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terça-feira, 14 de julho de 2020

Lockdown fajuto e flexibilização capenga: receitas para um ‘puxincói’ anunciado



por Hudson Jorge

Nesse momento em que vemos os casos de covid-19 aumentando descontroladamente em muitas regiões, principalmente no Cariri, há diversos relatos de pessoas que continuam ignorando a gravidade da doença e suas consequências, seja para a saúde individual ou coletiva das pessoas ou mesmo para a economia. São festinhas nas calçadas, churrascos (quase todo mundo tem um vizinho travesso juntando amigos e assando uma carninha regada a cerveja gelada), enquanto outros se enfurnam em suas casas, abrindo mão, inclusive, de se relacionar ou fazer funerais de entes queridos.

Há um tempo atrás eu ouvi de jurista (que não me recordo o nome) que as leis e o Estado existem para proteger o cidadão, inclusive, dele próprio – na época a discussão era sobre regras de trânsito e uso da cadeirinha para crianças (porque muitas pessoas alegam que querem ter o direito de optar pela utilização ou não).

O que vemos aqui é uma sucessão de inoperâncias do Estado, influenciadas por políticas de governos.

Em todas as esferas, os governos estão sendo pressionados a flexibilizarem, inclusive, a rigidez (estranho, não?), e para isso existem vários aspectos influenciadores (economia, ideologia e eleições).

Por mais que o Estado* se esforce para oferecer estrutura mínima de atendimento para infectados, a grande preocupação passou a ser a de que o cidadão tenha um leito para morrer “dignamente”.

Os municípios não operam para fazer valer os próprios decretos estabelecidos, os governos estaduais não agem efetivamente para vigiar e punir os desobedientes, seja por falta de contingente ou por falta de organização.

Enquanto isso, acontece o que acontece: uma parcela da população se protege, se tranca, deixa de ver pai, mãe, familiares e amigos; a outra liga o “foda-se” e descumpre lindamente regras, leis e recomendações.

No final das contas, pagam todos, porque parece que ficaremos girando indefinidamente nessa roda chamada pandemia. Um “puxincói”, como diria minha vó: libera, restringe, libera e restringe. Mas, o pior é ver começar a chegar relatos de parentes e amigos infectados, alguns mortos e o povo, em todo canto, querendo fazer disso tudo um eterno Leblon.

Somos tão incapazes de controlar a pandemia, que o discurso de salvar vidas apregoado pelos governantes de estados e municípios foi revertido para a preocupação de que não faltem leitos nos hospitais.

Isso reforça uma ideia que venho batendo na tecla nas conversas informais: para o Estado somos números. Deixaram de se importar com as vidas, para se importar com os números.

Enquanto o sistema de saúde não colapsar e as pessoas não estiverem morrendo nas calçadas, como aconteceu no Equador, está tudo bem!, está tudo ótimo!, mesmo que morram dezenas, centenas ou milhares diariamente.

“Quanto mais gente morre, melhor”, porque os leitos são liberados automaticamente. Não há colapso, entendem?
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*Quando me refiro a Estado, falo dos Governos Estaduais e Municipais. O Governo Federal desde o início se mostra incapaz, ao menos, de compreender a situação, o que o torna, infelizmente, ineficaz e inoperante.

foto: Nívia Uchôa (@niviauchoa)

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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Que saber é esse?



Poesia não é questão de verso, pressupõe trabalho, racionalização, construção e, principalmente, um saber. É o que mostra Amador Ribeiro Neto em Poemail, em linguagem experimental e consonante com o concretismo

por Anelito de Oliveira

Novo livro do paulista Amador Ribeiro Neto, radicado em João Pessoa, apresenta coletânea de poemas, em que apresenta a possibilidade de saber de si e do outro: “Livros nos devolvem quem somos”

Meu jovem filho
“quisera eu cosê-la / (a natureza) // a navalhadas /
e punhaladas // foices / e facadas // enxadadas / e machadadas //
sová-la / e sová-la // até devolver/ -me // intacta em sua alegria /
de mil sóis // a vida / de meu // jovem / filho”

Quando publicou seu primeiro livro de poemas em 2003, Barrocidade, Amador Ribeiro Neto, paulista de Caconde radicado em João Pessoa desde 1991, já era conhecido e admirado como um dos mais importantes pesquisadores da obra de Caetano Veloso e sensível crítico de poesia. Os poemas que publicou na antologia Na virada do século, organizada por Cláudio Daniel e Frederico Barbosa para a Landy, em 2002, constituíram uma “avant première” para uma poesia desejosa – não saudosa – de “avant garde”, de se concretizar como objeto dinâmico, movimento vivo. O segundo título publicado pelo autor depois de longos 12 anos, já em 2015, o “futurista” (ressoando Álvaro de Campos) Ahô-ô-ô-oxe, foi uma espécie de “tuitaço” artesanal, publicação aparecida em Florianópolis pelo selo Cartonera, anunciando o seu novo livro: Poemail, uma coletânea de poemas que agora sai pela Patuá.

A experimentação de linguagem, desarticulações e rearticulações do código verbal, é o traço que primeiro salta à vista numa poesia que se coloca abertamente no horizonte do concretismo e de outros tantos “ismos” do passado. Elucidar essa relação, num exercício de crítica intertextual, é importante, sem dúvida, num momento em que questões externas, sobretudo a questão de gênero e da mediação, sobrepõem-se muitas vezes de modo grotesco a questões internas, que dizem respeito à mecânica mesma da poesia. Todavia, o reconhecimento da relevância do gesto de Amador depende da qualificação dessa relação, da explicitação dos seus índices de autenticidade, de tal modo que possamos perceber um “intercessor” (Deleuze) dos “ismos”, que acrescenta dados ao repertório já convertido em tradição literária, não um mero emulador desses “ismos”.

Em consonância com o concretismo, a poesia não é, para o poeta de Poemail, uma questão de verso, mas uma questão de fazer, que pressupõe trabalho, racionalização, construção e, antes de mais nada, um saber. Que saber é esse? Este é o ponto fulcral, eu diria, que é preciso tensionar, tentar elucidar, sabendo, de antemão, que não é tarefa fácil, sobretudo em razão do fato de que estamos diante de um poeta “savant”, não de um criador de poemas espontâneo, movido pela famigerada inspiração. Toda a primeira parte de Poemail, denominada “Elos”, decantando poetas, críticos e prosadores, atesta não apenas uma rede de relações intertextuais – dado previsível –, mas um “modus operandi” do saber letrado, cuja particularidade consiste num dobrar-se, num volver sobre si mesmo: “Livros nos devolvem quem somos /: o avesso / do / nada / de / novo / a / o avesso” (A morte e os livros).

Ao contrário de grande parte dos poetas ditos cultivados, que ainda hoje percebe a relação com a poesia a partir de um preceito beletrista herdado do século 19, Amador Ribeiro Neto encontra nos livros – de poesia, no sentido genérico de “poiesis”, de criação – uma possibilidade de saber de si – e, concomitantemente, saber do outro. Seu gesto poético, como já o demonstrava desde o turbulento Barrocidade, não é narcísico, autocomplacente, mesmo quando se empenha em falar do sentimento de pai diante da morte trágica de um filho. Vejamos já, para exemplificar este aspecto, o que se passa no belo “Meu jovem filho”, um dos momentos viscerais de Poemail: “Quisera eu cosê-la / (a natureza) / a navalhadas / e punhaladas / foices / e facadas / enxadadas / e machadadas / sová-la / e sová-la / até devolver/ -me / intacta em sua alegria / de mil sóis / a vida / de meu / jovem / filho”.

Esse poema, ao lado de outros em que o poeta atém-se a eventos dolorosos, como depressão e suicídio, figura na terceira e última parte de Poemail, denominada “Dentros”, precedida por “Sítios” e a já citada “Elos”. Saber de si, adentrar-se, dobrar-se, coloca o poeta numa situação de enfrentamento brutal da natureza, em que reluz uma verdade experienciada, com sabor de agonia, que tem sido sistematicamente evitada, quando não censurada, desde os anos 1990 na poesia brasileira em nome (quem sabe?) de uma saúde institucional, acadêmica, do campo literário. O movimento – corajoso – que “Meu jovem filho” realiza é compreensível à luz do que Foucault explora n’A hermenêutica do sujeito: a perspectiva socrática do conhecer a si mesmo consiste num despertar da interioridade como esfera incômoda, cuja imagem é a de um animal acometido por um tavão, o inseto que produz uma coceira terrível, um mal-estar no corpo.

