um dos ícones desta categoria. O livro segue pelo século XX, observando a relação estabelecida entre os romeiros de Padre Cícero e a cidade que é o espaço sagrado da devoção de toda a gente do Nordeste que compõe as romarias. Na edição mais recente, de 2014, há ainda o acréscimo de um quarto capítulo que delineia alguns aspectos da chegada do Juazeiro de Padre Cícero no século XXI.

Juazeiro do Padre Cícero - Raimundo Araújo (org.) (Gráfica Mascoto, 1994): em 1994 Juazeiro tinha algumas datas importantes para comemorar – no sentido de trazer à memória, recordar: 80 anos da morte da Beata Maria de Araújo; 80 anos da Sedição de Juazeiro (a famosa “Guerra de 14”); 80 anos da elevação da condição de vila a cidade; 60 anos da morte do Padre Cícero e 150 anos do seu nascimento; 25 anos da inauguração da estátua do Padim no Horto... ufa! (correndo o risco aqui de esquecer outras efemérides importantes daquele ano). Para homenagear tantos fatos relevantes, o escritor Raimundo Araújo, um dos grandes entusiastas da história de Juazeiro, organizou essa antologia com textos dos mais variados profissionais, moradores, admiradores e estudiosos da história da cidade. Nas páginas do livro são explorados diversos assuntos e temos uma seção com fotografias, que hoje provocam um certo saudosismo, pois já se vão 26 anos do lançamento dessa obra impressa pela tradicional Gráfica Mascote.

Maria do Juazeiro: a beata do milagre - Maria do Carmo Pagan Forti (Annablume, 1999): dentre os mais variados assuntos e personagens que fazem parte da história de Juazeiro do Norte e do Cariri, para a equipe d’O Berro a Beata Maria de Juazeiro merece um destaque especial. Sendo assim, naturalmente haveríamos de mencionar uma das primeiras obras com um certo fôlego que se debruçou especificamente na figura de Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo. Coube então à psicóloga e professora Maria do Carmo Pagan Forti levantar uma questão que sempre merece um debate mais profundo: após o caso do milagre da hóstia, ocorrido em 1889, o Padre Cícero tornou-se o líder e grande referência de um dos maiores fenômenos sócio-religiosos da história do Nordeste brasileiro: as romarias de Juazeiro; entretanto, a grande protagonista daqueles fatos, a Beata Maria de Araújo, foi sendo apagada da história, tendo seu nome e sua importância poucas vezes lembrados no fenômeno em que se transformou o Juazeiro. Maria do Carmo não hesita em tomar partido e defender a beata de todas as acusações sofridas durante o processo eclesiástico que condenou Maria de Araújo ao enclausuramento e esquecimento nos seus últimos anos de vida – e em boa parte da história.

Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão - Lira Neto (Companhia das Letras, 2009): com uma considerável lista de personagens da história brasileira no seu currículo como biógrafo, o jornalista e escritor cearense Lira Neto também se debruçou sobre a história do Padre Cícero. O resultado dessa pesquisa foi o livro Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, que apresenta uma narrativa baseada em vasta documentação sobre a riquíssima e surpreendente história que envolve as questões políticas e religiosas da ascensão do Padim Ciço no sertão nordestino. Sem esnobar o mérito de sua pesquisa historiográfica, vale mencionar a recorrência de escutarmos leitores do livro falarem que se trata de uma narrativa instigante, envolvente, por ser uma história (de certa forma) “romanceada”, prendendo o leitor com um texto que flui facilmente, prendendo a atenção a cada página. Por fim, também vale citar o peso da editora Companhia das Letras e a sua capacidade de distribuição nacional, que fizeram desse livro um importante divulgador da história do Padre Cícero em todo o território brasileiro.

O teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado de Juazeiro - Edianne Nobre (Editora IMEPH, 2011): em seu primeiro livro, a professora e escritora Dia Nobre narra as histórias que estão em torno dos milagres de Juazeiro, a partir da perspectiva das nove beatas que acercavam o Padre Cícero em seu itinerário de fé. A partir da forma clássica de um texto dramatúrgico em três atos, a autora vai desenvolvendo em cada uma das cenas o desenrolar dessa história intrincada (iniciada nas últimas décadas do século XIX) e tramada por inúmeras vozes e contextos diversos. Fatos históricos (ou místicos) que reverberam até hoje na cidade em que Juazeiro do Norte se transformou. Ao final do percurso do livro a autora reafirma a potência “do fato extraordinário que é um pequeno povoado sombreado por juazeiros crescer no meio do nada e se transformar em um caloroso e famoso centro de religiosidade católica”. A obra faz parte da importante Coleção Centenário, lançada em 2011, quando foram comemorados os 100 anos de Juazeiro, e a autora posteriormente lançaria uma obra de grande impacto sobre a Beata Maria de Araújo – mas isso é assunto paras as próximas listas...

