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terça-feira, 26 de abril de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – O rio



por Harlon Homem de Lacerda

Entender, ler, interpretar, analisar a “Terceira Margem do Rio” sempre foi pra mim uma dificuldade intransponível. Um conto, uma estória rápida de ser contada, mas profunda de não secar nunca. O narrador se encarrega de compartilhar sua própria angústia conosco, com suas dúvidas: “Não adoecia?”, “Não queria saber de nós; não tinha afeto?”, “Sou doido?”, “Sou homem, depois desse falimento?”. Essas questões surgem num crescendo que vai das necessidades físicas, às sentimentais, às lógico-racionais e à ontologia mesma. Nós acompanhamos o filho do homem jacaré em sua canoa, do homem-margem, do homem, do pai. As relações psicológicas, filosóficas, artísticas que esse conto integra são mais que água de rio caudaloso, são achados fundamentais para se conhecer a origem do medo, a origem da angústia, a origem da culpa.

Em “A Terceira Margem do Rio” há uma questão que pra mim nunca será resolvida: será possível conhecer a si mesmo? Como construir uma subjetividade através de uma série de conflitos, de sentimentos, de necessidades, de pensamentos? Como ser alguém pleno num mundo multifacetado, em constante transformação – mundo-rio, que não se atravessa duas vezes?

Para mim, a “Terceira Margem do Rio” resolve encerrar de vez a busca por uma resposta, resolve mostrar que a resposta não existe, que o mundo é cíclico, que o mundo não é sendo, que a vida é um baú de culpa e consequência amontoadas na memória servindo aqui e ali para a construção do caráter, para a tomada de decisões, para a realização de escolhas.

“A Terceira Margem do Rio”, o pai ancestral, o senhor de sua vontade, o filho atormentado por culpas e falimentos, a família, os conhecidos e o desconhecimento total enterrado num silêncio eterno. Esse conto é dúvida, é pergunta sem resposta, é aporia, é a vida.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Poesia de não caber
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Sobre coisas levianas e descuidosas
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Uma canção para a tolerância
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terça-feira, 12 de abril de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Poesia de não caber



por Harlon Homem de Lacerda

Na vez, estão “Os irmãos Dagobé” e o Liodoro. Liodoro matou um dos mais vis facínoras do sertão, que aterrorizava famílias e pessoas junto com seus irmãos mais novos. Coitado do Liodoro! Sozinho, sem ter pra fugir, pra rezar, pra nada. Já sabia a sentença. Seria objeto de vingança. E isso o narrador do conto vai martelando em nossa cabeça, vai construindo essa atmosfera de empatia entre nós, leitores, e o Liodoro, Lhe adoro. Coisa bonita de ver a construção da poesia, da narrativa através das palavras como o lugubrulho do cortejo, o barulho lúgubre? Não! O lugubrulho que nós só podemos entender vendo, pegando, arrudiando, cercando cada aspecto de imagem que se desenovela nesta estória. Quando Liodoro oferece-se para ajudar a carregar o caixão, o suspense na sala do velório, o suspense no cortejo, o suspense no enterro e o clima final de despedida... Despedida dos irmãos vivos, que cansados de viver sob o julgo de quem era realmente mal e vil, decidem ir simbora pra cidade grande. Coisa bonita de não caber em três páginas, pequeninas, condensadas que nem verso de soneto.

Este conto de Guimarães Rosa me vem tão bonito na vista principalmente por que eu tenho outros contos e cartas e estórias e imagens deste escritor na minha cabeça. E como tudo é belo, trabalhado, levado ao extremo do sério! Guimarães Rosa era um escritor empenhado em seu ofício. É táctil o amor com que ele escrevia cada coisa e como ele falava sobre suas coisas escritas, em cartas com os tradutores, por exemplo. Nesses livros de cartas entre Guimarães e seus tradutores a única parte ruim é quando as datas de correspondência vão se aproximando do novembro de 1967. Coisa triste, coração que parte, se espedaça! E realmente não cabe na literatura brasileira tanta poesia, tanto esmero, tanta beleza parida assim por Guimarães Rosa. Morreu do coração! No nosso coração fica pra sempre.

Agora eu falo até como ele. É hora de me recolher e rezar, procurar humildade. Que demônio era esse que carregava Guimarães! O-que-diga, o silêncio.

Eu faço isso por que já to antecipando a impossibilidade que eu terei que praticar pra tratar do próximo conto, A terceira margem do rio! Eita, lasqueira! Deixa eu ir rezar. 
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Sobre coisas levianas e descuidosas
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Uma canção para a tolerância
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terça-feira, 29 de março de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Sobre coisas levianas e descuidosas



por Harlon Homem de Lacerda

Nhinhinha, da Serra do Mim era uma Menina de lá. O jogo de pronomes que o narrador estabelece nesse conto nos faz refletir sobre a posse e o desejo, sentimentos inalterados do pronome “Eu”, do sujeito, do indivíduo. Uma menina de uns quatro anos de idade, que fazia os pais incompreenderem seus gestos e feitos. Menina santa. Menina.

A narrativa de “A menina de lá” é uma leveza só. Talvez por isso nos carregue para um universo tão destoante do nosso, o universo do querer pouco, do querer coisas levianas e descuidosas. Do viver fácil, simples. A reflexão sobre esse abismo de quereres e estares sempre afim, como escreveu e cantou Caetano, que nos embala num mundo de consumo e angústia, de ansiedade e ganância parece um tanto esquálida, apaga já, mas ela urge. A cada segundo o mundo se torna mais inabitável. Não falo do clima. Falo das pessoas que o habitam – elas estão insuportáveis no limite. Há um sentimento generalizado de vontade de poder e ter que impossibilita os gestos mais puros, mais humanos – no alto sentido de valores perpetuados ao longo da tradição de bondade, tolerância e amor.