Resistência ao Estado opressor

Nascido em 1953, Amador Ribeiro Neto tinha 11 anos em 1964, quando os militares tomaram cinicamente – tal como tem acontecido no país de 2016 para cá – o poder, investindo na demonização da democracia e instaurando, a partir de 1968, um “estado de exceção”, com a negação de direitos fundamentais, a começar pela liberdade de expressão. Tendo vivenciado as agruras daquele cenário, Amador pertence à geração que teve no incômodo, na insubordinação, no “desbunde”, como se dizia nos anos 1960 e 1970 ao ritmo da contracultura, uma questão de honra, um índice de resistência ao Estado repressor. O fato de sua poesia ter começado a aparecer em livro somente em 2003 não pode constituir estímulo para leituras agorais, presentistas, convenientes, pautadas apenas em valores teórico-críticos considerados atuais. Evidente que, como Murilo Mendes se via, o poeta de Caconde não é seu próprio sobrevivente, mas seu próprio contemporâneo – com toda a complexidade que este conceito implica, todavia.

Ainda à luz do modo inquietante como Foucault repensa a subjetividade, é possível dizer que o tavão de Amador – e de todos os marginais, alternativos, vanguardistas da sua geração – é a ditadura militar, o “Estado de exceção”, que provoca ânsias rimbaudianas de desregramento de sentido, ataques de “beat generation”. Poemail nos permite perceber uma espécie de passo a passo desse processo no âmbito específico de uma poética: os “elos” autorais, os “sítios” habitados, os “dentros” acessados. O que conta nesse processo, segundo essa ordenação, é, em primeiro lugar, o nível discursivo, a representação, a “realidade de signos”, para lembrar Haroldo de Campos, uma das referências estruturantes do poeta em Amador, ao lado de Caetano Veloso e, como Poemail o revela agora, João Cabral. Em segundo lugar, contam nesse processo duas geografias – a paulista e a paraibana. E, em terceiro lugar, conta a vida vivida, a experiência nua e crua de existir, afeto familiar, doença, morte – e a alegria!



De fato, é a alegria que, como assinala o poeta Ronald Polito no prefácio a Poemail, desponta como fatura geral, ponto luminoso da geleia, nesse livro que é tão século 21, afim da internet, hipertextual, rizomático, quanto modernista, generoso com as brasilidades, as feiras, as malícias, os altos e baixos, as contradições cotidianas de um país transbarroco. A “alegria é a prova dos nove”, como sentenciou Oswald, mas não só isso; é um torquatiano porto seguro, mas também não só isso; é uma caetânica auto-afirmação sobre os podres poderes circundantes, mas algo que também vai mais além disso. A alegria de Amador é uma alegoria, para lembrar Celso Favaretto lendo a Tropicália, do processo de desregramento de sentido como processo de barroquização, que pressupõe uma compreensão da matéria de poesia – temas, eventos, sensações, experiências, signos diversos – como algo modulável, dobrável, variável. Trata-se de uma alegria que resulta de um saber sobre si mesmo como objeto comunicante, espécie de “eumail”.

Toda a autenticidade desconcertante que atravessa Poemail se deve, sem dúvida, a uma perspectiva sobre a alegria, esse controverso capital nacional, muito próxima àquela concebida pelo poeta e psicanalista mineiro Hélio Pellegrino, um dos maiores poetas-sabedores do país, numa crônica que é uma obra-prima, hoje constante do seu A burrice do demônio, coletânea organizada pelo jornalista Humberto Werneck. “Toda alegria longa e autêntica – é severa”, diz Hélio, “o que não impede que a alegria seja leve e tenha gosto de vinho.” Essa crônica se chama “A construção da alegria”. Ainda no início desse belíssimo poema em prosa, diz o autor de alguns dos versos mais pungentes de sua geração, reunidos pelo mesmo Werneck no volume Minérios domados: “Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis”.

Realmente, não são fáceis as ferramentas com as quais Amador Ribeiro Neto constrói o seu barco-alegria. Poemas como “Ensimesmado” (“cada dia / entendo / mais & mais / profundamente / o som / surdo / dos / suicidas”), “A cerca da dor” (“a dor / corrói o metal dos edifícios”) e “Invocação das dores” (“largar livros / leituras / escritas / todo / & / qualquer / texto / para que / adentrem / angústias / desgraças / flagelos”), todos pertencentes aos “Dentros” de Poemail, dão a precisa dimensão existencial dessas ferramentas, desvelando a razão da particularidade “ivre”, bêbada, por isso mesmo humana, frágil, sensível, do barco do poeta. O artifício vanguardista, atualizado em clave concretista ou barroquizante, articula-se, nessa poesia, de modo produtivo a uma substância sempre tensa, agitada, transbordante, que não aspira apenas à leitura fria, mas a um envolvimento corporal, dançante, cantante, com o leitor. O Poemail do poeta do barco-alegria grita, como o Cazuza de “Boas novas”: “Então, vamos pra vida!”.
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Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O iludido (Páginas, ficção), Traços (Patuá, poemas) e A aurora das dobras (Inmensa, ensaio) entre outras obras.

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sábado, 9 de maio de 2020

Pandemônios de Regina Duarte em tempos de pandemia


Charge: Laerte / @laertegenial


por Hudson Jorge

Depois de todo o burburinho criado em torno da entrevista da Secretária Nacional da Cultura, Regina Duarte, dada ao vivo à rede CNN, vários memes e vídeos editados com os momentos mais destacáveis, resolvi me deter, durante cerca de quarenta minutos para assistir ao material na íntegra.

Claro que não esperava nada de extraordinário. Minha intenção era poder assistir todo o conteúdo e fazer um comparativo em relação ao que costumamos receber através de pequenos trechos editados, devidamente mastigados e o contexto de onde eles são tirados.

Ainda assim, consegui me surpreender. Eu não podia esperar que uma entrevista começasse, logo de cara, com uma enorme de uma #vergonhaalheia. Uma pessoa que ocupa um cargo praticamente equivalente ao de Ministro de Estado, começar agradecendo um poeminha gerado em um contexto que não tem nada a ver com a entrevista.

Regina Duarte deu vexame, todos sabem. Comportou-se na entrevista como se estivesse numa conversa de comadres tomando o chá das cinco. Quis parecer graciosa, mas apresentou-se patética, despreparada intelectual e emocionalmente para estar à frente de um cargo tão importante. Claro que isso não é nenhuma novidade neste desgoverno, mas dessa vez, a evidência me trouxe sentimentos nada agradáveis.

Assistindo à entrevista, me recordei de um episódio na minha infância, quando desci, despreparado, uma ladeira íngreme em uma bicicleta sem freio. A sensação que tive foi a mesma. A de ter embarcado em um veículo descontrolado e sem freio sobre o qual eu não tinha domínio, mas estava lá, sendo conduzido por ele.

Tive vontade, em diversos momentos, de pausar o vídeo e pedir desculpas. Desculpas ao jornalista Daniel Adjuto, que se deparou com uma entrevistada que não deu nenhuma resposta objetiva e que buscava simular uma suposta amizade, colocando-o numa situação de parcialidade, ao vivo, diante das câmeras e do seu público; pedir desculpas aos familiares de todos os torturados e mortos pela ditadura militar e ainda pelos falecidos recentemente (seja aos artistas ou aos milhares de anônimos abatidos pelo coronavírus); pedir desculpas aos espectadores e pedir desculpas a mim mesmo por ter assistido àquele show de horrores.

Como se não bastassem as opiniões infames sobre autoritarismo, ditadura, tortura e assassinatos, a Secretária Nacional da Cultura conseguiu não apresentar nenhum projeto, nenhuma solução ou, sequer, dar alguma esperança para os milhões de trabalhadores da Cultura desse país, que hoje estão tolhidos de suas oportunidades de trabalho e geração de renda devido à pandemia do novo coronavírus.

Que trágico momento vive a Cultura, as artes e os artistas brasileiros. Órfãos de liderança que seja capaz de batalhar por alguma ação emergencial ou, ao menos, de confortá-los em momento tão difícil.

A Cultura brasileira, celebrada em todo o mundo pela sua diversidade, qualidade e encantamento, a cada dia sofre novos e novos golpes pelos incautos incapazes produzi-la, de apreciá-la ou mesmo de percebê-la. E os artistas brasileiros (que não precisavam passar por isso), sofrem o escárnio e o desprezo da instituição que mais deveria valorizá-los.

Já vivemos incontáveis trágicos momentos nesse desgoverno com as atuações e falas abomináveis dos Ministros do Meio Ambiente, da Educação, da Economia, da Mulher, Família e Direitos Humanos e por aí vai uma lista de vários outros dementes. Mas, Regina Duarte não só despreza seus colegas de trabalho, zilhões de vezes mais competentes, como não perde a oportunidade de humilhá-los e constrangê-los perante o mundo com suas declarações estapafúrdias.

No entanto, ela nos dá uma oportunidade de ouro, pois, talvez, nunca teríamos percebido, em sua totalidade, o ser desprezível que ela é – hoje lamento profundamente por não ter torcido pela Odete Roitman, mas, eu era apenas uma criança e me perdoo.

Várias pessoas já falaram isso, mas não posso deixar de repetir que essa ex-atriz “mêa boca” terminou de rasgar sua biografia e enterrar seu currículo na caixa de areia do gato.

