terça-feira, 5 de maio de 2020

9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins



por Edson Martins


1. A Carta de Pero Vaz de Caminha (1500)
Ler A Carta de Caminha parece o tipo de coisa que, se você escapou de fazer no ensino médio, é porque você está imune para o resto da vida. Acontece que a leitura da Carta pode ser uma experiência muito mais interessante do que se imagina. Nela, temos algumas das ideias centrais que ajudarão a formar a imagem que temos do país: a noção de uma terra que é dádiva de Deus (rica, fértil e abençoada com maravilhas) habitada por seres humanos que não parecem merecê-la (Caminha vê os povos originários com um olhar que os diminui, animaliza e os apresenta como dóceis ao domínio e à manipulação). Para terminar, o escrivão da Descoberta ainda conclui a carta pedindo um favor pessoal: seu genro estava preso por ter roubado uma igreja e espancado um religioso.


 
2. Ubirajara (José de Alencar, 1874)
Ubirajara, de Alencar, é um romance pouco festejado, mas que merece – e muito – ser lido. A trama conta como Jaguarê, mais tarde chamado de Ubirajara,  se torna o herói do povo Araguaia e como, enfrentando provas que testam seus limites, unifica a tribo do seu povo com a dos Tocantins, dando origem a um novo povo, os ubirajaras. De quebra, casa com Jandira e Araci. A poligamia não é o único traço cultural dos povos originários que Alencar defende em seu romance. Construindo uma oposição forte entre a cultura do índio e a do europeu, o romancista produz uma obra capaz de revelar como nossa formação cultural é construída sobre essa tensão.


 
3. Memórias de um Sargento de Milícias (Manuel Antônio de Almeida, 1854)
Outra leitura com cara de escola é o romance de Manuel Antônio de Almeida, as Memórias de um Sargento de Milícias. O interesse da leitura não tem a ver com milicianos, tenham calma. A obra narra as aventuras de Leonardo, homem pobre, branco e livre, que mais tarde será explicado como uma síntese da imagem do brasileiro como um povo que oscila da ordem para a desordem e vice-versa. Ainda que os melhores momentos do livro estejam nas aventuras desse herói malandro, o romance também esquadrinha muitos costumes do Brasil da época de D. João VI.


 
4. Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis, 1881)
O romance de Machado de Assis, qualquer um deles, vale a pena pela inteligência narrativa do autor, que faz o romance brasileiro assumir a sua forma mais madura e plenamente desenvolvida. Nesse sentido, destaca-se do conjunto das últimas obras, o Memórias Póstumas de Brás Cubas. Representante da elite econômica e intelectual brasileira, Brás Cubas é preconceituoso, avesso ao trabalho, vaidoso e intelectualmente limitado, mistura do que há de pior em fariseus e saduceus. Com a leitura do romance, entendemos muito do tipo de herói que se desenvolverá na nossa literatura, além de percebermos como a sociedade brasileira é moldada pela subserviência aos padrões culturais estrangeiros e pelos resultados de uma experiência histórica definitivamente marcada pela escravidão, extraindo-se desse conjunto os traços de caráter da nossa elite brazuca.


 
5. Angústia (Graciliano Ramos, 1936)
Graciliano Ramos é um autor que fascina muita gente e isso não é difícil de entender, depois que a gente abre um livro dele. Um desses romances, Angústia, na nossa opinião, é um caso de injustiça (e) de sucesso. É um sucesso, porque a melhor crítica literária reconhece nele os toques de genialidade que ele realmente tem. E é um caso de injustiça, porque não me parece que ele seja uma ocupação permanente do leitor (pelo menos, do leitor brasileiro). A miséria material e moral de Luís de Silva é esquadrinhada de uma forma tão intensa que podemos mesmo dizer que o romance, como gênero, é forçado a encontrar uma forma nova, uma linguagem nova, para cumprir o desafio que Graciliano exige dele.