Enquanto Ninhinha queria só uma pamonha de goiaba, o pai queria chuva para não perder a produção, para acabar a seca. “Deixa... deixa...” dizia a menina. E quando ela quis chuva, não foi pela seca, foi pra ver o arco-íris, o arco da velha. Foi pra ver beleza, foi pra ver o simples, foi pra ver o sensível, o intangível.

Se há uma boa lição nesse conto das Primeiras Estórias é esta: queiramos coisas levianas e descuidosas. Sejamos mais simples, mais positivos, assertivos. Sejamos humanos. Sejamos da Serra do Mim, a Menina de lá.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

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terça-feira, 15 de março de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Uma canção para a tolerância



por Harlon Homem de Lacerda

Desde a primeira vez que li o conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras Estórias, fiquei atordoado, em suspenso, anestesiado. Tempos depois, quando fui a Barbacena e tomei conhecimento dos “trens de loucos” que eram levados pra lá, fique mais atordoado ainda. Quando li mais uma vez hoje pra escrever essa perspectiva encontrei uma maneira de racionalizar aquela suspensão primeira. Sorôco e sua canção entoada por todos, por dó, num gesto, num ato de apoio para aquele que acabara de levar a mãe e a filha para o nunca mais, pode ser compreendida como um caminho para a tolerância.

A história toda dos trens de Minas Gerais, que partiam para Barbacena, para experiências manicomiais quase (quase?) nazistas retratam um período da História Brasileira, ou melhor, retratam um mecanismo do pensamento e do comportamento do Brasil. Explico: nesse país há uma tendência histórica e localizada socialmente em separar, extirpar, esconder, tirar de circulação todo aquele que não se enquadra num determinado padrão socioeconômico ditado pela elite – há, no Brasil, uma forma de intolerância velada em discursos, em distorções, em manipulação da realidade. Alguns exemplos bem característicos, além dos trens mineiros, são os campos de concentração do Ceará, na seca de 1915 e as leis de vestimenta e comportamento permitidos no passeio público de Fortaleza; outros dois, muito próximos, são os massacres de Canudos e do Caldeirão da Santa Cruz. Por trás de cada um desses acontecimentos há um discurso de limpeza, de patriotismo, de ordem, de progresso (talvez seja impossível não ligar esses exemplos ao que nós vivemos hoje, na perseguição que corruptos de elite fazem a corruptos que enfrentaram a elite).

Mas é aí que a literatura dá um banho na realidade. Se Sorôco sucumbe à necessidade de deixar que o trem leve sua mãe e sua filha para o nunca mais, ele mesmo entoa a canção que servira como base para determinar a diferença e, por isso, a intolerância. Ele canta. O povo canta. Todos seguem Sorôco até quando a canção tivesse fim. Essa prática de empatia realizada por todos, sem explicação, sem combinação, é a possibilidade da tolerância. É a possibilidade de racionalizar os motivos que levam a segregação e tentar, num outro momento, superar essa segregação.

No Brasil, infelizmente, a segregação continua crescente, continua ignorante, continua mascarada por discursos de limpeza, de patriotismo, de ordem, de progresso. Mas será possível, talvez, um canto uníssono de união, de luta, de superação? Eu, infelizmente, dada a onda fascista que cobre o mundo mais uma vez (de Trump a Aécio, da União Europeia ao Estado Islâmico), não tenho tanta esperança. Mesmo assim, fico parado, calado, distante, como disse Chico Buarque, fico aqui me guardando pra quando este carnaval chegar.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

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terça-feira, 1 de março de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Cabismeditado



por Harlon Homem de Lacerda

“Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios”. Essa frase poderia ser minha ou de qualquer outro crítico que se dispusesse a ler a ficção de João Guimarães Rosa, o fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgerado... familhas-gerado escritor de quem tratamos já há um tempo e de quem falamos há tempos. Um homem de história tão afamada, mas que tem mantida, a peso de família, uma névoa espessa sobre suas palavras mais íntimas. Tem um livro, intitulado Joãozito, escrito pelo tio, que tinha quase a mesma idade de Guimarães e por isso quase um irmão deste, que traz uma carta fazendo um panorama do que Guimarães considerava bom ou ruim na literatura brasileira do seu período. Eis a névoa! O trecho da carta no qual Guimarães Rosa fala da péssima literatura foi censurado! Cortado pelo tio que queria poupar seu sobrinho. Poupar?! Quanta mediocridade! Quanto desrespeito com os leitores de João, sem zito.

A família de Guimarães Rosa, mais notadamente sua filha Vilma, vive da sombra do pai deixando sua própria sombra ocultar boa parte de um material que seria valiosíssimo para quem estuda ou simplesmente gosta do maior escritor brasileiro do século XX. Nem falamos ainda da péssima decisão tomada não sei por quem dessa família de doar os documentos e a biblioteca de João Guimarães Rosa para a USP. A “grande universidade” mantém escondido a setenta vezes sete chaves material que só os eleitos que se dignarem (e puderem) ir a São Paulo podem ter acesso. Um conteúdo público! Um conteúdo que, se a USP fosse um Instituição séria e comprometida com algo além de suas paredes, digitalizaria e disponibilizaria para todo o mundo. Mas, não. “O medo O”. O medo mia esse povo da USP, que continua a desejar possuir Guimarães Rosa como a uma relíquia para iniciados. Minhas mais sinceras ojerizas são dirigidas aos responsáveis por esse crime contra a cultura brasileira.

É assim, “cabismeditado” que eu começo falando desse conto. Na verdade, nem falando do conto “Famigerado” de Primeiras Estórias estou falando eu ainda, estou mesmo é brabo como toda essa incapacidade de alguns intelectuais brasileiros e uspianos, essa mediocridade de parte da família de Guimarães em esconder do povo material tão rico. Material tão importante. Vontade mesmo é de ser urucuiano agora e entrar porta adentro perguntando aos doutores uma opinião deles explicada, tim-tim-por-pingo-no-i por que tamanha falta de vergonha na cara deles.