A Praça Padre Cícero - Daniel Walker (Expressão Gráfica e Editora, 2017): praticamente toda cidade possui uma praça que poderia ser chamada de “o coração da cidade”. E parece que não foi por acaso que um livro sobre a Praça Padre Cícero fosse capaz de representar toda dedicação de uma vida do professor, historiador e escritor Daniel Walker a Juazeiro do Norte – e, lógico, ao Padre Cícero. Lançada em 2017, a obra foi fruto de uma longa pesquisa (de mais de 5 anos) que esbarrava na falta de acervos públicos mais cuidadosos em registrar a história do nosso povo e das nossas cidades. Mas Daniel Walker abraçou a missão, consultando escritos e ouvindo “causos” de tantas pessoas que viveram muitas histórias na famosa praça, com destaque especial para as décadas de 1960 e 1970, quando, segundo o próprio autor “ela esbanjou todo o seu glamour e ficou cravada na memória de todos nós, como sendo nosso local de lazer e namoro”. O resultado é um livro com muitas histórias, informações e um rico acervo fotográfico.

Juazeiro sem Padre Cícero: expectativas e temores gerados pela morte do Padrinho (1934-1969) - Amanda Teixeira da Silva (Editora CRV, 2018): já a obra da professora e historiadora Amanda Teixeira segue o percurso temporal imediatamente posterior à morte de Padre Cícero, até o final na década de 1960. Na contracapa da primeira edição Amanda traça uma breve sinopse do seu trabalho. “Padre Cícero morreu em 1934. Havia, no período, diferentes expectativas sobre o que seria Juazeiro após o desaparecimento de seu fundador. Para muitos jornalistas, a morte de Padre Cícero representava um problema econômico, constituído pelo possível esvaziamento da cidade e pela fuga de mão de obra do Nordeste para o Sudeste e o Norte do país. Alguns temiam ainda possíveis acessos de fanatismo ou a consolidação de um problema social, já que os romeiros e retirantes ficariam então sem o apoio espiritual, moral e material do sacerdote. Para os devotos, por outro lado, o desaparecimento do Padrinho significava o fim da relação pessoal com um santo que falava a língua dos pobres e nunca se negava a ouvir e auxiliar os necessitados. De certo modo, a persistência de Padre Cícero nos corações de seus seguidores surpreendeu os intelectuais e as autoridades religiosas que planejavam dar fim à sua memória. A morte não foi capaz de eliminar o Padrinho. Juazeiro sem Padre Cícero passou a ser Juazeiro com mais Padre Cícero do que se imaginava.”

+1. A mulher sem túmulo - Nilza Costa e Silva (Armazém da Cultura, 2010): “Maria foi a segunda beata a receber a hóstia. Tomou um susto. Sentiu alguma coisa estranha em sua boca, um gosto de sangue... Teve vontade de expulsar aquilo de dentro de si, pois não sabia o que era. Terminou cuspindo tudo sobre a palma da mão. Só aí notou, visivelmente pálida, que a hóstia estava sangrando.” O livro de Nilza Costa e Silva através dos fatos romanceia a história de Maria de Araújo, a beata protagonista dos milagres da hóstia consagrada, a renegada santa de Juazeiro. Em 1930 o túmulo de Maria de Araújo foi violado e destruído por oficiais da igreja católica, um mistério que paira sobre a hoje populosa Juazeiro do Norte, e que faz ecoar a pergunta trazida ao final deste romance: “Onde está Maria de Araújo?”
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Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
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9 (+1) discos preferidos do rock internacional, por Michel Macedo
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quarta-feira, 10 de junho de 2020
9 (+1) poemas de ‘O Belo e a Fera’, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)

Neste dia 10 de junho, data em que nasceu o poeta cratense Geraldo Urano (ou Efe, ou Lima Batista, ou Gandhi, ou Mérkur...), em 1953, nossa editoria inaugura uma perspectiva diferente das Listas O Berro 9 (+1), com a nossa própria equipe apresentando uma seleção de poemas do livro O Belo e a Fera (cantigas), lançado originalmente em 1989, com a assinatura de Lima Batista.