 
6. Fogo Morto (José Lins do Rego, 1943)
Já o Fogo Morto, de José Lins do Rego, é um romance que se sustenta pela aposta que faz na fórmula bem consolidada do romance, sem cobrar dela nenhuma novidade. Acontece que as personagens que encontramos nele são, sem medo de estar exagerando, criações que se parecem tanto com criaturas que o mundo que desaba em cima delas acaba parecendo um mundo mais de verdade do que esse em que vivemos. Mestre Amaro, Seu Lula e Capitão Vitorino são gente mesmo, dessas que a gente conhece. A leitura do romance nos mostra como a literatura brasileira alcança, em certos autores e obras, esse efeito de pôr em movimento um jeito novo de olhar nos olhos de outras pessoas: esse romance de Zé Lins reinaugura o Brasil, porque o Brasil não é mais o mesmo depois que o lemos.


 
7. A Hora da Estrela (Clarice Lispector, 1977)
Depois que muitos romances nos fizeram pensar sobre as transformações do romance, vêm as obras que nos fazem pensar sobre como os romancistas se veem. Se isso já te ocorreu (e, principalmente, se isso nunca te ocorreu), está na hora de ler A Hora da Estrela. Clarice Lispector sofreu muito com a internet e virou açúcar na boca do povo. Isto não é ruim, todo interesse é positivo quando se trata de leitura. Mas ela já sofria antes, acusada de ser hermética, dificílima, incompreensível. Nesse romance, em que ela parece estar contando a história de Macabéa, Clarice faz um grande acerto de contas com os seus críticos e oferece a eles uma imagem extraordinária deles mesmos: o seu narrador, Rodrigo S. M. É uma leitura que não se resume à compaixão pela moça nordestina: é Clarice chamando a literatura brasileira pra briga e isso é lindo de se ver.


 
8. Gota d’Água (Chico Buarque e Paulo Porto, 1975)
Algo que não temos o hábito de ler é a dramaturgia brasileira. Há textos importantíssimos e, entre eles, Gota d’Água. Quando Chico Buarque recupera o mito de Medeia e a recria na pele de Joana, macumbeira e favelada, pisoteada e homicida, dá para perder o fôlego. A peça se situa em um período importante, em que o povo brasileiro é brilhantemente estudado no palco e a obra de Chico se destaca ao nos dar um feminino insubmisso e corrosivo.


 
9. Navalha na Carne (Plínio Marcos, 1967)
Se a dramaturgia nos mostra o povo na obra de Chico Buarque, Guarnieri, Dias Gomes, temos um autor que nos mostra os que estão tão na pior que melhorar de vida seria viver na sarjeta. Ele se chama Plínio Marcos e é o autor de Navalha na Carne. O encontro assustador que temos com Neusa Sueli, Vado e Veludo, depois que o digerimos, explica como, por baixo de todas as indignidades que a vida reserva para os que estão condenados a viver fora das vistas do cidadão comum, está ali o Brasil que todos reconhecemos. Esse Brasil que está lá, na pensão imunda em que vivem os três, nos embrulha o estômago e nos obriga a responder o quanto é preciso dizer para que o Brasil se escandalize consigo mesmo. Leitura fundamental.


 
+1. A Rainha dos Cárceres da Grécia (Osman Lins, 1976)
Por fim, A Rainha dos Cárceres da Grécia é uma obra-prima do romance brasileiro do século XX. Sozinho, o romance já bastaria para situar seu autor, Osman Lins, entre os mais importantes romancistas brasileiros. A estrutura do texto, que se apresenta sob a forma de um diário, ao qual se agregam notícias de jornal, reflexões de (auto)crítica literária e um peculiar inventário das paixões do seu narrador, não torna o romance uma engrenagem de dificuldades. Pelo contrário, a leitura é deliciosamente fluida. Acompanhamos ali o balanço da paixão do narrador pela sua amante morta, a peregrinação de Maria de França (mulher negra, favelada e louca) em busca de uma aposentadoria como doente mental, além de uma extraordinária coleção de personagens inventados, que circulam entre personagens reais, pelas ruas de um Recife que está e não está ali. Famoso por ter criado Lisbela e o prisioneiro, Osman Lins deixou este último romance como uma obra irretocável, que ainda aguarda a celebração que muito merece.
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Edson Martins é professor de literatura brasileira e pesquisador dedicado ao estudo das poéticas orais nordestinas.

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