Entrevista com Luis Karimai e Petrônio Alencar
Por Reginaldo Farias e Luís André Bezerra
Inauguramos o "Arquivo Cariri" com um momento de "O Berro nas antas". Trata-se de uma entrevista que fizemos com dois grandes artistas plásticos caririenses: o saudoso e inesquecível Luis Karimai e seu “discípulo”, parceiro e amigo, Petrônio Alencar.
Importante ressaltar que muitas das perguntas feitas estavam permeadas por um “jovem impulso” de querer uma arte transformadora da sociedade, no sentido “mais raso” da coisa. Hoje podemos ponderar muitas dessas questões. A nossa felicidade é que contamos com a sabedoria de Karimai e Petrônio, que deram uma aula de postura artística, de conhecimento estético e de consciência de linguagem, que é o mais importante nesse tipo de abordagem.
Reproduzimos abaixo o bate-papo publicado na edição 28 d’O Berro, em abril de 2000.(LAB)
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O Berro, edição 28, abril de 2000:
Batemos um papo com os artistas plásticos Luís Karimai e Petrônio Alencar. Falamos sobre a arte e os problemas por ela enfrentados na região do Cariri cearense.
Massaki (Luis) Karimai, 53, artista plástico há cerca de 23 anos, quando veio morar em Juazeiro do Norte. No momento está trabalhando em seu álbum; também está ilustrando o livro O Eco da Pedra, do poeta Clairton Oliveira, de Icó-CE; com Luís Carlos Salatiel colabora no NaveGarte, incluindo a abertura da galeria de arte José Normando Rodrigues.
Petrônio Sampaio de Alencar, 33, nasceu e reside em Juazeiro. Há 13 anos trabalha profissionalmente com artes plásticas. Atualmente dá prioridade aos desenhos antigos que está retrabalhando. Também é o Diretor Financeiro da recém inaugurada Casa da Gravura.
O BERRO: Qual a necessidade que o povo tem de se alimentar de arte e qual a função desta? E qual o papel das artes plásticas nesse ramo? Por aparentar ser mais afastada do popular...
LUIS KARIMAI: A arte tem função de reflexão, de fazer com que elementos que não são claramente definidos pelo discurso formal possam ser entendidos pelo sentimento, e por intuições que são sentidas. Faz com que eclodam nas pessoas as sensações de harmonia, de reflexão, de meditação e, sobretudo, de provocar o que seja o belo, no sentido de fazer com que as pessoas se elevem no comportamento e no sentimento. Evidente que existem muitas artes que levam as pessoas ao prazer ou à alienação, ao discurso panfletário, doutrinário, como por exemplo nas artes plásticas na Rússia no período da Revolução e na instalação do regime Comunista. Quanto à arte plástica em geral, ela não é somente um apelo visual, pois leva ao entendimento de coisas que ficam dentro da jazida da alma dos indivíduos, suscita meditações no sentido de poder fazer com que o espectador vislumbre possibilidades que não tinha pensado ainda, então ela é uma abertura de posições, de entendimentos e de raciocínios.
PETRÔNIO ALENCAR: O homem sente necessidade de arte desde a pré-história, quando pintava e desenhava nas cavernas a sombra de animais que eram abatidos em caças, e estes desenhos participavam de um ofício religioso. Durante muito tempo a arte teve seu papel religioso, papel político também, mas com os romanos ela passou a ter um caráter mais estético, apreciar a arte por si mesma, apreciar o belo.
KARIMAI: Tem uma declaração de Salvador Dalí muito interessante, ele diz que pintaria uns moluscos que, apesar de serem conhecidos pela ciência, mostraria um lado desconhecido que a ciência ainda não teria condições de perceber e este conhecimento novo de algo já conhecido seria através das relações de cores e de formas. A arte é uma forma de conhecimento de vanguarda.
O BERRO: No decorrer da história o artista teve um papel religioso, depois a importância era a cor, a luz, a forma e em outro momento era só o interior do artista que era importante. Então, qual o papel do artista contemporâneo, o papel sócio-político de Karimai e de Petrônio na sociedade?
KARIMAI: O artista tem uma grande responsabilidade sobre a obra que produz. Você vê que a mídia se ocupa basicamente da arte, quer seja música, dança, teatro ou cinema. Todo o universo que rodeia o ser humano contemporâneo é preenchido pela arte em geral. É grande a responsabilidade, talvez muito mais que a dos políticos e dos economistas. Mas esta presença constante e muitas vezes massiva da arte na vida das pessoas não é percebida de uma forma consciente pela população, que acaba também sendo manipulada.