Em 2015 a obra de Geraldo Urano foi reunida e editada no volume O Ferrolho do Abismo, com design gráfico do Estúdio Caravelas e prefácio da poeta e professora Cláudia Rejanne. No dia 5 de fevereiro de 2017, Geraldo fez sua viagem para outros planetas, deixando como legado tantas histórias e poesias.
A imagem em destaque nesta postagem é uma ilustração de Reginaldo Farias, a partir de fotografia e desenhos do poeta (estes últimos incorporados ao design de O Ferrolho do Abismo) e a capa original do livro O Belo e a Fera.
Livro O Belo e a Fera (cantigas), de Lima Batista
Prefácio
O Poeta chega ao dia em que desperta e tem a certeza de que nunca adormecera. Olha o Sol e inicia um caminho de alguns poucos passos para beber na fonte cuja água lhe molha os pés, enquanto no peito dói a ânsia de sobrevoar o Universo, sem pátria e muito menos pouso certo.
Uma manhã de junho. Na Serra, esperança afoita, donde trinam pássaros coloridos, nas flanelas das bananeiras. O gado pasta indiferente ao triturar das moendas dos engenhos em começo de moagem. E as águas descem gorgolejantes as lajes da Cascata.
Frio bom, brisa gostosa e a música do estio. Uma solidão cúmplice a falar de planos maiores em elaboração na mente de Deus. O homem e a espera, qual centauro que abrisse os olhos pela primeira vez. Vê o Vale que desce das encostas, indo repousar lá embaixo, nas cidades esdrúxulas; minutos que voam em farejo do novo que nasceu.
O Cariri traz, em Geraldo Lima Batista, a escrita da renovação, mais do que poesia, vigília e certeza, aviso de preparação do Futuro.
José Emerson Monteiro Lacerda
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meu amigo geraldo,
acabei de brincar lendo teu livro. e que brincadeira gostosa e tranquila é sentir o encaixe perfeito das tuas palavras. essas palavras são nossas. são palavras de um mundo mágico que você sabe muito bem encontrar no meio de tantos truques baixos.
a vida tem disso. às vezes você recebe um soco por sobre o estômago. é um golpe seco e cruel. às vezes nós encaramos o algoz e partimos para um próximo e infinito round. às vezes nós vamos a nocaute técnico ou violento, humilhante e injusto, mas nunca definitivo.
imagine muhammad ali numa esquina de new york ou de mauriti distribuindo sorrisos em vez de socos, nocauteando a espera, pois quem sorri não tem o que esperar.
é, brother, só nos resta sorrir diante da baixaria. isto é uma arma. e como diz o poeta: uma arma muito quente.
do seu amigo,
carlos rafael dias
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9 (+1) poemas de O Belo e a Fera (cantigas)
os ladrões estão satisfeitos
com a terra nua
todos os poderes
tiram partido dela
políticos artistas e religiosos
fazem loteria de suas vestes
mas não tarda
o dia da verdade
não tarda a hora da justiça
*
o sino está tocando
nada de novo no manicômio
ela tem lábios encarnados
pergunta quando vou fugir
escrevo seu nome na parede
meu anjo
qualquer dia nós vamos sair
*
antes que eu te chame escandalosa
vê se achas uma rosa
deixa o sol entrar
adeus cidade de detroit
vou embora pra chicago
apenas outro lugar
a outra é não me toque
te abaixes nova iorque para o luar passar
*
és como um tigre minha flor de roma
lirismo meu
ou quem dirá que sonhas?
a semana passou
como um cavalo veloz
como uma flexa passou por nós
se eu fosse um bicho
eu não teria sábado
amo israel
saí do mar procurando o céu
meu anjo
essas coisas de menestrel
*
escuta o vento
tu que és inspirado
elas não vão mal?
se aborrecem com a claridade
não és tu que és desajeitado
que só sabes passar mal
é a noite que invadiu o dia
melhora!
lava o teu rosto na pia
*
não sei de nada
não digo nada
nem nadar eu sei
mas sai do meu caminho
tu que és violento
ladrão de ninhos
*
o destino cruel de um país
confusão na praia
hotéis vazios
a juventude castigada
do noticiário sai fumaça
a paz de cachimbo
some por entre dedos nervosos
*
as condições históricas
a distribuição geográfica das raças
os sobradões coloniais
o amarelo da ásia central
tudo é caleidoscópio
eu consulto o relógio
quando se quebrará o espelho?
nada a contar
a não ser cacos prá todo lado
*
lorena sabe o que é
ser nesse tempo mulher.
atirei o meu anzol
para pescar um sonho
pesquei o abandono.
quando o futuro vier
não quero estar tão nua
as multidões carentes
no modernismo das ruas.
o grito do tucano
no domingo pernambucano
lorena sabe o que é
ser nesse tempo mulher
é bolero prá um deus
por telefone um adeus.
sempre ouvindo o vento
guardado o velho senso
no céu o sol e a lua
na terra a vida crua.