E o conto? Ah, a estória? É linda. Cada tom, cada fraseado seja do doutor, seja de Damázio, o famigerado, construída milimétrica. O peso dos propósitos e silêncios quem entrevemos no conto é de uma possibilidade de leitura grandiloquente no limite. Cada gesto, parecendo uma justa, um duelo. A tensão do médico, a tensão do jagunço, a tensão dos três que vieram só pra ouvir a explicação do que fosse o significado da palavra “famigerado”. Essa mínimas entonações, lugar de quem precisa dos detalhes pra compreender e fazer-se compreender, pra fazer arte literária: os detalhes. O perfeccionismo latente. João Guimarães Rosa certamente é maior que a familha-gerado de onde ele veio, é maior que os uspianos, é maior que a USP, é maior que a Academia.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Circuntristeza
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia

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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Circuntristeza



por Harlon Homem de Lacerda

Entramos nas Primeiras Estórias. Algum desavisado ou desavisada pode se perguntar, ora e por que não começou por aqui?! E nós respondemos: calma, jovem Padawan, na arte rosiana, encontrar o início ou fim muito complicado é! Também foi complicado pros resenhistas e críticos da época de lançamento do livro. Um título provocativo que Guimarães dara ao seu mais novo livro de contos, contos não, estórias. Estórias todas curtas. 21 ao todo. A primeira estória: uma marretada no coração! “As margens da alegria” é um beliscão no espírito de quem deixa a vida carregada de complexidades, quando, na verdade, tudo é simples. Tudo é como o olhar de Menino. Não um menino qualquer, mas o Menino, a criança arquetípica, paradigmática. O menino que há em nós todos. Entre um peru que morre e um vaga-lume que brilha primeiro na noite há muito pouca diferença diante do trabalho, da dor, do amor, das expectativas, do cotidiano, do futuro. Numa estória sobre o pequeno, as pequenas sensações e primeiras perspectivas, destacamos uma invenção de Rosa: a palavra circuntristeza. Vejamos o trecho:

Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento. Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medela. Abaixava a cabecinha. (grifo nosso)

O Menino que tanto se entusiasmara com a visão daquela ave, sentia-se mal por sabê-la morta. O Menino triste, o mundo triste: tudo o que o circundava não tinha graça nem alegria. Circuntristeza definiria o mundo do menino e o mundo ele mesmo para o menino. O tom emotivo-volitivo dessa invenção de Rosa é sintomático da consistência de cada estória desse livro. É nesse livro que encontraremos “Sorôco, sua mãe e sua filha”; “Os irmãos Dagobé”, “Famigerado”, “A Terceira Margem do Rio”. Um livro que foi esmerilhado, lapidado como diamante azul pelo autor e que demonstra mais uma vez a força da palavra em Rosa, na Literatura. Uma força arrasadora que transforma o mundo aos olhos do Menino e que nos ensina, nos tenta ensinar, que a vida é simples como uma tristeza que vem por conta da morte de um peru e da alegria que chega por conta da luz de um vaga-lume. A vida é passagem. É transição. É possibilidade do novo. Viver é estar sempre às margens da alegria.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Grande Sertão: veredas’ – Duvida?
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Tu leu Buriti?
- Perspectivas do Alheio – 01 ano
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando

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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Grande Sertão: veredas’ – Duvida?



por Harlon Homem de Lacerda

Eu não sei você, mas é muito fácil pra quem nasceu numa pequena cidade do Cariri cearense imaginar a cena de uma pessoa de fora chega7ndo a uma casa de fazenda num jipe, parando, descendo do carro sendo já aguardado por alguém sentado numa rede ou numa cadeira de balanço debaixo de um alpendre, tomando uma cachaça ou fumando um cigarro. É fácil sentir o cheiro da fumaça do jipe desfazendo no cheiro de mato molhado. Fácil ouvir os cachorros latirem, os “obas” e “acheguem-ses”, o barulho das botas tirando a terra para pisar no cimento frio e limpo do alpendre. É fácil ouvir as vozes, os jeitos, ver os trejeitos. Sentir é sempre fácil pra quem é do sertão. Guimarães Rosa imaginava, via, vivia, sentia tudo isso com a argúcia de um gênio e materializou pra nós uma conversa entre esse que recebe e aquele que chega, uma conversa que se tornou a conversa na qual manda quem pode e obedece quem tem juízo. Adequando melhor: fala quem pode, escuta quem tem juízo. Riobaldo fala. O doutor da cidade escuta. Nós maravilhamo-nos.

Optamos na coluna desta semana por retomar um texto que escrevemos e publicamos no livro Olhares Bakhtinianos: ensaios de análise literária (Pedro e João Editores, 2015). O tom sisudo e acadêmico pode até estar longe de nosso tom natural nesta coluna, mas é que Grande Sertão: veredas pede um traje de passeio completo. Esperamos que vocês gostem.

Existem várias intervenções hermenêuticas do Grande Sertão: veredas. Sua fortuna crítica é das maiores da literatura brasileira. Entretanto, algumas delas seguem um paradigma interpretativo que deixa poucas entradas possíveis para uma leitura diferente (Willi Bolle, na introdução do grandesertão.br, mostra esses paradigmas). É numa dessas poucas entradas que resolvemos fincar nossa análise: a dúvida. Riobaldo apresenta ao longo da narrativa várias questões ao seu interlocutor e em poucos momentos temos no narrador a certeza de alguma coisa. É neste sentido, que iremos ler o Grande Sertão: veredas como um romance sobre a dúvida, tanto temática (ou arquitetônica) como material (ou composicional).