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terça-feira, 21 de abril de 2020

Brasília, 60 anos: olhares cinematográficos



por Ythallo Rodrigues

Em 21 de abril de 1960, era inaugurada a novíssima capital de um dos principais países do “terceiro mundo” (termo que à época fazia sentido), Brasília, um marco da arquitetura e das artes modernas de um país chamado Brasil. Hoje ao completar 60 anos (dos quais mais de um terço foi sob regime ditatorial), não há muito o que se comemorar ou quase nada: talvez comemorar o imaginário romântico da existência de Brasília como uma “cidade-obra-de-arte”, ou ainda comemorar a existência e a sobrevivência de grande parte de sua população que não necessariamente tem a ver com as mazelas que retumbam da capital desta federação.

No entanto, vimos aqui nessa postagem, novamente, para indicar trabalhos artísticos que durante esses anos observaram questões sociais importantes, tensionando artisticamente as realidades que a capital planejada nos trouxe ao longo de sua breve história. São três curtas-metragens de importantes realizadores do cinema nacional que podem ser acessados e vistos no YouTube.

O primeiro desse filmes é Fala Brasília, de Nelson Pereira dos Santos, realizado em 1966, através do INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo). O filme nos apresenta cinco personagens, um de cada uma das regiões do Brasil, em que o cineasta busca refletir sobre a multiplicidade dos sotaques dos mais diverso lugares, na capital.

O segundo, Brasília - Contradições de uma Cidade Nova, de Joaquim Pedro de Andrade, de 1967. O documentário é realizado a partir da pergunta estruturante: “uma cidade inteiramente planejada, criada em nome do desenvolvimento nacional e da democratização da sociedade, poderia reproduzir as desigualdades e a opressão existentes em outras regiões do país?”*

E por fim, outro documentário, este baseado em material de arquivo e intitulado Brasília segundo Feldman (1979), de Vladimir Carvalho, a partir de material filmado por Eugene Feldman, em 1959, durante a construção da cidade. O filme traz à tona o massacre de operários na Vila Planalto, evento trágico e jamais solucionado, neste período ainda antes da inauguração de Brasília.

Para concluirmos, gostaríamos de citar também dois realizadores contemporâneos que têm construído suas filmografias a partir de Brasília: a primeira é a piauiense Dácia Ibiapina – Ressurgentes: um Filme de Ação Direta –, professora da UnB e cineasta, que vem realizando vários filmes (curtas e longas) geralmente com uma pegada social e com muita potência. O outro realizador é o Adirley Queirós – Branco Sai, Preto Fica e Era uma vez Brasília – que a partir da Ceilândia (cidade-satélite) ecoa sua força cinematográfica que viaja pelo espaço-tempo e explode contra o concreto brasiliense.

Os três curtas, Fala Brasília, Brasília - Contradições de uma Cidade Nova e Brasília segundo Feldman, podem ser acessados a partir da playlist abaixo:



* Citação retirada da sinopse do filme no página da Cinemateca Brasileira.

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terça-feira, 7 de abril de 2020

Se eu me arrependi de ser jornalista?

por Hudson Jorge

Foto: Samuel Macedo 
Justamente hoje, dia 07 de abril, Dia do Jornalista, me perguntaram se eu já tinha me arrependido da profissão que escolhi.

Desde novinho me pego redigindo, lendo e brincando de jornalista. TVs, rádios, microfones de chave de fenda imaginários. Na adolescência, escolhi e fui escolhido por um jornal escolar (na verdade, entrei nele na marra). O Berro pulou os muros da antiga Escola Técnica Federal do Ceará (Uned Juazeiro do Norte), atualmente IFCE, e ganhou o mundo. Foi se aventurar pelos guetos culturais, corredores da Universidade e nas bancas de revistas.

De lá pra cá foram assessorias de imprensa, jornais impressos, web e rádio. Não me aventurei pela TV (ainda).

Apesar das dificuldades, da falta de reconhecimento, dos salários baixíssimos que o mercado de trabalho oferecem e da perseguição de uma parcela (insana) da sociedade, não encontro motivos para me arrepender. Não me considero, apenas, uma pessoa formada em Jornalismo. Eu me sinto Jornalista, desde sempre, apesar de ter iniciado a faculdade em uma idade um pouco avançada para a média e depois de já ter tido várias experiências que me trilharam nesse caminho.

E, a despeito dessas dificuldades todas, me resta, apenas, a reinvenção. Procurar surfar neste momento tecnológico atual nas possibilidades existentes, sambar por sobre o contracheque e encontrar saídas.

Não me enxergo em outra profissão que não seja a comunicação, o jornalismo, a assessoria de imprensa. Não me vejo em outro lugar que não esse!

Se um dia eu estiver em alguma outra frente, qualquer pessoa poderá me olhar nos olhos e constatar que parte de mim não estará feliz e pensando em arrumar um jeitinho de voltar.

Eu torço por dias melhores para os meus e as minhas colegas jornalistas, por um mundo mais humano nas relações de trabalho, pelo reconhecimento, por uma remuneração digna que os permitam viver sem percalços, sem dúvidas, sem estresses e com a dádiva de terem um momento de seus dias para viverem para além do trabalho (sim, existe vida fora do jornalismo, ou deveria existir).

Desejo também que a sociedade saiba respeitar a profissão de jornalista e tenha a capacidade de reconhecer, verdadeiramente, a diferença entre o bom e o mau profissional. Que saiba se informar por fontes realmente confiáveis que gastam sola de sapato, planos de internet e minutos do celular em busca da informação, para ser apurada, filtrada e dada de presente (sim, toda reportagem é um presente!) para o público.

Aos amigos e amigas jornalistas, a minha solidariedade! O parabéns que posso nos dar é pela força, pela resistência e pela coragem. (Para muitos) não há glamour! Há suor, comprometimento e competência.

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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Por que Bolsonaro governa o Brasil na contramão dos índices e recomendações científicas de combate ao Covid-19? Um ensaio sobre o “Estado suicidário”


Praça Padre Cícero em Juazeiro do Norte, deserta em tempos de coronavírus (foto de Luis Celestino - com edição)

por Lusmário Oliveira

Desde o início da pandemia do Covid-19 venho tentando compreender as atitudes que tem tomado o presidente Jair Bolsonaro. Minha questão partia basicamente desse pressuposto: como pode ele, mesmo com tantos exemplos ao redor do mundo, com tantos dados científicos e embates consistentes e diretos às suas atitudes, continuar agindo no caminho contrário da prevenção e promoção à saúde da população brasileira? Em tempo: antes de qualquer coisa, gostaria de frisar que não pretendo com textos como este trazer uma resposta concreta e/ou certeira, e sim discutir ensaios filosóficos que se propõem a discutir acerca do cenário atual, objetivando gerar reflexões e, talvez, servir de auxílio para a ampliação de conhecimento e construção de novas ideias.

Logo após os primeiros pronunciamentos do presidente sobre a pandemia, foram elencadas algumas possíveis explicações para as suas atitudes. Uma delas é a que alega se tratar de uma estratégia política que Bolsonaro estaria usando para isentar-se das responsabilidades de um quase certo crash da economia brasileira – o que não seria nenhuma novidade, tendo em vista que o colapso econômico vem se instaurando bem antes da pandemia. Esta estratégia de evasão viria atrelada ao direcionamento da responsabilidade aos governadores que não seguirem as suas recomendações de priorizar o sistema econômico em detrimento da saúde pública.

Mas de algum modo a tese acima não supriu minha curiosidade. O campo no meu cérebro que ansiava germinar ainda não via nada brotar. Posteriormente, quando tive contato com o ensaio do filósofo brasileiro Vladimir Safatle – “Bem-vindo ao Estado Suicidário” – sobre o atual cenário no Brasil, logo no primeiro parágrafo entendi o equívoco na construção da pergunta que fiz aqui, coincidentemente, no primeiro parágrafo. Também observei que coloca em xeque a explicação do parágrafo anterior, não por ela estar incorreta, mas por que o filósofo se propõe a uma discussão que vai além das fantasias que podemos conjecturar para as infindas possíveis motivações que possam existir nas atitudes de Bolsonaro.

Ou seja, para Safatle, o que está acontecendo no Brasil não nasce, em nenhuma instância, de um acidente ou de um voluntarismo dos governantes, “até porque, ninguém nunca entendeu processos históricos procurando esclarecer a intencionalidade dos agentes”. Deste modo, a irrelevância que o autor atribui às motivações que levariam a tais atitudes é incisiva ao ponto de defender que comumente esses agentes agem sem sequer terem alguma noção do que estão fazendo.

Mas afinal, o que Safatle quer dizer com “Estado suicidário”? Trata-se de um termo que se usa para explicar que este cenário vai além de um conceito mais discutido e conhecido: necropolítica. Conceito esse que foi desenvolvido pelo filósofo camaronense Achille Mbembe, em 2003, para designar as políticas de estado que decidem quem deve morrer e quem deve viver.