*
o planeta amarelo está em brasa
são os vulcões que se espalham
se eu dissesse
as moças de saigon
caminham pela noite azul da ásia
estaria mentindo
a primavera agora é só verdade
quem deterá os oceanos?
ou impedirá os rigores do inverno?
e essas cidades
para onde querem ir?
que crescimento besta é esse?
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quinta-feira, 23 de abril de 2020
Karimai e Zeca Baleiro: ‘capa por capa’

por Hudson Jorge
No ano 2000, a Região do Cariri recebeu a ilustre visita de um cantor e compositor emergente. Saindo do cenário da poesia e música marginal maranhense, Zeca Baleiro excursionava de forma meio tímida em uma turnê voz e violão, divulgando o seu segundo e recente álbum lançado: Vô Imbolá.
A equipe de “O Berro” resolveu que iria tentar uma entrevista com ele.
Depois de pensarmos em algumas possibilidades de como conseguir essa entrevista, Ythallo e eu rumamos para o escritório do produtor Jota Rodrigues, que era o contratante do espetáculo.
Após um momento de espera, conseguimos falar com ele e pedimos autorização para conseguir a entrevista. Ele disse que não tinha como autorizar e deu uma pista: “O voo dele tá previsto para chegar agora. Vão lá e tentem falar com ele!”. Simples assim…
Um tanto aflitos e inexperientes, esperávamos no saguão. Não havia fãs e estávamos lá, nós dois, meio apreensivos.
Zeca entra no saguão e vai passando naturalmente, quando eu falei: “Zeca!”
Ele olhou para a gente, e acenou gentilmente com a mão. Fomos em frente, nos apresentamos e dissemos que tínhamos um “zine” e que gostaríamos de entrevistá-lo. Ele foi olhando assim meio que sem muita empolgação pra gente.
Por sorte, tínhamos os dois primeiros exemplares daquele ano conosco e os mostramos para um Zeca Baleiro pouco empolgado com a ideia. Ao ver, na segunda edição, estampada a manchete de uma entrevista com o artista plástico Luís Karimai, ele parou, arregalou os olhos e, por trás de um óculos semi escuros meio alaranjados, disse em voz alta com admiração: “Vocês entrevistaram Karimai?!?!?”. “Sim, entrevistamos...” e repetiu admirado: Vocês entrevistaram Karimai?!?!?. A gente começou a ficar meio com medo daquela reação. Então, ele disse: “Então, tá feito! Combinado! Vamos fazer a entrevista depois do show, no camarim!”... daí, o que se segue é que conseguimos, realmente, fazer a entrevista e, para isso foram necessárias outras tantas peripécias que dariam outras boas histórias.
Mas, o que ficou marcado daquele momento, foi ver um artista lá de tromba, como se diz no Ceará, já naquela época reverenciar o nome de um dos artistas plásticos mais expressivos do Cariri. Durante a entrevista, Zeca Baleiro citou ainda nomes como Abidoral Jamacaru e Cleivan Paiva, demonstrando sua apreciação pela arte caririense.
A obra e o nome de Luís Karimai já corriam o mundo e muitos de nós, ainda hoje, sequer temos a dimensão dessa expressividade toda.
Luís Karimai é pai de um de nossos amigos da época do ensino médio. Naquele tempo, para encontrá-lo, se a gente quisesse, bastava ir lá tomar um café, ou dar uma passada pela Associação de Amigos da Arte (Amar), ou encontrá-lo na rua caminhando ou participando de uma arrecadação de alimentos para pessoas carentes.
Essa capa da edição de O Berro “apenas” tem o nome do artista em uma das manchetes, mas, foi com ela que conseguimos a entrevista que saiu na edição seguinte.
Entrevista com Luís Karimai e Petrônio Alencar:
terça-feira, 31 de março de 2020
Dona Ciça do Barro Cru em texto do livro ‘Cultura Insubmissa’, de Rosemberg Cariry e Oswald Barroso

Apresentamos texto publicado no livro Cultura Insubmissa (estudos e reportagens), de Rosemberg Cariry e Oswald Barroso (Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1982), sobre a artista Dona Ciça do Barro Cru, um dos grandes nomes da história do artesanato de Juazeiro do Norte, no Cariri cearense. Obs.: optamos por reproduzir o texto ipsis litteris, repetindo a maneira como foi transcrita a fala da personagem em questão.