O romance é narrado em primeira pessoa. Esta escolha composicional do autor deixa o texto literário num terreno arenoso que dificulta a certeza, que dificulta a confiança no narrado. Junto a essa incerteza composicional, somos guiados pelo narrador através de uma questão temática, de uma dúvida: o diabo existe ou não existe? Este leitmotiv desdobra-se em outras questões sempre relativas à possibilidade do mal, ou do mal personificado: o diabo e suas manifestações. Não há, entretanto, uma relação maniqueísta entre o bem e o mal ou entre deus e o diabo. Tudo está intricado, reforçando a dúvida:

Melhor se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo. (p. 04)


Mesmo os feitos, os acontecimentos, as ações, são sutilmente relegados à dúvida. Depois da passagem do bando de Joca Ramiro pela fazenda São Gregório, Riobaldo conta a seu interlocutor o comportamento “enjoativo” do seu “padrinho” Selorico Mendes: “Parecia que ele queria se emprestar a si as façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a ele, Selorico Mendes.” (p. 103, grifo nosso). Pode o filho ter herdado o comportamento do pai? Não há como ter segurança absoluta na narrativa de Riobaldo. Há algumas marcas da possibilidade da “invenção” ou “empréstimo” de façanhas alheias “tomadas” por Riobaldo. Por exemplo: “Ou conto mal? Reconto.” (p. 49); o trecho da narrativa de Davidão e Faustino (pp. 69-70) tem momentos de metalinguagem que ilustram a possibilidade de que tratamos: “Pois mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória de livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado” (p. 70). E adiante: “Apreciei demais essa continuação inventada” (p. 70); Por fim: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...” (p. 70). É possível encontrar outras marcas metalinguísticas ao longo da narrativa que fundamentam o possível “empréstimo” e carregam a estória de Riobaldo de um acento fantasioso, inventado, ligando-a à própria narrativa elaborada por Guimarães Rosa, num espelhamento infinito que reforça a dúvida, o jogo de incertezas destacado por nós.

Bem diferente de Riobaldo é o narrador do livro Os Sertões de Euclides da Cunha. Tomemos um trecho da terceira parte do livro, mais narrativa que descritiva ou antropológica:

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Barra do Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados (p. 213).

Se considerarmos a duas primeiras partes do livro de Euclides da Cunha como uma explicação ou contextualização para a “luta” que surge na terceira parte, teremos a exposição da necessidade de uma lógica linear construída para que o leitor compreenda todo o movimento implicado na Guerra de Canudos. Para não haver a fuga de nenhum detalhe ou para reforçar a precisão quase milimétrica das colocações do narrador, tudo deve ser explicado, anotado, exposto. E no Grande Sertão: veredas? A narração é disposta de maneira radicalmente diferente da euclidiana. O narrador vai e volta, conta e reconta sua estória, ele reforça a dúvida a todo o momento. Seguindo de perto o pensamento de Willi Bolle no grandesertão.br temos, no romance de Guimarães Rosa, uma oposição bem marcada diante do narrador de Cunha.

Bolle, no capítulo introdutório de seu livro, desenvolve a ideia de que Grande Sertão: veredas estaria filiado aos Retratos do Brasil – iniciativa fecunda de intelectuais brasileiros na primeira metade do século XX – e justifica, através da apresentação de várias evidências possíveis, que Guimarães Rosa leu Os Sertões pouco antes ou durante a produção de seu romance além de trazer várias indicações teóricas para a noção de reescrita da História. Bolle desenvolve nesse capítulo inicial a ideia de uma posição irônica de Rosa em relação a Euclides da Cunha a partir de três elementos: 1) o tom da narrativa. “Com a palavra ‘Nonada’ inicia-se uma fala radicalmente oposta aos ‘superlativos’ de Euclides” (p. 40); 2) a “construção da situação da narrativa”. O sertanejo sendo o dono da fala; 3) A auto-ironia do narrador. “Na base de sua fala está um constante questionamento do próprio narrar” (p. 41).

Esta abordagem de Willi Bolle parece-nos importante, pois estabelece um diálogo construtivo com a fortuna crítica, não apenas negando-a ou corroborando-a. Além disso, ele situa o romance de Guimarães Rosa tanto com a tradição literária brasileira e ocidental como com as reflexões sobre o Brasil, promovidas desde Os Sertões de Euclides da Cunha. Outro ponto importante que frisamos em relação ao texto de Bolle, é o posicionamento crítico do autor diante da obra euclidiana, demonstrando o que há de castrador em suas descrições e reflexões sobre a guerra de Canudos e sobre o sertanejo, figura essa que Guimarães Rosa retira da mordaça e dá voz através de Riobaldo. Numa postura semelhante à de Rosa, Bolle constrói sua reflexão dando ouvidos não apenas ao que se diz sobre o sertão e o sertanejo, mas tentando apresentar o próprio sertanejo e seu lugar, o sertão.

João Adolfo Hansen, outro grande crítico da ficção rosiana, coloca Guimarães Rosa como um escritor que parodia, ironiza e dissolve os textos realistas. Ele está bem próximo da colocação de Antonio Candido de que Guimarães Rosa sugere para inventar. Os dois críticos encontram no escritor mineiro um modus operandi que sugere uma produção diferente do que era (ou é) feito na literatura brasileira ou latino-americana. Seguindo o raciocínio de Hansen e Candido, podemos crer num universo criativo inovador na produção rosiana. Em Grande Sertão: veredas, a ideia de uma dúvida norteadora tanto temática como estrutural (arquitetônica e composicional) inviabiliza qualquer simplificação, qualquer classificação limitadora da obra. Assim o infinito, a travessia se mantém aberta. A não-finalizabilidade do texto literário, como caracteriza Bakhtin, encontra na narrativa de Riobaldo um exemplo paradigmático.

