segunda-feira, 23 de abril de 2018

‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho



por Amador Ribeiro Neto

Rafael F. Carvalho (São Paulo, 1978), bacharel em Letras pela USP, colunista da revista Samizdat, autor de A estante deslocada (2011), A cor do sol (2013), Terceiro livro (2015). O bico do pássaro (Coleção Leve um livro) e Bambuzal (Belo Horizonte: Moinhos), de 2017, são suas mais recentes publicações. Ambas exclusivamente de haicais. Os de O bico de pássaro (na verdade um microlivro) estão todos contidos em Bambuzal. Há apenas um, com formato divergente, em ambas as publicações. Cito-o: “Minha cama é feita / de palha de arroz. Plantar / tem outras intenções”, naquela e “Minha cama é feita / de palha de arroz. / Plantar tem outras intenções”, nesta.

O deslocamento do verbo plantar, no microlivro, semeia novo ritmo e realça a ação do plantio. A interrupção sintática do segundo verso enfatiza a ideia de movimento e, pela pausa, reforça a ambiguidade do verso seguinte: “plantar tem outras intenções”.

Rafael F. Carvalho, ao arquitetar as imagens do poema, revela apurado zelo, realçando-lhes a plasticidade. Todos sabemos que enfatizar a imagem é um dos princípios balizares do haicai. Ao lado do enfoque meditativo. Até aí, nada demais. No entanto, o diferencial de Carvalho está no zelo descritivo das imagens, entretecido por vieses de minúcias. E também na mirada reflexiva que vaza os versos. Esta dupla associação gratifica.

Gratifica pelo sublime em si. Gratifica por pensar o mundo por outros ângulos.

Ora o tempo percebido no ato de matar a sede nas águas do rio. Ora a chuva e o arroz sendo cozido, conjuntamente, pelos moradores da aldeia. Ora os brotos crescendo sob o quimono molhado no bambuzal. Ora a noite assobiando em forma de lua, no bico do pássaro. Etc.

Insisto: o poeta trabalha seus haicais com filigranas de requintada elaboração. E aqui, trabalho e requinte nada têm de erudição vazia. Ou empolada. Antes: o requinte deste trabalho está em verticalizar o coloquial numa dicção ainda mais fluente. Musical. Imagética. Quer seja: poética, de primeiro grau.

É quando a magia cria morada na fala do dia a dia.

Onde residem a beleza e a delicadeza destes haicais? Na semeadura das ideias em campos de imagens, na associação da beleza plástica à reflexão filosófica.

É a filosofia encantando-se pela pintura. Como em O casal Arnolfini, de van Eyk ou em As meninas, de Velázquez. Quer seja: quando filosofia e arte amalgamam-se. Quando pintura e poesia veem-se dentro de si: reverberações em espelhos, quadros, reflexos.

Os haicais de Rafael F. Carvalho operam esta síntese brilhantemente. Apontam para fora e veem-se internamente. Tal como a leveza das folhas do bambuzal, lindamente espalhadas/espelhadas na capa do livro. Movimento que alcança a quarta capa como suave sinfonia.

Em tempo: o projeto gráfico do volume, capa, título e fontes de impressão estão em harmonia zen com os haicais. Tudo é leve, tudo se move. Tudo é finesse. Brisa de encantamentos, o volume é sedução gráfica para os olhos, mente e coração do leitor.

O universo temático haicaísta faz-se presente pela cartada da palavra-curinga arroz – e suas derivações: palhas de arroz, cozer o arroz, comer o arroz. E está contido no uso de vocábulos como lua, noite, insetos, plantação, aldeia, quimono, bambu, mar, pássaros, etc.

O tempo de preparar a comida, as estações do ano, o ato de contar histórias, observar a noite, tocar um instrumento, cuidar da plantação, dar-se conta da velhice – tudo converge, em flashes rápidos e certeiros, para modos de vida familiares ao leitor.

O todo conflui para a beleza da poesia carvalhana. Lê-la é adentrar numa projeção da memória em que as imagens vêm carregadas de ideias. Ideias de quem não somente olha o mundo, mas olha-o pensando, refletindo, sentindo. Significando e ressignificando numa folha de bambu, num bico de pássaro.

A emoção de ler Rafael F. Carvalho é a de encontrar sutilezas na vastidão bruta da vida.

Hoje, poesia, teu nome é encanto, carinho e cuidado em Bambuzal.

Bebendo água em
um rio vi cabelos
grisalhos: inverno



 

Chove na aldeia:
todos cozinham
seu jantar de arroz


 

Meu quimono seca no
pé de bambu. Percebo
brotos crescendo debaixo


 

O bico do pássaro
tem a forma da lua:
A noite vai assobiar


 

O rochedo leva
o mar para o céu:
estrelas de sal


 

Só as crianças
fazem leite de arroz:
a velhice é bruta
____

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica) e Barrocidade (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- Identidade, de Daniel Francoy
- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
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