Dona Ciça - Mãe de Barro
A cerâmica lúdico-figurativa é uma das mais significativas expressões da arte popular do Nordeste. Se os brinquedos de barro eram comuns às tradições culturais dos povos europeus e nos foram legados pelos ibéricos, receberiam também a contribuição indígena que enriqueceria em muito a cerâmica nordestina em seus multiaspectos. No Ceará, principalmente no Cariri, a contribuição índia foi marcante, mas em outras regiões do Nordeste os povos negros transplantados deram também o seu importante legado cultural no desenvolvimento da cerâmica popular. Ofício de mulheres, as cunhãs, sensíveis e habilidosas no trato com o barro, modelavam, juntamente com os potes, panelas, etc., pequenas figuras antropomorfas e zoomorfas para as crianças brincarem. Os nossos artistas populares, na grande maioria caboclos, partindo de modelos herdados das tradições ibéricas e indígenas, desenvolveriam uma cerâmica tão rica e esteticamente cheia de significados culturais que se poderia compará-la à cerâmica asteca e andina, no seu estágio mais avançado.
No livro As Artes Plásticas no Brasil, Cecília Meireles fala sobre a cerâmica utilitária da Bahia: “Diante de certas peças cerâmicas (...), tão elegantes de perfil e tão ricas de decoração, pensa-se nos suntuosos modelos mexicanos e peruanos e tem-se a impressão de que a alta cerâmica do pacífico estendeu até o atlântico os derradeiros filamentos das suas raízes”. No Ceará, na cidade de Cascavel, nas regiões da serra da Ibiapaba e do Cariri, encontramos núcleos de intensa produção de cerâmica utilitária e lúdica. Destes núcleos, o mais importante é o do Cariri, onde os artistas populares passaram, assim como os artistas de Caruaru - Pernambuco, de figuras isoladas para complexos conjuntos de peças representando cenas cotidianas e manifestações folclóricas regionais. Em Juazeiro do Norte existe uma cerâmica de rara beleza, com formas bem delineadas, muito equilíbrio e intenso colorido. Nomes como Cícera Fonseca, Luíza dos Cachimbos, Carminha e Dona Ciça do Barro Cru são as expressões maiores de cerâmica lúdico-figurativa do Cariri. De Dona Ciça nos ocuparemos neste pequeno estudo, por sua importância artística de características diferenciadas.
A arte de Dona Ciça reflete a realidade e a cosmovisão populares. As cenas encontradas no cotidiano do povo simples são por ela plastificadas em formas bem elaboradas e detalhadas, com um colorido supra-real. Sua produção inclui peças individuais: aves, animais domésticos e fantásticos, pessoas em seus afazeres, santos e demônios etc. Sua cerâmica, no entanto, encontra maior expressividade nas obras de conjunto, onde reelabora, segundo a sua visão e sensibilidade estética, cenas coletivas de imensa complexidade. Exemplos disto são os conjuntos de peças que compõem os os “reisados”, “farinhadas”, “bandas de pife”, “enterros de anjos”, “procissões” etc. Na reelaboração do real, Dona Ciça não usa apenas o barro e as tintas como matérias-primas. Utiliza-se também de palitos, arames, sementes, algodão, fitas, retalhos de fazenda e penas (o uso de penas ficou-lhe como legado índio, onde deita suas origens).
Para melhor compreender esta grande artista, necessário se faz que mergulhemos na sua história. Fala Ciça: “Nasci no Sítio São José, Juazeiro, em março de 1915 (ano de tirana seca). Meu pai era de Garanhuns e se chamava Pedro Araújo, minha mãe era de Quipapá e se chamava Quitéria Maria da Conceição. Fui pra Santana do Cariri novinha, quando vim de lá pro Juazeiro tava com sete anos. Em 32 foi seca, muito aflagelado aí no Buriti, eu tirei a temporada pedindo esmola no Crato, mode sustentar pai e mãe. Ninguém tinha nada pra comer em casa, eu ia com uma irmãzinha, montada num jumento, com um jogo de caçuá. Neste tempo morreu umas irmãs novas que eu tinha. A gente cumia muita comida braba, coisa venenosa, só pudia ser. Depois eu fui vivê de vendê capim. Comecei a trabaiá no barro com 25 anos de idade já tava casada pela primeira vez com Luís Ferreira, que morreu de congestão. Quando eu casei já tinha Ciço, esse que é casado. Ciço foi um erro que eu dei, eu sô uma pessoa que só fala a verdade, nem que morra. Ficando viúva eu me casei com Manuel Costinho de Sena que morreu de saluço, sofrendo dezoito dia de saluço, dez anos depois de nóis casado. O outro, Cornelho, não morreu comigo, morreu lá com a famia dele. O danado vivia dizendo que tinha um probrema, sei que esse probrema num tava certo pra gente casado, mandei ele lá pra famia dele, tava separada dele nesse tempo. Adepois me casei com Manuel num sei o que de Mato, esse também mandei embora, morreu cum a famia dele, pra lá. Agora casei cum Jenuaro”. Assim é Ciça, com toda a sua riqueza existencial e expansiva sinceridade.