Grande Sertão: veredas materializa a dúvida fazendo o leitor (ou co-criador) permanecer nela. As questões centrais não encontram resolução. Um elemento simbólico desta característica é a inexistência das Veredas Mortas quando Riobaldo volta de sua última batalha. O lugar não existe mais. Não há como desfazer. Não há como fazer nada. Não há como construir uma certeza, uma verdade. A única saída do fazendeiro é viver de range-rede mastigando a dúvida para todos os que escutam/leem sua estória. Mesmo Quelemém de Góis não pode encontrar uma resposta e, assim, na religião, na História, na estória, na linguagem a dúvida se mantém inalterada, eterna.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Tu leu Buriti?
- Perspectivas do Alheio – 01 ano
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado

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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Tu leu Buriti?



por Harlon Homem de Lacerda

Uma grande amiga me apresentou Guimarães Rosa e ela, que não tem pena de mim, foi logo mandando eu ler Campo Geral. Li numa noite e liguei pra ela assim que terminei: “Nega, que livro massa da porra! Tô chorando aqui!”. Ela sorriu e disse (acho que foi isso, pelo menos é a cara dela): “Chore, meu amigo, chore bem muito! Esse livro é tudo de lindo!”. Anos depois lá estava eu inventando de estudar a ficção completa de Guimarães, coisa que ela já tinha feito, e, num bar, eu perguntei: “Nega, tu se ligou que o Miguel de Buriti é Miguilim de Campo Geral?”. Ela disse: “Eu não...”. Até hoje, eu pergunto (e mais alguns amigos que estavam à mesa naquele dia): “Nega, tu já leu Buriti?” Só pra infernizar a vida dela um pouquinho.

Mas, Miguel nem é a personagem principal de Buriti. A Nega não precisa nem se preocupar por não ter lembrado isso, por que a personagem principal não é Miguel, é o Buriti. A árvore, o “pau enorme” pra lembrarmos a música “A Terceira Margem do Rio”, de Caetano Veloso e Milton Nascimento. O Buriti, falo gigantesco, é quem determina a vida no Buriti Bom, é quem medeia as relações entre as personagens, é quem, ereto, assume a vigilância das manias de cada morador do lugar quando à noite despem-se de seus diurnos trajes morais e entregam-se às necessidades do desejo, da carne e do gozo.

Fora e dentro desse diálogo entre o dia e a noite, destaca-se uma personagem: aquele que escuta todos os sons da noite, o chefe Zequiel.

O chefe Zequiel, ele pode dizer, sem errar, qual é qualquer ruído da noite, mesmo o mais tênue. – “É bem. Ele há-de estar ouvindo, está lá no moinho, deitado mas acordado, a noite inteira, coitado, sofre e um pavor, não tem repouso. Que sabe, na cidade, algum doutor não achava um remédio pra ele, um calmante?” Aziago, o Chefe Zequiel espera um inimigo, que desconhece, escuta até aos fundos da noite, escuta as minhocas dentro da terra. Assunta, o que tem de observar, para ele a noite é um estudo terrível. (Ficção Completa. 2009; p. 702, volume I)

Esse inimigo terrível é o que pode ser? O que diremos é que só o Chefe Zequiel escutava o vento que “aeiouava”. Ele é o que detinha os segredos de todos, todos, todos os seres noturnos. Inclusive aqueles que durante o dia eram a santa e feia, a comportada, a esposa, o fazendeiro, a mulher abandonada e que, à noite transformavam-se. O certo é que no Buriti a pulsão sexual, a pulsão de morte e vida está num constante movimento simbólico sobre o qual se debruçaram vários críticos da ficção rosiana, como Luiz Roncari.

Na obra rosiana, fechando o ciclo de novelas de Corpo de Baile, Buriti, encerra o símbolo dos campos gerais, a árvore seminal, o lugar sagrado das noites do sertão. Junto com Dão Lalalão temos dois textos com um acento de erotismo não visto em Sagarana e fazendo com que o Corpo de Baile seja uma visão mais vertical do sertanejo e de suas vontades. Assim, concluímos a segunda obra de João Guimarães Rosa. Nosso próximo encontro é no Grande Sertão, é no alpendre de Sêo Riobaldo, o fazendeiro do Urucuia.

Não poderíamos terminar essa coluna sem dirigir uma questão à minha amiga Elandia: “Nega, tu leu Buriti?”.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Perspectivas do Alheio – 01 ano
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
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- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Toda crença tem seu santo

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sábado, 9 de janeiro de 2016

Perspectivas do Alheio – 01 ano



por Harlon Homem de Lacerda

Esta semana deveríamos tratar de “Dão-lalalão (o devente)”, a penúltima estória do Corpo de Baile de João Guimarães Rosa. A estória tem ciúmes, tem racismo, tem uma tensão construída num enredo espiralado num sertão de matadores e mulheres da vida saídas da vida e com uma morte sempre a espera. Mas nem vamos falar tanto de Soropita, o matador. Seu azar foi ter caído numa corrente de tempo que marca outra coisa que desejamos falar com mais atenção: a coluna perspectivas do alheio completou um ano no dia 30 de dezembro de 2015. Em um ano, falamos de várias narrativas com nosso olhar alheio a outras perspectivas mais tradicionalistas e iguais.

Começamos por Chico Buarque e seu Irmão alemão, entramos numa velha estória nova e bem inovadora na maneira de narrar e reconstruir a história através da estória, da ironia, do riso por trás das letras. A “reinvenção do tempo” de Chico Buarque foi nossa porta de entrada aqui no O Berro e nossa primeira tentativa de estabelecer um contato mais ameno com a crítica não especializada. Então aprofundamos o mergulho, num suspiro só entramos em Goethe, n’Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister e gostamos, gostávamos do que estávamos fazendo, com uma leitura que se quer desprendida, mais livre. Entramos com nossa perspectiva sem querer nada e fomos escrevendo. Resvalamos em Guimarães Rosa uma primeira vez, com “A hora e vez de Augusto Matraga”; tratamos de uma teoria de leve para localizarmos nossa perspectiva para que nos lia; Não lemos Dom Quixote e falamos sobre isso; Laurence Sterne, Clarice Lispector, Dr. Raiz, Machado de Assis, José de Alencar até chegarmos de centro e de pronto em João Guimarães Rosa, mais uma vez de uma vez por todas.