Fazendo agora uma comparação: assim como o fascismo para Bertolt Brecht “apenas pode ser combatido como capitalismo, como a forma de capitalismo mais nua, sem vergonha, mais opressiva e mais traiçoeira”, Safatle acredita que o Estado suicidário é inseparável do neoliberalismo e se encontra em “sua face mais cruel, sua fase terminal”. Deste modo, o Estado suicidário, conceito que toma emprestado de Paul Virilio, para além de gestor da morte como aponta Mbembe, atua continuamente para sua própria catástrofe, “ele é cultivador de sua própria explosão”.

Neste ponto, julgou-se importante elencar a perspectiva de Noam Chomsky sobre o cenário atual pandêmico. Para ele este cenário é gravemente fértil para que governantes consigam desestabilizar a democracia, e em seu ensaio apresenta as semelhanças do presente e as que percebeu há 80 anos atrás, quando tinha apenas dez anos e vivia no período de ascensão do nazismo que culminaria na Segunda Guerra Mundial. No entanto, o que seria mais importante para o que estamos discutindo agora é o que ele apresenta como uma leitura sobre um possível fim da humanidade.

Com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, cinco anos depois, com duas bombas nucleares lançadas pelos EUA em cidades japonas no ano de 1945, Chomsky atenta para os fatos que se seguiram: “há 70 anos vivemos sob a sombra da guerra nuclear. Aqueles que analisaram os registros só podem se surpreender com o fato de termos sobrevivido até agora. Vez após outra, o desastre terminal tem ficado extremamente próximo, a alguns minutos de distância”.

Quando penso na produção de armas capazes de destruir a humanidade sinto uma sensação de que estamos falando de Estado suicidário, porém, Safatle entende que um acontecimento como este houve apenas uma vez na história recente. Trata-se do momento da queda do regime nazista, mais precisamente em um telegrama: o telegrama 71. Nesse, Adolf Hitler anunciou o fim de uma guerra então perdida. No telegrama haviam os dizeres: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”.

Com esse telegrama, Hitler deu ordem para que o exército nazista destruísse o que ainda restava de infraestrutura da nação já bastante arruinada. Como se, no íntimo, este fosse o real objetivo final: que a nação se extinguisse pelas suas próprias mãos, “pelas mãos que ela mesma desencadeou”. Foi essa a resposta para uma raiva secular contra o próprio estado e contra toda a sua representação. Há diversas formas de destruir o estado e uma delas é aumentando a velocidade de sua própria catástrofe, independentemente do número de vidas que irá custar, explica o filósofo brasileiro.

As semelhanças com o governo de Bolsonaro são graves. Há algum tempo ele vem incentivando e agindo de forma a atacar instituições do estado, tais como o fechamento do Congresso e do STF. Agora, em meio a uma pandemia, ele encontrou uma catástrofe que serve como uma luva para seu plano de destruição do estado e tem feito de tudo para que consiga atingir seu objetivo autodestrutivo.

Recentemente duas matérias me chamaram atenção. Uma veiculada pela revista inglesa The Economist e outra pela BBC Brasil. A revista de economia inglesa chama o presidente de “BolsoNero”, em evidente alusão ao personagem histórico que ficou famoso por supostamente ter ordenado o incêndio de Roma, onde era imperador. A BBC Brasil veiculou uma matéria sobre o Brasil da meningite de 1974. Trata-se dos tempos da ditadura militar e, assim como hoje Bolsonaro tem tentado rotineiramente, havia um enfraquecimento da autonomia dos veículos de informação e dos jornalistas através, principalmente, da censura. A jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sobre a meningite em 1974 explica: “assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença. [...] Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas”.

Em meados do mês de março (de 2020), quando questionado sobre sua saúde, Bolsonaro disse: “se eu me contaminei, é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso”. O neoliberalismo se embasa nessa visão de homem que é relacionada ao conceito de “indivíduo” e que gera em sua esfera mais perversa outro conceito: o de individualismo. Conceito político, moral e social que manifesta a ideia de que existe liberdade do indivíduo perante o grupo. No entanto, estamos longe de falar de uma situação que gera consequências apenas na vida de quem se contamina, tendo em vista se tratar de um vírus altamente contagioso.

E é neste ponto que Safatle vislumbra uma possível alternativa. Alternativa esta que é oposta e combativa à que está tomando o presidente. Pressupõe afeto em relação ao outro sem que ele sequer faça parte do grupo que eu vivo ou sem que ele precise estar no meu lugar. Assim, recorda que são nesses momentos mais dramáticos que sentimentos como estes surgem e são capazes de lembrar aos sujeitos que eles fazem parte de um organismo maior, que é interdependente e necessita de apoio mútuo. E não é isto que está acontecendo em/entre várias nações do mundo?

Em partes, sim, mas o Brasil é um dos únicos países do mundo que tem um presidente que se recusa a seguir as recomendações de combate à pandemia global, e continua incentivando a população no sentido contrário. Se medidas como estas continuarem sendo tomadas, o Brasil tenderá a ser objeto de um cordão sanitário global e, talvez, isolado e com as instituições e governadores estaduais e municipais enfraquecidos, seja um cenário ainda mais propício de se instaurar um estado autoritário que colocará ainda mais combustível para acelerar as engrenagens de autodestruição.
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Lusmário Oliveira é psicólogo clínico e Gestalt-terapeuta.


Fontes:
Vladimir Safatle - Bem vindo ao estado suicidário.
https://jornalggn.com.br/blog/doney/bem-vindo-ao-estado-suicidario-por-vladimir-safatle-n-1-edicoes/

Noam Chomsky – Não podemos deixar o covid-19 nos levar ao autoritarismo.
Original em inglês:

https://truthout.org/articles/we-cant-let-covid-19-drive-us-into-authoritarianism/

Tradução de César Locatelli, para Carta Maior:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Nao-podemos-deixar-o-COVID19-nos-levar-ao-autoritarismo/6/46871

The Economist - Presidente do Brasil brinca com uma pandemia:
https://www.economist.com/the-americas/2020/03/26/brazils-president-fiddles-as-a-pandemic-looms

Estadão – The Economist diz que Bolsonaro brinca com conoravirus e chama presidente de BolsoNero:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,the-economist-diz-que-bolsonaro-brinca-com-coronavirus-e-chama-presidente-de-bolsonero,70003249319

BBC Brasil - Escolas fechadas, hospitais lotados, eventos cancelados: o Brasil da meningite de 1974:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52058352

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sábado, 14 de julho de 2018

Minha vida com Bergman



por Elvis Pinheiro

Lembro-me nos anos 90, em Recife, a primeira vez que vi uma lista dos dez mais importantes filmes do século. O cinema havia recentemente completado cem anos e listas do tipo arranjaram a sua melhor fase e razão de ser. Entre os dez filmes de todos os críticos e diretores e cinéfilos não podia faltar Cidadão Kane de Orson Welles e Morangos Silvestres de Ingmar Bergman. Este nome sempre teve aroma e sabor para mim. Não sabia nada a respeito da sua história, apenas intuía o que ele pudesse significar. Ficava imaginando quando iria vê-lo. Era época das locadoras de VHS e em nenhuma das que havia próximo de casa eu encontrava o filme do Bergman.

Para encurtar a história, em Recife há na rua da Aurora um imponente Cinema São Luís e nas noites de segunda-feira se exibiam os filmes de arte em sua última sessão. E foi lá, numa daquelas noites recifenses, exatamente no São Luís que descobri porque Morangos Silvestres era uma obra-prima. Filme imorredouro. Em qualquer época assistiremo-lo e vamos rir, sofrer, ter medo do futuro e do passado, recordar nossos amores, a nossa juventude, os nossos erros. Sempre abismados com o casal cheio de ódio e rancor, sempre maravilhados com a postura da nora ao volante expulsando-os, sentindo pena e aceitando o fato que ninguém pode mudar muita coisa de uma vida predestinada, de uma herança tão cruel. O gosto e o aroma só se reforçaram.

Bergman é um filósofo que nos lança perguntas o tempo todo sem respostas. Onde vi os demais? Cada qual teve sua hora. No Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Derby, ainda Recife, tive o impacto emocional de Sonata de Outono. Aquela conversa entre mãe e filha me sufocou, me horrorizou e sempre imaginei conversas longas e demoradas com entes amados onde tudo pudesse ser jogado sobre o outro, todas as mágoas, todas as frustrações causadas, todo o sofrimento impetrado! E no outro dia, o resgate sóbrio da normalidade, a busca pelo equilíbrio momentaneamente perdido. Tudo tão verdadeiro. Eu já tinha assistido as homenagens ao filme do mestre: De Salto Alto de Almodóvar e Setembro de Woody Allen. Amava os dois filmes e são obras íntegras, homenagens bem feitas, porque não roubaram ao homenageado a sua potência, o seu poder.