Vivendo pobremente, numa casinha de taipa no subúrbio de Juazeiro, Ciça subvive da sua arte e dos restos de legumes que cata nos dias de feira. Ela afirma: “o dinheiro que apuro não dá nem pra cumê, eu vou pra feira do Crato e de Barbaia e fico varrendo na feira do feijão, chego em casa e vô separá os caroço de feijão. Eu só varro na feira do Crato e de Barbaia, no Juazeiro eu nunca faço lá, eu nunca me acustumei. Sou conhecida lá, moro lá desde os sete anos, aí tenho vergonha de pedir esmola e varrê na feira de Juazeiro. Só como disso, eu também peço nas budegas e nos cafés, peço a um e a outro. Tiro um conto, dois conto, assim vou vivendo. Só o trabaio no barro num dá e roubá eu num vou. As muié nova pede, quanto mais eu qui já tô véia e duente. Agora eu quero falar pra eu miorá mais a vida. O trabaio do barro quando vou pegá, fico com as mão drumente, aquele drumiço nas mãos. Fico bastante duente, só quiria que arrumassem um negoço pra mim. Minha casa é muito pobrezinha, quero ajeitar e num posso, é muito apertadinha, só tem um vão, ainda essa sumana levei uma queda dentro de casa, num reguinho que tem dentro de casa, o esgoto passa por dentro de casa e eu num posso fazer, num tem tijolo, num tem nada. Jenuaro trabaia butando umas rocinhas de meio, mas num dá pra nada, não. Minha vida é muito precária. A gente leva os buneco pra feira e o povo num compra, só quer baratinho e num posso vender. Outra é que tem muita gente ignorante, a gente pede um preço ele ignora, querem de graça e eu num posso dar, material caro, dá muito trabaio, eu já trabaio a força, vivo sem paciência pra arte, tô véia”.

O trabalho com cerâmica envolve uma série de dificuldades. Ciça explica: “O barro eu vou buscar nas Cobras, num boto de carrada não, eu vou buscar na cabeça. É muito longe de minha casa, perto da Serra do Horto, quase meia légua. Tenho que comprar tinta, tinta de casa, tinta d'água, misturada com cola de madeira. Os pinceus eu faço de palito e algodão, só uso as mão e os palito. Teve um tempo que eu viajava, com o meu primeiro marido, fazendo boneco de barro, pra trocar por comida cum os minino e pra vender na feira. Viajava pra Cedro, pra Iguatu, andei até pela Paraíba... tempo bom. Eu faço de tudo na minha arte, faço reisado, cobra, muié fazendo renda, muié catando piolho, muié dando de mamar, banda de pife, padre confessando, João Tingó, Maria Fumaça, casamento, batizado, violeiro, operação, anjo, diabo, cangaceiro, santo, gato, capote, tenho tudo na minha cabeça, é tudo na minha maginação”. Interrogada por que não cozinhava seus bonecos, fala com simplicidade: “Num dá pra cunzinhar, minha arte é deferente, leva pena, leva cordão, leva simente, leva muita coisa. Se eu for cunzinhar queima tudo. E eu também num sei cunzinhar não, aquilo precisa outra preparação. Eu só sei fazê, butá no sol, pintá e pronto. Cada pessoa tem sua arte”.
Por não cozinhar em forno suas peças (daí o nome Dona Ciça do Barro Cru), elas são fragilíssimas, quebram-se ao menor impacto ou com o tempo se desfazem, voltando novamente à massa amorfa do barro bruto. Pessoas interessadas na comercialização da sua arte, ou mesmo pensando em conservá-las, tentaram convencer Ciça de queimar as suas peças. Já houve mesmo quem quisesse doar-lhe um forno. Ciça resiste, continua não cozinhando seus bonecos, deixa-os belos e frágeis, enfeitados com fitas, cordões e penas, destinados à breve existência, ao desaparecimento.