Todos os autores e textos e teorias dos quais tratamos nesta coluna formam uma espécie de cânone em nosso imaginário ficcional e quando digo nosso me refiro ao autor desta coluna. Todos eles marcaram e marcam a nossa formação intelectual e artística com grande força e vontade de determinação subjetiva e objetiva. Nosso interesse em tratar sobre ficção narrativa é o interesse na vida e no mundo como topos de beleza e sentimento e ação e força vital. É com grande alegria, pois, que escrevemos essa coluna e esperamos que algumas pessoas leiam-na. Gostaríamos, é verdade, de maiores diálogos com os leitores, saber o que acharam de cada texto, de ver no que estamos pecando, acertando, agradando enfim. O certo é que esta coluna tem sido um prazer e um dever com expectativa do devir permanente e de um mundo não alheio à arte e a literatura. (para ler os textos da coluna Perspectivas do Alheio, clique aqui)

Agradeço ao Berro, principalmente a Luís André, que às vezes recebe os textos em cima da hora e tem a delicadeza em publicá-los. Meu muito obrigado pela amizade de sempre, a Luís André, Ythallo, Hudson, Reginaldo e Fredson. Obrigado, meus amigos! E obrigado aos leitores e leitoras sejam vocês quem forem.

Inclino-me a terminar a coluna desta quinzena copiando a saudação de Rosa em suas cartas. No nosso próximo encontro, trataremos do “Buriti” e encerraremos o Corpo de Baile. Assim, deixo

Um abraço
Do sempre vosso,
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente

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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní



por Harlon Homem de Lacerda

Ainda no espírito de Simone “Então é natal”... tratemos de mais um texto do Corpo de Baile.

“A estória de Lélio e Lina” é um conto de fadas desses que a gente suspira, transpira, respira fundo e vai até o fim encantando-se com o sertão rosiano. Alguém pode querer tentar dizer que na literatura de Rosa só tem isso, que os personagens são mais do mesmo, desse sertão. Mas aí é que se enganam. A cada página vamos invadindo a vida dessas personagens, que não é bem uma vida, mas é algo muito parecido, e encontramos tipos totalmente novos. A fortuna crítica rosiana falou muito de Lélio, falou muito de Rosalina (até havendo quem dissesse que Rosalina era um alter ego feminino Guimarães Rosa), falou muito de Seu Senclér, falou muito de Jiní, mas não falou de Jiní como nós queremos falar dessa princesa fabulosa, que sai de uma condição de marginalidade total para, através de sua própria força, tornar-se princesa de um conto de fadas sertanejo. A atmosfera mágica desse conto, já dada pelo cachorro de Rosalina que Lélio “traz de volta” sem querer, sem saber que se tratava de uma “caçada”, é recontada por Jiní em sua trajetória. Tratemos de segui-la:

“Jiní: uma das mais maravilhas...” no tom de Canuto;

“Nem por seu irmão ser branco e a Jiní tão escura de pele. Mas porque a Jiní não dava certeza de ser honesta” no tom de Drelina;

“A Jiní estava na porta. A gente ia vendo, e levava um choque. Era nova, muito firme, uma mulata cor de violeta. A boca vivia um riso mordido, aqueles dentes que de brancos aumentavam. Aí os olhos, enormes, verdes, verdes que manchavam a gente de verde, que pediam o orvalho” no tom da vista de Lélio.

A descrição continua, chega aos proibidos de Jiní. Jiní que aguentava a cara feia de Tomé, que aguentava, aguentava aquela gente toda. Até que Jiní não aguentou mais e foi embora, com fazendeiro que lhe dera tudo. Ela usou o corpo. Usou os olhos verdes e toda a voluptuosidade que deixa os homens e mulheres cegos. Ela usou todas as armas de que dispunha para sair da marginalidade, da opressão, da condição desumana a qual o próprio narrador a colocava ao descrever suas relações com Lélio, que eram sem palavras, apenas desejo e carne – animalescas.

Muito parecido com o tom do narrador de São Marcos, o tom do narrador com Jiní estabelece uma condição de construção da personagem negra na ficção rosiana que demonstra um tom depreciativo para com ela. Nesse conto de fadas, nesses contos de ficção, a dureza da realidade ricocheteia, rechicoteia nas costas do negro que se vê representado por suas características físicas sendo o prenúncio do pecado e da perdição do branco. Não fujamos, portanto dessa discussão, que tem na princesa Jiní e em outros personagens da ficção rosiana uma página que desnuda o sertão rosiano e o sertão real como palco de atrocidades para com o povo negro. Que luta e muda, mas que precisa de muito luto ainda para deixar sua voz ser escutada.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira

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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’



por Harlon Homem de Lacerda

Sobre o texto “Cara-de-bronze” eu só tenho duas coisas a dizer: “Ai, zé, opa!” e “moimechego”. Qualquer um que tenha lido a fortuna crítica básica de Guimarães Rosa será levado para essas duas “brincadeiras” do autor, ou basta ler a correspondência com o tradutor italiano. Nesse que é um dos textos mais experimentais de Guimarães, sendo um roteiro, um conto, uma novela, um poema, cheio de narrativas dentro da narrativa, repleto de notas de rodapé de Dante, Goethe etc. etc. etc. as brincadeiras parecem uma caça ao tesouro que deixa em polvorosa aquela crítica conteudista mais ferrenha pra descobrir as verdades do texto rosiano. Nós aqui, ficamos só com a beleza as descobertas e a possibilidade plural que o texto nos oferece a cada nova leitura.