Fui aos poucos reconhecendo algumas características. Atores recorrentes. A fonte utilizada para escrever os créditos. Liv Ullmann: musa e parceira. Tão diferente em cada filme e tão senhora ao saborear cada palavra escrita por Bergman. O silêncio, o olhar e a entonação certa, precisa em cada cena. A leviana de Gritos e Sussurros, a reprimida de Sonata de Outono, a enigmática de Persona. A mulher madura de Saraband. Descobri e só tenho acesso a Liv Ullmann através de Ingmar Bergman.

De cinéfilo apaixonado a exibidor entusiasta. Adoro ter filmes dele que ainda não vi. Sempre haverá espaço para um novo assombro do centenário Mestre. Em junho exibi no Cine Café do CCBNB Cariri de Juazeiro do Norte, A Hora do Lobo. E li um comentário “to impactado com a hora do lobo até hoje. nunca superei”. Foi o Vinicius Gomes quem me disse isso exatamente hoje, 14 de julho de 2018, quando Bergman completaria 100 anos. Sim, ele continua e continuará sendo uma ótima razão para se ir ao cinema.

No meu ofício, ora estudo, ora revejo, ora comento ou analiso um filme. Passá-lo adiante é uma missão saborosa. O crítico não atrapalha o amante. Meu desejo só aumenta quanto mais vejo Bergman. Sou mais cinema e mais Elvis Pinheiro por conta de suas criações. O terror que senti com Fanny e Alexander, o empoderamento e o senso de liberdade que ganhei com Monika e o Desejo. O exercício da metalinguagem em Persona, em A Hora do Lobo. Não é só a Queda da Bastilha que mudou o mundo num 14 de julho. Quando penso nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, magistralmente trabalhados por outro gênio criador que tanto sinto afinado com Bergman, Krzysztof Kieslovski, penso que toda a obra do gênio sueco refletia sobre os mesmos três elementos. Nessa hora, ainda acrescento a generosidade de quem permitiu a Tarkovski filmar O Sacrifício, para depois invejá-lo. Quando se faz Arte, ela se multiplica de modo a criar mais e mais beleza e estupor! Vejamos por mais cem anos, Ingmar Bergman! Viva! Salve!

Elvis Pinheiro
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Texto escrito no dia 14 de julho de 2018, no dia do centenário de nascimento Ingmar Bergman (nasceu em Uppsala, Suécia, no dia 14 de julho de 1918).

Elvis Pinheiro é editor da Revista Sétima e professor. Desde 2003 é Mediador de Cinema no Cariri cearense.

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segunda-feira, 23 de abril de 2018

‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho



por Amador Ribeiro Neto

Rafael F. Carvalho (São Paulo, 1978), bacharel em Letras pela USP, colunista da revista Samizdat, autor de A estante deslocada (2011), A cor do sol (2013), Terceiro livro (2015). O bico do pássaro (Coleção Leve um livro) e Bambuzal (Belo Horizonte: Moinhos), de 2017, são suas mais recentes publicações. Ambas exclusivamente de haicais. Os de O bico de pássaro (na verdade um microlivro) estão todos contidos em Bambuzal. Há apenas um, com formato divergente, em ambas as publicações. Cito-o: “Minha cama é feita / de palha de arroz. Plantar / tem outras intenções”, naquela e “Minha cama é feita / de palha de arroz. / Plantar tem outras intenções”, nesta.

O deslocamento do verbo plantar, no microlivro, semeia novo ritmo e realça a ação do plantio. A interrupção sintática do segundo verso enfatiza a ideia de movimento e, pela pausa, reforça a ambiguidade do verso seguinte: “plantar tem outras intenções”.

Rafael F. Carvalho, ao arquitetar as imagens do poema, revela apurado zelo, realçando-lhes a plasticidade. Todos sabemos que enfatizar a imagem é um dos princípios balizares do haicai. Ao lado do enfoque meditativo. Até aí, nada demais. No entanto, o diferencial de Carvalho está no zelo descritivo das imagens, entretecido por vieses de minúcias. E também na mirada reflexiva que vaza os versos. Esta dupla associação gratifica.

Gratifica pelo sublime em si. Gratifica por pensar o mundo por outros ângulos.

Ora o tempo percebido no ato de matar a sede nas águas do rio. Ora a chuva e o arroz sendo cozido, conjuntamente, pelos moradores da aldeia. Ora os brotos crescendo sob o quimono molhado no bambuzal. Ora a noite assobiando em forma de lua, no bico do pássaro. Etc.

Insisto: o poeta trabalha seus haicais com filigranas de requintada elaboração. E aqui, trabalho e requinte nada têm de erudição vazia. Ou empolada. Antes: o requinte deste trabalho está em verticalizar o coloquial numa dicção ainda mais fluente. Musical. Imagética. Quer seja: poética, de primeiro grau.

É quando a magia cria morada na fala do dia a dia.

Onde residem a beleza e a delicadeza destes haicais? Na semeadura das ideias em campos de imagens, na associação da beleza plástica à reflexão filosófica.

É a filosofia encantando-se pela pintura. Como em O casal Arnolfini, de van Eyk ou em As meninas, de Velázquez. Quer seja: quando filosofia e arte amalgamam-se. Quando pintura e poesia veem-se dentro de si: reverberações em espelhos, quadros, reflexos.

Os haicais de Rafael F. Carvalho operam esta síntese brilhantemente. Apontam para fora e veem-se internamente. Tal como a leveza das folhas do bambuzal, lindamente espalhadas/espelhadas na capa do livro. Movimento que alcança a quarta capa como suave sinfonia.

Em tempo: o projeto gráfico do volume, capa, título e fontes de impressão estão em harmonia zen com os haicais. Tudo é leve, tudo se move. Tudo é finesse. Brisa de encantamentos, o volume é sedução gráfica para os olhos, mente e coração do leitor.

O universo temático haicaísta faz-se presente pela cartada da palavra-curinga arroz – e suas derivações: palhas de arroz, cozer o arroz, comer o arroz. E está contido no uso de vocábulos como lua, noite, insetos, plantação, aldeia, quimono, bambu, mar, pássaros, etc.

O tempo de preparar a comida, as estações do ano, o ato de contar histórias, observar a noite, tocar um instrumento, cuidar da plantação, dar-se conta da velhice – tudo converge, em flashes rápidos e certeiros, para modos de vida familiares ao leitor.

O todo conflui para a beleza da poesia carvalhana. Lê-la é adentrar numa projeção da memória em que as imagens vêm carregadas de ideias. Ideias de quem não somente olha o mundo, mas olha-o pensando, refletindo, sentindo. Significando e ressignificando numa folha de bambu, num bico de pássaro.

A emoção de ler Rafael F. Carvalho é a de encontrar sutilezas na vastidão bruta da vida.

Hoje, poesia, teu nome é encanto, carinho e cuidado em Bambuzal.

Bebendo água em
um rio vi cabelos
grisalhos: inverno



 

Chove na aldeia:
todos cozinham
seu jantar de arroz


 

Meu quimono seca no
pé de bambu. Percebo
brotos crescendo debaixo


 

O bico do pássaro
tem a forma da lua:
A noite vai assobiar


 

O rochedo leva
o mar para o céu:
estrelas de sal


 

Só as crianças
fazem leite de arroz:
a velhice é bruta
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- Identidade, de Daniel Francoy
- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido
- Tudo (e mais um pouco)
- Cadela prateada
- A nova antologia da Adriana Calcanhotto

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terça-feira, 27 de março de 2018

‘Identidade’, de Daniel Francoy



por Amador Ribeiro Neto

Daniel Francoy (Ribeirão Preto, 1979) é graduado em direito e trabalha no Poder Judiciário do Estado de S. Paulo. O terceiro lugar no Jabuti 2017 é seu com Identidade (Bragança Paulista: Urutau, 2016). Até então só fora publicado em Portugal. É autor de Calendário (Lisboa: Artefacto, 2015) e Em cidade estranha / Retratos de mulheres (Lisboa: Artefacto, 2010).

A poesia brasileira contemporânea, em parte, vai muito bem. Nomes (de poetas vivos) como Adélia Prado, Ademir Assunção, Adriano Espínola, Alberto Lins Caldas, Alexandre Guarnieri, Alice Ruiz, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, Arnaldo Antunes, Carlos Ávila, Cazé Lontra Marques, Delmo Montenegro, Flávio Castro, Frederico Barbosa, Glauco Mattoso, Lau Siqueira, Líria Porto, Márcia Maia, Marco Lucchesi, Marcos Siscar, Maria Lúcia dal Farra, Paulo Henriques Britto, Rodrigo Garcia Lopes, Ronald Polito, Rosana Piccolo, Ruy Proença, Sérgio de Castro Pinto, Simone Andrade Neves, Susanna Busato, Virna Teixeira, Zuca Sardan, dentre outros, comprovam sua aprumada materialidade. E, sem dúvida alguma, o maior de todos: Augusto de Campos.