Assim como a sua arte, é a sua criadora, bela e frágil, na sua fascinante criatividade, que também desaparecerá, miseravelmente, catando legumes e pedindo esmolas nas feiras. Tanto é o amor que suas mãos maravilhosas transmitem aos seus “bichinhos de barro” que, ante a impossibilidade do sopro da vida, Ciça lhe cria, com toda liberdade de expressão existencial/estética, uma vida onírica, poética, fantasiosa, deitando raízes no seu cotidiano e no mundo que a cerca. Batiza suas criações com nomes engraçados, conversa com elas, canta canções de ninar... Cada boneco ou bichinho de barro criado por Ciça tem um passado, um presente e um futuro. Quebra-se a barreira da lógica formal, brilha o relacionamento mágico do homem com a natureza. Os bonequinhos parecem adquirir vibrações próprias, vibrações quase palpáveis para as pessoas sensíveis, vibrações que irradiam a beleza de Ciça – mãe de Barro, criança travessa com suas dezenas de anos escanchadas na cacunda. As suas “festas de casamento” ou, como ela gosta de dizer, “inauguração da minha arte” é um momento de rara beleza, onde o sonho e o real se irmanam. “Eu faço os bonecos, são quatro noivado, dois em pé pra se casá, dois sentado pra sair da mesa. Primeiro fica uma pessoa falando pelos boneco do mesmo jeito de uma pessoa que fala quando vai se casá, a pessoa diz as coisas com os noivados. Aparece um vinhozim e compro uma galinha. Depois do casamento sento os boneco na mesa e boto cumida pra eles, também pro padre, pro sacristão. Boto cumida e vinho pras visitas”.
Durante todo o ano Ciça se prepara, faz economias, mesmo tendo que passar fome mais do que já passa, para comprar uma galinha e um litro de vinho de jurubeba. No dia da festa, Ciça prepara a galinha, põe o vinho de jurubeba na mesinha de toalha branca feita de saco de açúcar e acende as velas. Um ritual sagrado/profano. Para a arte de Ciça e seu relacionamento com esta arte, vale a análise de Paul Ahyi, sobre a arte produzida pelos povos de tecnologias simples: “(...) dissocia e associa os elementos naturais segundo as suas próprias leis, é porque tenta eternizar e realçar, no ser vivo, o permanente e não o acidental, a essência e não a aparência, o constante e não o efêmero. Seu objetivo, de certo modo, é mostrar a realidade do ser vivo e não a sua imagem externa”.
A memória cultural nordestina guardará o nome desta artista do povo? Possivelmente sim, a sua arte não será de todo esquecida. Ficará a sua voz suave conversando com os seus “bonequinhos de barro”, ficarão os gestos das suas mãos calosas no duro ofício do barro, ficarão seus depoimentos de dor e esperança, ficará o seu sorriso forte, gravados na película do filme Dona Ciça do Barro Cru, realizado pelo cineasta cearense Jefferson de Albuquerque Jr., que denuncia a pobreza de Dona Ciça e resgata para o futuro a grandeza e a criatividade desta artista popular que faz da sua arte e da sua vida a expressão dos sonhos e das dores deste povo nordestinado.
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Texto originalmente publicado no Jornal O POVO - Fortaleza-CE – 16 de maio de 1982.
Fotos: Ricardo Tilkian.
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terça-feira, 24 de março de 2020
Filme caririense ‘Candeias’ é disponibilizado no YouTube

O curta-metragem caririense Candeias (O Berro Filmes) é lançado na internet com o objetivo de se somar às ações que contribuem para que a população enfrente o período de quarentena por conta do coronavírus.
O documentário em curta-metragem Candeias está disponível gratuitamente na plataforma YouTube desde as zero hora desta terça-feira, dia 24 de março.
Filmado durante a Romaria de Nossa Senhora das Candeias, em fevereiro de 2016, o curta é uma produção de O Berro Filmes, com direção de Reginaldo Farias e Ythallo Rodrigues, e conta com o apoio da SECULT-CE, através do XI Edital de Cinema e Vídeo. A produção apresenta um olhar voltado para uma das mais belas expressões da religiosidade popular do Cariri, a “Procissão das Velas”, que ocorre em Juazeiro do Norte desde o início do século XX, sempre no dia 02 de fevereiro.