Sim, se tu não se ligou no guidom, “Ai, zé, opa!” e o anagrama de A poesia, com “z” que não é qualquer poesia.

Moimechego sou eu, eu em quatro idiomas: francês, inglês, alemão e latim. Tá bom pra tu? Tem mais lá no texto, vai procurar, dá uma lida e se diverte. No fim das contas, o cara de bronze queria unicamente a possibilidade de reconhecer a sua terra natal através da palavra, através da descrição minuciosa de tudo que a linguagem pode revelar, velar, esconder, mostrar.

Texto curto, meio apressado, mas como diria Simone “Então, é Natal...”

Abraço.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Febre e Mato

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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta



por Harlon Homem de Lacerda

Rapaz, e se esse monte de conto e novela e romance e estória dos quais estamos tratando aqui com tanto carinho, com tanta atenção, não fossem de Guimarães Rosa? Ou, e se Guimarães Rosa não fosse diplomata, alto funcionário do Itamaraty? Ou, e se esse mineiro da grande família não tivesse morrido três dias depois de se tornar imortal da Academia Brasileira [sic] de Letras? Ou, mais uma vez, e se ele mesmo não tivesse adiado a posse na Academia achando que, logo que tomasse posse, morreria? Já pensou, se Guimarães fosse do Cariri? Se fosse um servidor público de alguma repartição pequena de algum interior esquecido? Ou se nem não tivesse sido amigo de José Olympio, nem fosse conhecido lá pelo centro do mercado editorial? Será se, com alguma dessas condicionais, estaríamos tratando do mais renomado e lido e comentado escritor da Literatura Brasileira? Tenho cá minhas dúvidas! A principal é por que eu tenho lido a fortuna crítica dele e quase todos os doutores e doutoras que estudam a obra de João Guimarães se pegam, com todas as garras, no fato de ele ter sido extremamente culto e de ter sido embaixador. Parece que insistem nisso como se fosse uma condição sine qua non para determinar a força de sua narrativa. Parecem esquecer que ele é do sertão. Parecem esquecer a influência direta e absoluta do universo sertanejo para o desenvolvimento não apenas temático, mas formal da obra de Guimarães. Um exemplo disso é o “Recado do Morro”, primeira obra da segunda parte do Corpo de Baile, No Urubuquaquá, no Pinhém.

Tem gente que insiste, por exemplo, em dizer que Guimarães recebeu influência direta de James Joyce, naquela velha atitude colonialista de dizer que o que é bom pra gente é porque veio de fora. Valei-me, meu Padim Ciço! Eu fico doidin quando leio essas bobagens! Guimarães Rosa pode ter tido influência de tudo no mundo, da literatura inglesa até a filosofia Xintoísta, mas a matéria vertente de sua literatura tá lá em Minas, tá lá no armazém de seu Florduardo, tá no sertão, tá no Brasil. Quando lemos o “Recado do Morro” sentimos a força da cultura sertaneja saltando com a força de Pê-Boi, que pra gigante só falta uns cinco centímetros, diante de nossos olhos. A apropriação de uma narrativa feita sob várias formas, a partir de vários narradores, diante dos olhos de todos no sertão e que só chega ao ouvidos de Pedro Orósio, depois de depurada, retrabalhada e cantada na viola de Laudelim. A viagem que o recado dado pelo morro faz do Guégue até a compreensão de Pedrão Chãbergo é a viagem da literatura brasileira. De um espaço, de uma paisagem que ganha vida unicamente através do povo para ser compreendida por esse mesmo povo. Em o “Recado do Morro” a estória de uma traição, de uma morte à covardia, é recontada de todas as formas possíveis e trecontada pelo narrador rosiano, que captura da vida e torna vida através da forma, das formas.

Se algum daqueles viajantes tivesse a chance de ouvir o sertão, de ouvir o morro da Garça, da Graça divina, do milagre nem talvez tivesse sido necessária tanta volta, mas foi preciso um que tivesse a sensibilidade para ouvir o sertão, para ouvir o morro e passar de boa em boca, pelos loucos e cantadores para o recado se tornar mito, o mito se tornar canto e o canto se tornar logos para depois se tornar mythos na forma e no conto de João Guimarães Rosa.

Desculpe-me o Ulysses, o Dublinenses, o Retrato do artista quando jovem, o Finnegans Wake. Desculpem-me os doutorzinhos neurastênicos das capitais, mas Guimarães Rosa era vaqueiro, era do sertão. Por isso sua força, por isso a capacidade de ter reinventado a dado vida à Literatura Brasileira: porque bebeu ele da fonte que dá vida a este país – o sertão. Se vale o cheque pela sua assinatura, quem conta aqui é aquele que narra, quem dá o recado é o morro, é o sertão, é o povo. Conta quem conta e quem reconta e quem treconta. 
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Febre e Mato
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Sapo ou Cágado?

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terça-feira, 10 de novembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino



por Harlon Homem de Lacerda

“Em ‘Uma estória de amor’, em que se conta a festa de Manuelzão, chegado de menino pobre a encarregado de fazenda. Já no fim da vida, impelido pela vontade de se perpetuar, constrói ele uma capela e inaugura-a com um banquete. Em trilhos paralelos correm as duas ações: a exterior, constituída pela sequencia da festa, a chegada dos convidados, o cerimonial do banquete; e a íntima, o embate de inquietações surdas no espírito frusto de Manuelzão, torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima. As duas ações chegam a remate no eclodir inesperado, na boca de um velho mendigo, de uma epopeia, milagre cuja vaga intuição integra o sentido da festa e apaga os tristes símbolos da vida incompleta de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a existência e que estava fora da moda, afinal, se achou em condições de adquiri-lo”. (p. 23)