Presentemente novo nome vem juntar-se a estes já grandes: Daniel Francoy. Sua poesia é potente: seduz o leitor ao primeiro contato. É arquitetada na mais elaborada linguagem. E, coisa rara, desenha rico universo de reflexão sobre o mundo e os sentimentos.

Esta poesia opera uma operação algébrica: sublime materialidade da palavra + densa argamassa das ideias + exata musicalidade.

Ao lê-la, o leitor sente o impacto que a grande arte provoca: o que é lido ergue-se em inusitadas configurações. Ainda que cotidianas. Ainda que vistas e entrevistas pelas janelas de todos os dias.

Eis onde reside um dos méritos de sua obra: no vértice da mais refinada poesia entretecida por um rol de ideias, preenchido de significados, significações e significantes. Quer seja: a palavra em sua dimensão absoluta: o vocábulo em si, seu uso figurado e imagético (no caso, imagem marcadamente musical).

Esta poesia segue na contramão da pauperização da linguagem. Insubordina-se contra a debilitação das reflexões. Tem gana, força e coragem de guiar-se contra a mesmice cristalizada (e aplaudida) por grande parte da produção poética brasileira contemporânea.

A poesia de Daniel Francoy é rigor associado à leveza. Encanta. Arrebata. Ela desconstrói imagens, pensamentos e ritmos descoloridos pela voracidade da comunicação rápida e barata. Insurge-se, com ousadia, contra as expectativas do mercado editorial e as dos leitores acomodados. E ainda mais: à afronta da ironia, da irrisão, do cinismo, no niilismo, da antipatia contrapõe a ternura. A ternura de uma visada ao mesmo tempo branda e dura.

Branda, na amorosidade com que revela o mundo e os sentimentos. Dura, na honestidade de tomar a vida sem os torneios dos enfeites. Sem os contornos das dissimulações. Tal procedimento instiga o leitor empenhadamente sério, o leitor-contra (ao gosto de Cabral e Augusto), o leitor-sensível (ao gosto de Adélia e Bandeira).

A poesia de Daniel Francoy sabe erguer-se na fronteira do necessário e do honesto. Cavouca fundo sem temer que tipo de verdade que possa encontrar. E, ao encontrá-la, não a revela com a fúria das bombas. Antes: inesperados maravilhamentos cotidianos desabrocham. Lição de poesia para todo aluno-leitor receptivo à outra alfabetização. Aquela que prioriza a sensibilidade do sujeito dentro (e ante) o mundo.

Sim, a força desta poesia impõe-se como novo e necessário aprendizado. Depois de lê-la, uma missão impossível se apresenta: esquecê-la. Como a descoberta de um novo amor, ou a morte súbita de outro, sua experiência perfura e perpassa o corpo, a memória, a cabeça, o coração. Aquilo que se sabe de arte e de poesia é posto em suspensão. E adentra-se a galáxia de epifanias: aclaramento cru do mundo e da história. Descoberta de si através das luzinhas da estrela-poesia (dentro da noite escura da vida).

Há na poesia de Daniel Francoy laivos de T. S. Eliot e de Fernando Pessoa. Naquilo que ambos têm de feliz associação entre filosofia e linguagem. Com o adendo: Daniel Francoy dialoga com estes dois grandes mestres, porém a voz que canta – poderosa e de timbre único – é a de novo poeta. Novo na idade. Novo na experiência das publicações. Novo no patamar que passa a ocupar na cena de nossa poesia. Novo na força de uma nova poesia que nasce no Brasil.

O leitor terá percebido que vivo o fascínio causado pela poesia de Daniel Francoy. Por isso compartilho esta descoberta de imensos prazeres e singular identidade.

Transcrevo poemas do livro Identidade.

ABRIL

De todos os meses, abril
é o que melhor me ludibria:
não há segunda vida — as pradarias
ainda são terra queimada
e o orvalho que virá, noite alta,
será mais cruel para as raízes
do que o gelo misturado ao barro.

Ainda cansado. Ainda com os olhos
batidos pelo calor mais antigo
e pelas sombras mais viscosas: espectral
voz marítima em cidade distante do mar.

A voz do luar — impuro delírio.
A voz do que naufragou e foi levado
pelos torvelinhos: cabelos com gosto de sal,
o coração tocando melodias alucinadas,
as frutas ácidas que perderam o sabor,
um preço muito alto ou muito ínfimo pelo amor.

Assim entro em abril. Assim o azul sem nuvens
se abre como uma terra sem máculas, uma terra
lavrada para o que nunca nasceu.
Assim os dias retornam à repetição:
as nuvens surgem à tarde, ora ventos exíguos,
ora redemoinhos de terra escarlate;
ora o que está distante parece próximo,
ora o que está presente mal se sente.
Assim as noites se desprendem
de um esbrasear fugidio: as estrelas são chama branca
e branca névoa sopra por entre as ruas quietas.
Todos sentem sono. Todos se enrodilham
a uma mágoa que parece suave,
a uma tristeza de voz débil,
a um doce tédio que mal volve os olhos
para as mortas raízes entre a terra revolvida.

CLARIDADE

Se ao menos não houvesse dúvidas:
é aquela hora de bruma e de medo
e a relva, amanhecendo úmida,
tem como raízes vísceras misturadas.
Se ao menos soubéssemos: sob o luar
Joana D’Arc é queimada e ascende
ainda mais translúcida do que a brisa
desfeita pela fuligem — é aquela hora
de árvores inertes e muros ensanguentados.
Se ao menos contemplássemos: arde
a cidade e somos nós os saqueadores,
nós os negros, nós os gregos, nós as troianas
deixadas ao estupro, aterrorizadas
por uma suspeita que jamais se confirma.
O que será esse rumor? Ratos
correndo no forro dos telhados ou torvelinhos
de vento uivando durante a madrugada?
Se ao menos uma palavra nomeasse
a pedra escura queimando o peito —
mas não: é meio-dia, faz sol
e a praça central se afoga em claridade.


DEZEMBRO

Tão baixo, possível, familiar,
o luar é apenas sujeira no céu.
Ainda mais abaixo, há grilos, mosquitos,
morcegos, a água barrenta
de um riacho, a doçura
dos frutos rachados pelos vermes
e também a aspereza
em rostos que o tempo tratou
como pedra que nunca foi movida.
Não fui uma ave migradora
e há rios que deixam de fluir
sem encontrar algo maior.


NA FRONTEIRA ÚLTIMA DA CIDADE

Acordo e o que existe de opaco, no sono,
perdura no primeiro instante:
o eco da chuva vinda na madrugada,
o bafio seco, o ar exaurido, a fria luz
do começo do sol. A fria luz e o alvorecer
semelhante à neve suja.

Acordo e o que existe de torpor
permanece nos primeiros movimentos:
levantar-me,apartar-me
do corpo que ao lado dorme, lavar-me,
promover o encontro da pele ferida
com o vento tornado áspero,
com o branco céu que recrudesce.

A cidade é um galpão de tetos baixos e luzes mortiças.
O fumo dos cigarros. O fumo dos motores.
Voltar a dormir durante a viagem de ônibus
e contemplar a paisagem entre lapsos
de consciência:
o rio é mais lama do que água
e no entanto o rio
é para onde fogem os animais mutilados

A cidade é um galpão de paredes de vidro
e o calor fere os olhos ao atravessá-la
e rebrilha quando o céu deixa de ser branco.
Nunca passei por esta estrada
e não vi ao menos uma árvore coroada de flores
em exaltado esplendor.
Como se um deus estivesse ferido
no coração pela ponta de uma lança
e não mais deixasse de sangrar.
Ainda quando o dia é estio, ainda
quando o céu é limite incendiado,
a perpétua agonia de um deus que não morre
é o que explica a coroação alcançar fevereiro,
quando o calor já calcinou todas as raízes.
Na fronteira última da cidade e mais além
estão os ipês e me pergunto
se o amor, com a sua natureza bravia,
terá a mesma permanência.


AUTORRETRATO

Diante de mim, na parede
em que aparecem os primeiros sinais
do tempo infiltrado, há uma prateleira
ainda por arrumar.
Virá alguém um dia e dirá
é uma casa com a beleza
das ruínas e então
serei como qualquer pessoa que morreu
quando eu ainda não era nascido.

Em tempo – Notícia boa: o poeta tem novo livro no prelo. Aguardemos.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido
- Tudo (e mais um pouco)
- Cadela prateada
- A nova antologia da Adriana Calcanhotto
- Em pauta, Pedro Osmar

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terça-feira, 23 de maio de 2017

A arquitetura das constelações



por Amador Ribeiro Neto

Mauricio Duarte (São Paulo, 1981) é jornalista e poeta. Estreou em 2007 com Rumor nenhum. O segundo livro, Balde de água suja (2015), tivemos a oportunidade de comentar aqui no Augusta Poesia. Sua mais recente obra é A arquitetura das constelações (São Paulo: Editora Patuá, no prelo). E, coisa boa, mantém o vigor dos livros anteriores.

