terça-feira, 29 de maio de 2018

‘Para quando’, de Kaio Carmona



por Amador Ribeiro Neto

Kaio Carmona (Belo Horizonte, 1976) fez graduação, mestrado e doutorado na UFMG. É professor de literatura. Autor de Um lírico dos tempos (ensaio, 2006) e Compêndios de amor (poesia, 2013). Para quando (Belo Horizonte: Scriptum, 2017) é sua mais recente publicação.

Para quando: o título encerra uma pergunta? Uma reticência? Uma exclamação?

Não há sinal algum de pontuação, mas o título sinaliza para uma das constantes do livro: aquilo que interessa não está nomeado. Vale a espera? Que tempo é esse? Vale o desespero? Vale o silêncio? A contenção? O derramamento?

Há algo que, dirão alguns, beira o místico nos poemas de Kaio Carmona. Para outros, parece que há algo que, simplesmente, escapa a definições. Algo que não se entrega. Que se embrenha na dissimulação e lá faz seu habitat.

Por isso mesmo esta poesia encanta. Ela não parte e nem busca o místico. Ela se instaura e permanece na concretude da realidade. Na materialidade dos corpos.

Há um eu-lírico que lança sua voz a partir de um lugar comum, reles, cotidiano. Mas lança-a com timbres inusitados. Timbres que seduzem nossa audição. Atiçam nossos corpos e desejos. E, por isso mesmo, nos levam a correr atrás. Do quê? Não sabemos. A sedução nos conduz. Seguimos.

O volume está dividido em duas partes: a primeira, homônima ao título do livro, e a segunda, “O eu intermitente”. Ambas com o mesmo denominador mínimo, múltiplo e comum: o amor e suas circunstâncias.

Melhor seria dizer: incomum. Já que o amor, tal como o eu-lírico nos apresenta, embora comum e delimitado historicamente, surge-nos através de formas e modos de uma linguagem que o recria enquanto algo inédito. Recém descoberto. Para ser mais exato é melhor dizer: recém entrevisto.

E aí reside o perigo: o que falar daquilo que já foi mais do que falado/cantado? Na busca pela resposta a essa questão mora uma das qualidades de Kaio Carmona: tocar o mesmo, mas com nova gestualidade.

Outros modos e jeitos. Redizendo: outros des-modos e des-jeitos. Afinal, o poeta opera na faixa da desconstrução do conhecimento alicerçado no senso comum, no déjà-vu, nos saberes canonizados.

O poeta, que é também professor de literatura, sabe que a epifania da poesia deslinda-se na forma do dizer o que busca dizer. E não na mera semeação semântica das ideias. Por isso mesmo seu livro ganha o leitor em vários momentos. Diria até: na quase totalidade.

Sem dúvida alguma, são poemas na linhagem adeliana, naquilo que Adélia foi buscar em Drummond: a naturalidade de uma dicção poética nascida de fonte popular. Daí emerge a poesia das grandes e miúdas delicadezas. Uma poesia que, bela per se, reverbera, despudoradamente, Adélia e a lição do seu mestre, Drummond.

Transcrevo “Banquete”:

E finalmente conheces o amor
e nele apostas teus medos.
Amas com fome:
Dia após dia macerando a carne
com cansaço.
Tenaz.
E amas com raiva.
Torna-te meticuloso de sua posse.
Assassino.
Persecutório.
Vigilante incansável.
Finalmente conheces o amor
Para, conforme a fome, matá-lo.

Kaio Carmona não se envergonha do vasto amor. Como nada tem a esconder na intertextualidade, pari passu, com a poesia dos dois poetas citados e de outros, dentre os quais, Bandeira, Vinícius, Neruda, Florbela.

O amor não tem fronteiras. Foge a dicionários e influências. Tal como a poesia. E Kaio Carmona sabe disso. Por isso sua poesia é bandeira desfraldada com a obra de grandes nomes de nossa literatura.

Em Adélia Prado ele encontra a reverberação do universo drummondiano. Porém, de ponta-cabeça. Com os malabarismos de outra poesia, cozida ao fogo dos sentimentos. Transcrevo “Esse tráfego doméstico”:

De silêncio em silêncio
– em pequenos sustos –
vai se construindo nosso amor
diário.
Os cômodos da casa ainda são grandes,
como eram grandes os cômodos das casas
antigamente.
E mesmo assim nos esbarramos
de cômodo em cômodo,
esse tráfego doméstico.
Passa por mim sem me olhar e deixa sua mão
aleatoriamente
em algum lugar de meu corpo,
propositadamente.
Sei mais de você por esses encontrões e silêncios
que o seu sorriso, talhado na lida
do mundo das relações.
Seu sorriso:
Pequenos silêncios, pequenos encontros.
E o amor se erguendo no ar.
E o amor se entornando no chão.

Mas essa poesia feita da naturalidade da vida e das suas dicções bebe, antes de tudo, nas fontes de Camões e Dante. A grande lírica destes grandes líricos não poderia passar ilesa à poesia de um poeta sensível e ao seu coração. Que é também bombeado pelo sangue de suas leituras enquanto leitor e professor de literatura.

Para quando é um livro pra já. Porque o amor bate à porta. E sua insubmissão é uma lambada na dureza dos dias de hoje, de ontem, de sempre.  Nos dias de hoje, especialmente.

Lambada na dupla acepção: dança/música e paulada/cacetada.

Enfim, poesia de amor. Enfim, poesia de resistência.
____

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
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- Identidade, de Daniel Francoy
- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
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