Essa epígrafe um tanto longa foi escrita no texto Rondando os segredos de Guimarães Rosa, escrito por Paulo Rónai em 1956 como artigo e publicado à guisa de prefácio em edições tardias do volume Manuelzão e Miguilim. Uma estória de amor é das estórias menos comentadas dos primeiros livros de Guimarães Rosa. Talvez, não o sabemos ao certo, por ser ela a que mais se encarregou de traçar um comparativo definitório entre o escritor e suas influências designando Manuelzão como pessoa real existente – aliás, o próprio Manuelzão (e seus entrevistadores, como Jô Soares) se encarregou de deixar isso bem claro. Basta dar uma olhada em vários vídeos à disposição no Youtube:

Manuelzão e Jô Soares:


Manuelzão e Bananeira Parte 01:


Entrevista com Manuelzão em 1990:


Eu digo isso assim num é com raiva de Manuelzão não, que ele é um velhinho bem simpático, sertanejo bom de altos costumes – como talvez escrevesse Guimarães Rosa. Raiva, eu tenho é dos tipos capiaus arvorados de grande cultura de civilizações meritórias do alto de seus prédios de tantos andares. Esse povo insiste em designar a literatura de Guimarães Rosa como um resultado direto de sua vida, de suas pesquisas, de suas anotações, das leituras que ele fez dos “Retratos do Brasil”. Se fosse isso Guimarães teria escrito tanta coisa de bonita e eterna? Insisto em pensar que não. Guimarães Rosa inventa, sugere, como bem diz Candido em vários textos.

Como prova peremptória e desfechatória do que quero dizer, deixo uma cantiga de dentro da estória do Velho Camilo pra vocês mesmos pensarem em como a verdadeira arte cria a vida, jamais imita.

O Vaqueiro-Minino e o Boi Bonito

– Levanta-te, Boi Bonito,
ô meu mano,
deste pasto acostumado!

– Um vaqueiro como você,
Ô meu mão,
No carrasco eu tenho deixado!

 – Levanta-te, Boi Bonito,
ô meu mano,
Com os chifres que Deus te deu!
Algum dia você já viu,
ô meu mano,
Um vaqueiro como eu?

– Te esperei um tempo inteiro,
Ô meu mão,
Por guardado e destinado
Os chifres que são os meus,
Ô meu mão,
Nunca foram batizados...
Digo adeus aos belos campos,
Ô meu mão,
Onde criei o meu passado?
Riachim, Buriti do Mel,
Ô meu mão,
Amor do pasto secado?...
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ - Sobre ‘O burrinho pedrês’

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terça-feira, 27 de outubro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma



por Harlon Homem de Lacerda

Chegamos ao Mutúm. Chegamos à casa de Miguel e Expedito. Chegamos ao registro de maestria subjetiva, linguística e literária de João Guimarães Rosa. Como essa maestria é sentida de maneira muito parecida em toda a ficção rosiana, chegamos ao “Campo Geral” – a estória que abre o Corpo de Baile. O conjunto de estórias do Corpo de Baile impressiona tanto pelas estórias mesmas, como pelas personagens, pelo caráter cíclico em seu fechamento com Buriti. Luiz Roncaria lembra o plano de criação de Corpo de Baile dizendo que tudo se passa em um dia – “Campo Geral” sendo aquela manhã brumosa e que vai se acabando nas noites eróticas de Buriti.

Quem garante esse caráter cíclico surgindo na primeira estória e voltando na última, já adulto, é Miguel. Miguel? Expedito, eu falei? Miguilim. A criança paradigma. O espírito mais terno que tenho notícias nessa nossa literatura. Dito, irmão de Miguilim. Há quem diga que Miguilim é o próprio Guimarães Rosa, vários críticos nomeando isso junto a Vilma Guimarães Rosa, quem mais insiste nisso (aliás, Vilma Guimarães Rosa insiste em muitas coisas em seu Relembramentos). Miguilim é um menino sensível ao extremo e que descobre no final daquela manhã brumosa, o motivo das brumas: miopia – como seu criador, o menino Guimarães. Mas há muito mais do que a simples anotação biográfica no “Campo Geral”, há uma poesia redentora, há a representação de uma realidade cruel incrustada no pai de Miguilim, na mãe que sofre com a impossibilidade da felicidade, no tio Terez que sofre com a impossibilidade do amor, na Mãetina que sofre, simplesmente. A estória (que seja conto seja novela) carrega a novidade do mundo nos olhos de Miguilim. Edouardo Bizzarri, o tradutor italiano de Corpo de Baile (Corpo di Ballo), correspondia-se com Guimarães Rosa, dizendo-se seu Miguilim – um menino na aurora da descoberta, na força que o despertar tem, no medo infantil de tudo e no trabalho que já começa desde cedo.

Falar de “Campo Geral”, da estória de Miguilim e Dito, é plasmar-se diante do belo, chorar junto a uma perda anunciada e, por isso mesmo, perversa. Nem não vou contar o que se passa com Miguilim, nem com Dito, eu quero é vocês leiam, mas leiam deitados numa rede, sem hora marcada, sem página certa. Leiam com o coração todo aberto a estória de Miguilim. Chorem, emocionem-se que vale, vale a catarse de uma vida tão difícil, vale a purgação de tudo.

Para mim, essa estória tem um traço muito especial por que foi por conta dele, de Miguilim, que comecei a prestar atenção em Guimarães Rosa. Foi por conta dos Miguilins, crianças que decoram as estórias de Guimarães e contam aos visitantes do Museu Casa de Guimarães Rosa, em Cordisburgo, que eu decidi que minha vida acadêmica seria agora totalmente voltada para o estudo da ficção de Guimarães Rosa. Decisão completa de sentimento, de inspiração, de serendipity – como talvez gostaria o Joãozito. É possível que quem for ler “Campo Geral” hoje tenha uma revelação parecida com a minha, é possível que não, só não é impossível ficar sem ler, uma vez na vida, pelo menos, a estória de Miguilim – nome que eu faço questão de repetir igual um Papaco-o-paco.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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