Para Maurício Duarte poesia não é manha nem frescura. É frescor da concreção de ideias. Pois: estamos diante de um livro que foi pensado estruturalmente. Da primeira à última parte. São quatro blocos sólidos, radiantes e radioativos, que se movimentam em torno do próprio eixo e dão origem à figura do círculo, unidade perfeita que enlaça o volume.

Unidade matemática.

Unidade poemática.

Unidade que evita a dimensão estratosférica, fundindo poema e asfalto das ruas. Ainda que mirando as constelações estelares.

Nada há de vácuo neste projeto solidamente edificado. O buraco negro da folha, do coração, da mente e do espaço sideral ata os vãos das palavras salteadas ora em prosa, ora em prosa porosa. Sempre: cristadas sob o amparo da grande poesia.

Logo na primeira página, a pretensa definição científica de “imaginação humana” rarefaz-se em desfecho multidimensional: A imaginação humana é uma arquitetura de constelações. Este será o mote. Esta, a estratégia desta poesia: focar no alvo, acertar nele e no seu brilho.

No início da primeira parte, o poeta dispara: imaginação humana: / arquitetura das constelações. E, ao final dela:
a expansão do cosmos
em direção ao infinito

o insondável assombro
diante dos gases estelares

o rastro luminoso
do último meteoro

a música incessante
das esferas celestes

o alarido da dúvida rolando
na aridez do universo

a imaginação humana como
arquitetura das constelações

Ao fazer uso de variações em torno do mesmo tema, esta poesia busca a música do cosmos – uma música anticonsoante. Uma música de rimas toantes. Despojada. Socada a palo seco. Por isso mesmo, o parentesco cabralino se dá na negação óbvia do texto de Cabral. E entrega-se na penetração do cerne do seu sol metálico, de suas mesmas vinte palavras. Aí a linguagem do poeta vai mais longe e recicla o férreo sentimento drummondiano. Entre estrelas e metais ela impera,  ácida e sublime, na cidade, nos sentidos.

A segunda parte inicia-se espelhada na primeira: a prosa porosa, prosa poética, poesia em linhas ao invés de versos. Já as partes três e quatro reverberam a poesia em estado bruto. Brutalmente talhada na crueza das palavras. Se há um sentimento neste livro é o de posse de um eu em fraturas. Um eu retalhado pelos acidentes da vida – aqui ou no exterior. Sempre: a fratura exposta de um enigma. Há algo nesta poesia que foge. O leitor se atém à sua beleza implícita – sedução pelo dito que não se diz.
A linda moça solitária do café. Ou a linda moça que almoça sozinha no restaurante tem um olhar melancólico. Uma luz mortiça incide sobre ela. Uma pintura de Hopper. Nós, figuras oprimidas pela beleza, sempre partimos do pressuposto de que essas mulheres lindas estão solitárias. Não há nenhuma evidência disso, a não ser nosso próprio desejo mais ou menos oculto de que elas sejam solitárias. Porque não suportamos o pouco que nos é lícito desvendar. A música das esferas é negada aos nossos sentidos. Resta-nos somente esse desejar o mal disfarçado de banalidade. E assim revidar sua insídia.

Todavia, não nos iludamos pensando que estamos diante de um texto hermético. Ao contrário: esta poesia deslinda, desenreda e propala a significação do sentir mais absoluto: aquele do ouvido apurado que ouve o próprio corpo:
a linguagem é sempre
insuficiente para represar
o caudaloso sangue
que vibra e infla
por debaixo da pele

a pata do desejo
desemboca inequívoca
no esgotamento

há qualquer coisa de
irreprimível na música
dos nervos aniquilados

apure o ouvido:
o corpo canta

O acaso é um pretexto para a intervenção da ironia. Fina ironia que se faz lírica mesmo quando cáustica. A insatisfação do eu lírico com seu repertório de conhecimentos acerca do mundo, de si e dos mundos – galáxias afora –, leva-o a notar que se hospeda onde se hospedaram grandes nomes da literatura. Quase por osmose, não fosse a (auto-, a intra- e a inter-) ironia, a vida teria o raio, o facho, o desfecho feliz das estrelas nunca cadentes. Mas todas as estrelas o são. Logo, o poeta percebe-se um hóspede estrangeiro: um estrangeiro de si em si. Daí a angústia, o desamparo. E a poética.

O que é matiz e volátil converte-se em definido  e concreto. Eis a linha dorsal, a estrutura fundante de um livro que é a favor do enfático silêncio / das pedras. Transcrevo esta parte do poema:
o mar
devia ser o mar ali
a assomar à porta
de nosso entendimento

a entupir de sal a
garganta de nosso tédio
a estourar o gargalo
de nosso recato

o mar
devia ser o mar ali
a espalhar a espuma
de nossas derrotas

a espatifar nossos corpos
contra o enfático silêncio
das pedras, contra o desespero
de nossos gestos atrasados

devia ser o mar ali
a roçar nossos pés
devia ser o mar
ou quem mais suportaria
assim a luz de maio?

Nada escapa incólume ao choque da beleza deste livro. Melhor seria dizer: tudo esvai e vem, numa antimúsica de partículas atômicas e, venturosamente, radioativas. Que centram-se na estrutura das ideias alfa, beta, gama. Que se autodesconstroem num tsunami de senti(pensa)mentos unissonantes.

Doa a quem doer: poesia não é fricote. E Mauricio Duarte é poeta das estrelas, das cidades, da dor, do atrito, das fissuras. Um poeta para o leitor fissurado em poesia, é claro.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Textos recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido
- Tudo (e mais um pouco)
- Cadela prateada
- A nova antologia da Adriana Calcanhotto
- Em pauta, Pedro Osmar
- A arte e a máquina

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quinta-feira, 11 de maio de 2017

for mar



por Amador Ribeiro Neto

Flávio Castro (Porto Alegre, 1966) é poeta e há 25 anos está radicado no Rio. Estreia em 2009 com Audito, um livro radical, em que a sintaxe interrompida projeta jatos de imagens. Em 2013 lança Inaudito, igualmente perturbador. E ainda mais radical. Agora, todos os poemas ocupam todos os espaços da página numa exuberância de deleites.

Com o lançamento de for mar (Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 2016), temos, de pronto, a busca da cumplicidade do leitor. Este livro que não existe per se. Antes: seu projeto revela um primoroso cuidado em inserir o leitor como coautor. Aquele que vê, a cada leitura – muitas formam-se, configuram-se, consolidam-se após cada poema lido, relido, retomado – edificar-se uma arquitetura vernacular de fazeres – aquela, fundante da grande poiésis.

Se nos dois livros anteriores um programa poético já se anunciava, com o presente for mar funda-se uma trilogia da linguagem poética.

Flávio Castro é um exímio perscrutador dos labirínticos percursos de luz e sombra dos vocábulos. Nele, sempre o som articula-se num entranhado jogo de visualidade e significados. A palavra espaçada no branco da página, os exuberantes neologismos, a tessitura das imagens: tudo é massa de significações em alto grau.

Por isso sua poesia é um convite a voos – ora largos, ora curtos. Todavia, sempre dentro de um rigor riscado a ponta de faca. O rigor do sol com o pacto dos cactos. O rigor do sangue – vermelho ou seco – escorrido do corpo estirado no beco.

O corpo da poesia não é frágil nem fácil para este poeta que preza as filigranas de cada consoante, de cada vogal, de cada fonema. E de cada imagem: oferenda de um devoto a seus múltiplos deuses sígnicos.

Em consonância com a afiada prática da mais condensada poesia, Flávio Castro é poeta de ardis, armadilhas e artemísias. Sua poesia aguça, açula, isca, embeleza e é um antídoto à pasmaceira dominante na cena da nossa poesia hoje.

O “livrorrio” de Flávio Castro dialoga com as conquistas da linguagem de Mallarmé a Haroldo de Campos, passando por Cummings e Joyce, entre outros. Este leque dimensiona o fino paideuma deste poeta desassossegado e inquieto que sabe, com Octavio Paz: “a atividade poética é revolucionária por natureza; a poesia revela este mundo, cria outro”. Cônscio de que aquilo que ela inventa é a forma de usar a forma para além das fôrmas cristalizadas pelos manuais poéticos – e pelo desempenho editorial do mercado.

for mar possui 4 partes. Na primeira, que dá título ao volume, subintitulada “épico da linguagem”, não há exposição de ideias, ações, narração, contexto histórico determinado, personagens. O épico dá-se na transmutação da linguagem que processa um elo-de-elos quase ao léu, não fosse a argamassa da visualidade e da reverberação sonora. Formar sequências. Formar sentidos. Formar forma. Formar ar. Formar mar. Reverberar ondas de significações. Desta forma, as estrofes (às quais o poeta prefere chamar “blocos-estéticos”), duas em cada página, evoluem paulatinamente para, ao fim do poema, fundirem-se numa só mancha gráfica. Ou num só “espaço-tempo diagramado”.