Para a equipe de O Berro Filmes, a decisão de publicar o vídeo na plataforma e disponibilizá-lo gratuitamente para o público foi tomada em um momento delicado, quando as pessoas estão sendo forçadas ao isolamento social em suas casas, com o objetivo de evitar a propagação do novo coronavírus (Covid 19) e deve se somar a outras iniciativas, para amenizar a pressão e contribuir para o controle emocional das pessoas. “Nós vínhamos planejando isso [disponibilizar o filme] há algum tempo e iríamos fazer em um outro momento, mas dada a situação pela qual estamos enfrentando no mundo todo, encontramos essa forma de contribuir para que as pessoas possam ter mais essa opção de entretenimento e controle emocional durante essa crise gerada pela pandemia do novo Coronavírus”, comenta um dos diretores do filme, o cineasta Ythallo Rodrigues.
A disponibilização do filme na plataforma de compartilhamento de vídeos é também uma forma de homenagear o Padre Cícero Romão, no aniversário de 176 anos de nascimento do sacerdote, fundador de Juazeiro do Norte e ícone religioso dos nordestinos, também comemorado nessa data. “Além de todas as dificuldades enfrentadas devido ao coronavírus, Juazeiro do Norte e o Nordeste sofrem com o cancelamento de uma das mais importantes festas da religiosidade popular, que é a comemoração do aniversário de nascimento do Padre Cícero. Esperamos que essa decisão possa amenizar um pouco mais a tristeza dos juazeirenses e romeiros que, pela primeira vez na história, viram essa festa ser cancelada”, ressalta a equipe – formada por Hudson Jorge (jornalista e produtor cultural), Xico Fredson (Policial Militar / Monitor Disciplinar no 2° CPM-CHMJ), Reginaldo Farias (artista plástico e designer gráfico), Ythallo Rodrigues (cineasta e poeta) e Luís André Araújo (professor universitário).
Um filme que circulou pelo Brasil
Lançado no dia 1º de fevereiro de 2017, Candeias teve, ainda naquele ano, uma boa aceitação no circuito audiovisual brasileiro. Ao todo foram 25 festivais nacionais e/ou mostras competitivas, como o 22º É Tudo Verdade RJ/SP e o 27º Curta Cinema RJ. O filme contabiliza ainda duas apresentações em festivais internacionais, em Bogotá (Colômbia) e Sofia (Bulgária). A produtora O Berro Filmes estima que, até o momento, foram quase 50 exibições públicas.
Premiação
O filme sobre a procissão das velas recebeu os prêmios de Melhor Curta-Metragem pelo Júri Popular, Melhor Fotografia e Melhor Som do 1º Cine Cariri, além do prêmio de Melhor Fotografia no II Festival de Cinema do Paranoá, no Distrito Federal, ambos em 2018. Ainda naquele ano, o documentário recebeu a indicação para o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2018, considerado o “Oscar do Cinema Nacional”.
O filme pode ser visto através do link https://bit.ly/curtacandeias
Filme Candeias:
segunda-feira, 15 de julho de 2019
Conhece a ti mesmo, juazeirense...

“Conhece a ti mesmo”, um aforismo grego que nos faz refletir sobre a importância do autoconhecimento para que nos tornemos pessoas melhores, para que não repitamos erros, para que possamos construir a nossa identidade e dela sentirmos orgulho. E para que sorríamos de preconceitos tolos, olhando para a grande estátua dizendo: padrinho, perdoai-os, eles não sabem o que dizem.
Provavelmente a máxima grega foi escrita por um historiador, como o professor Daniel Walker, suposição minha; sem provas documentais ou depoimentos, puro “achismo” embasado no rico acervo deixado pelo historiador, que nos trouxe, através dos seus livros e palestras, muito do que conhecemos sobre Juazeiro do Norte e o seu patriarca.
Movido pela curiosidade que lança luz sobre a ignorância e o preconceito, mais de 50 obras foram escritas. Está tudo documentado, tudo preto no branco. Precisamos apenas que a curiosidade nos tire da inércia – e da loucura por leituras “whatsapinianas” – e partamos em busca do conhecimento sobre a nossa história, a nossa formação religiosa, cultural, econômica, etc.
A data de 11 de julho de 2019 ficará marcada como aquela em que o pai, historiador, o radialista, o jornalista, o escritor, e um sem número de outras possibilidades vividas por Daniel Walker, encerrou o expediente mais cedo, resolveu se tornar um imortal pela sua obra e pela lembrança de todos que o conheceram.
A equipe O Berro se solidariza com os familiares e amigos de Daniel Walker, neste momento de grande saudade.
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