Eis um fragmento do poema que abre o livro:



A segunda parte,“ideogramas”, processa neologismos de uma só palavra num mix de maiúsculas e minúsculas que criam uma ligação pictórica entre letras, sílabas, sufixos, prefixos, radicais, etc., – e o significado que se abre de um link para outros links: labiríntico jogo mallarmaico-cortázar-borgeano.

Em cada página do livro há um “poema ideogramático”:



A terceira parte, “braille”, radicaliza um procedimento que Edgard Allan Poe, Décio Pignatari e Luiz Ângelo Pinto constataram através da observação do código Morse. Mas, todavia, não desenvolveram: a desvocalização das palavras. Flávio Castro dá o pulo do gato e leva a percepção teórica à prática poética. O resultado são poemas que se oferecem com brincante prazer de interagir com a língua(gem) subtraída. Com isto o poeta vale-se da decantada mais valia da linguagem: less is more – na feliz expressão de Mies van der Rohe. Flávio Castro filtra a forma até seu grau minimalista. O leitor segue nesta via de mão única, inicialmente, colhendo vocábulos dicionarizados mas, depois, percebe-se recolhendo o inusitado dos neologismos. O gozo do make it new, das formas feitas, e do in progress, das formas por-fazer, toma conta da leitura. Melhor dizer: da coleitura. Cito a parte inicial deste poema:


Em ‘côdea’ a parte final do livro, o poema “ravinas”, constituído por sete partes, desenha o final de uma via, de uma viagem, de uma linguagem – linguaviagem, para citar uma obra de Augusto de Campos – que se fecha e se abre. Isto porque a poesia de Flávio Castro é um presentar no sentido heideggeriano do termo: um continuum entre velado e desvelado. Iluminação pós-velamento. Oroboro comendo Fênix.

Cito dois fragmentos:


O percurso épico de for mar soma-se aos de Audito e de Inaudito encerrando a trilogia com o “fátuofogorgíaco” de Nékuia. Elançando passos, braços, laços – da linguagem – a Ulisses-Homero.

Na odisseia da poesia que se sabe, que se faz, que se forma, for mar é irretocável.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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- Em pauta, Pedro Osmar
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quinta-feira, 4 de maio de 2017

Poema das quatro palavras



por Amador Ribeiro Neto

Airton Cattani (Garibaldi-RS, 1955) é poeta, contista, professor da UFRGS, artista gráfico e arquiteto. É Mestre em Educação e Doutor em Informática na Educação, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem livros publicados em sua área profissional. Em ficção é autor de 40 microcontos experimentais (Prêmio Açorianos de Literatura 2011 e segundo lugar no Jabuti 2012, ambos na categoria projeto gráfico). Poema das quatro palavras (Porto Alegre: Marcavisual, 2015) é sua publicação mais recente e obteve o primeiro lugar no Prêmio Açorianos de Literatura, categoria Projeto gráfico.

A escrita poética em labirinto, prática barroca, rendeu novas dimensões para a palavra poética. Desde então um poema passa a ser lido em várias direções espaciais, captando diferentes momentos do texto, tanto rítmica quanto semântica, visual e sintaticamente. Ana Hatherly, em seu livro A experiência do prodígio; bases teóricas e antologia de textos-visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII (Lisboa: Imprensa Nacional, 1983), nos traz a teoria e sua aplicabilidade a poemas barrocos, sugerindo sua pertinência aos estudos da poesia experimental contemporânea.

Muito se fala das inúmeras visadas de leitura que Un coupe de dés (traduzido como Um lance de dados), do Mallarmé, trouxe para a poesia. Em especial, o espaçamento da palavra na folha de papel, o arranjo tipográfico variado, o uso predominante da frase nominal, entre outros.

Os poetas dadaístas, ao apregoarem a liberdade total das palavras, indo da desordem semântica à sintática, com o elogio gratuito do som e do ruído, trouxeram uma ética radicalmente anárquica. Da notícia de jornal retalhada, embaralhada e sorteada, ao poema daí resultante, que “é a cara de seu dono”, à desconstrução de valores burgueses e capitalistas, esta poesia atingiu, como um míssil, a arte tradicional.

A Poesia Concreta, ao decretar o fim do verso tradicional e incorporar as experiências de Mallarmé a Mondrian, passando por João Cabral e Le Corbusieu, libertou o poema das normas estabelecidas e o lançou no turbilhão de signos. Significados e significantes, tomados na sua materialidade, alcançaram, em cheio, a tradicional poesia brasileira. Aquela que adorava “averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”. Assim, ainda que na marra, oxigenou a poesia, exportou-a e abriu vias para o advento da poesia digital.

Poema das quatro palavras, de Airton Cattani, é uma retomada de todo este processo histórico de conquistas da poesia. Seu livro é impresso sobre papel vegetal e possui capa em papel cartão. A primeira edição, de 123 exemplares, todos numerados e assinados pelo poeta, é um primor gráfico e poético. Quanto ao diferencial gráfico, de fato, um cuidado extremado, mas nada de surpreendente. Temos visto muita coisa boa nesta área.

A novidade está no fato de que a montagem do miolo é feita aleatoriamente. Ou seja, não há um exemplar igual a outro. Aí, sim, mora um diferencial provocativo. O leitor, que inicialmente lê segundo a encadernação que lhe coube, a seguir pode desencaderná-lo e montar seu livro-objeto, como bem queira. E ele passará a ter “a cara de seu dono”.

“À sua maneira, este livro é muitos livros”, anota Cortázar sobre seu Rayuela (publicado no Brasil como O jogo da amarelinha). Pois bem, a mesma advertência presta-se ao livro de Cattani. Com uma especificidade: como as páginas são em papel manteiga, o leitor lê e antelê a(s) página(s) seguinte(s), o tempo todo. Mesmo não querendo, sua leitura inicial já é, multidirecional: o que lê e o que antevê/lê.

Por isso mesmo, o leitor rola os dados, com o poeta, na roleta da poesia. Esse ludismo configura um painel caleidoscópico de centenas de leituras. Consequência: prazer desdobrado em cada dobra desta obra de inúmeras possibilidades.

Atentemos para o título da obra. Ele é composto por quatro palavras. E o conteúdo compõe-se, de outras quatro palavras. Estas quatro palavras (as do miolo do livro) entregam-se como anagramas e/ou palíndromos em jogos especulares. O tabuleiro avança em direções indiferenciadas. As imagens não têm limite.

Poema das quatro palavras remete-nos, por exemplo, a Gregório de Matos, cujo soneto, “Achando-se um braço perdido do menino deus”, inicia-se assim:
O todo sem a parte, não é todo;
a parte sem o todo não é parte;
mas se a parte o faz todo, sendo parte,
não se diga que é parte, sendo todo.

O jogo que o poeta barroco estabelece, com os termos “todo” e “parte”, assume a desestruturação física da imagem do menino deus para, em seguida, recompô-la via linguagem. Perda e reparação são pares antitéticos caros ao barroco, dos quais o poeta se apropria para arquitetar o ludismo de seu poema.

Há uma observação de Antonio Candido segundo a qual a fase inicial da análise (o comentário) não deixa de lado a manifestação do gosto, a que ele denomina “a penetração simpática do poema”.

A seguir, observa que qualquer poema é passível de ser comentado. No entanto, só se interpretam os poemas que nos dizem algo. Aqueles que nos mobilizam. E é isso que o livro de Cattani nos oferece: de imediato, forte empatia. Ou nas palavras de Borges: “Tenho plena convicção de que sentimos a beleza de um poema antes mesmo de começarmos a pensar num sentido”. É o que sentimos ao manipularmos o livro de Cattani. Uma beleza que se entrega no ato. E que ganha intensidade de significado a cada novo momento de leitura, de atribuição de sentido.

Retomando Antonio Candido, à luz do poema de Gregório, podemos pensar que o comentário corresponde ao “momento parte”, e a interpretação, ao “momento todo”.

Para o autor de Formação da literatura brasileira, “todo poema é basicamente uma estrutura sonora”. Vem a dúvida: o poema de Cattani, não é antes de tudo imagem visual? À primeira vista, sim. Mas depois, ao lê-lo ouvindo-lhe sua dicção e atentando para a musicalidade das palavras em movimento no espaço da página em branco e transparente (vimos que o papel é manteiga), damo-nos conta de que estamos diante de imensa massa de imagem sonora.

Na dança das palavras dentro da página, e no interregno entre uma página e outra(s), a música se presenta e coreografa os passos da poesia. Ao se presentar, ela não apenas apresenta, mas, concomitantemente, torna-se presente. Presente = o tempo e a dádiva.

O livro Poema das quatro palavras, pela própria feitura, não permite que se reproduza aqui nenhuma parte sem ferir sua unidade. Fica o convite ao leitor para que se aventure no alumbramento de um livro que é, de fato, a cada leitura, a cada montagem, uma nova sequência de revelações. Um livro para ver, ler, ouvir. E tudo de novo, outras vezes. Sem fim. 
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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