PETRÔNIO: Esta questão é muito discutida, é muito cheia de oposições. Alguns acham que sua obra deve estar a serviço da transformação da sociedade e outros acham que não. O artista deve fazer o seu trabalho independente de qualquer luta social e política, mas durante toda a história encontramos sempre os dois segmentos. O artista deve participar das transformações da sociedade. O artista que tem importância na história da arte faz geralmente um trabalho de vanguarda, então ele deve fazer esse trabalho de conscientização. Não que seu trabalho deva virar panfletário, mas deve contestar a sociedade em que vive, isso não é de graça, mas porque a sociedade tem muitos erros, muitos vícios, precisa ser transformada. Não estou falando que todo mundo deva retratar sempre luta política, isso não.
O BERRO: Mas também existe a grande influência da sociedade sobre esse artista, não? Na música, por exemplo, são poucos os que se arriscam a ir na contramão de uma “sociedade com os valores perdidos”.
KARIMAI: Não acho que o artista deva viver na contra-mão da sociedade.
O BERRO: O artista não está mais fazendo uma música de vanguarda, o músico está produzindo aquilo que as pessoas querem consumir no momento, não está mais preocupado em fazer uma revolução na arte...
KARIMAI: Mas nesse sentido, será que ele é um artista? Contestamos isso, porque ele deve ser legítimo em seu ato de criação e a criação deve ser sagrada, intocável. É claro que ele está antenado com as suas preocupações mais interiores, também vinculado com o tempo e a sociedade, e nesse sentido, sim, você poderia entender que seja andar na contramão do consumismo. Eu acho que nós temos é o compromisso em relação a uma nova sociedade, sobretudo com as crianças. Tem de se começar pelas bases e precisamos empregar todo o nosso talento, nossa experiência, todo o nosso amor em relação às crianças, para que a possamos fazer com que elas conheçam a liberdade e possam manifestar-se livremente.
PETRÔNIO: Essa questão da influência e da vanguarda é muito discutível. Primeiramente, acho que a vanguarda hoje em dia caminha também para o comercial. Difícil aqui, porque a gente do interior não tem um contato tão grande com o que se chama arte de vanguarda dentro do cenário das artes plásticas atual. Então, os dois segmentos, tanto na arte tradicional como na de vanguarda, existem segmentos comerciais. Como citou Karimai, aquele que é artista mesmo faz um trabalho que lhe satisfaz como pessoa, que transmite o que quer transmitir e não o que os outros querem ver.
O BERRO: Acredito que o artista autêntico seja um pouco elitista, principalmente aqui no interior, onde não há museus, espaços para as pessoas de um nível social mais baixo ter acesso a esta arte. Então quero saber quanto à arte autêntica: há uma preocupação de levá-la para um nível social onde as pessoas possam ter acesso?
KARIMAI: Na verdade o povo faz arte, sempre fez em todos os momentos. Dizem que só há arte nos salões e nos templos da contemplação artística e isso é uma balela muito grande. Inclusive, esse preconceito que a sociedade, sobretudo as elites têm em relação ao povo é que não reconhece que ela seja arte, portanto, mal ocupa a mídia e não tem o devido reconhecimento. Se fosse sempre assim, nós não teríamos Patativa do Assaré, não teríamos essa recriação do popular, sobretudo aqui no Juazeiro. Agora, acredito que o popular que é “endeusado como primitivo” também deve buscar transformações, sua espontaneidade deveria conhecer algo mais, porque a arte não tem fronteiras. Muitas vezes parte dos intelectuais, dos chamados de vanguarda, recomendarem a xilogravuristas que não tentem outras formas de artes plásticas. Mas, como disse um amigo, “quem tem estilo é ladrão”, então a pessoa não tem que ficar cabrestado a uma forma única de arte, ser o que chamam “artista popular”, isso é uma miopia muito grande.
PETRÔNIO: Falar em arte de elite e arte popular é algo perigoso. Na época de Stálin, ele decidiu que abstracioninsmo, expressionismo, surrealismo e outras correntes eram artes de elite e o que o povo entendia, o popular, era o realismo. Mas não é por aí. O que acontece é que as pessoas não têm contato com a arte. Então, aquilo que você desconhece, geralmente você rejeita. O problema é falta de espaço, de incentivo, de uma programação adequada para o povo entrar em contato com arte. Ela só é elitista no fato de que só quem pode comprar um quadro são as pessoas que têm um poder aquisitivo maior, nesse ponto eu vou concordar. Tudo dependeria do esforço do setor público de levar essa arte. É difícil para um artista fazer sua exposição, porque gasta-se muito com emuldurações, transportes para os trabalhos, algumas vezes com aluguel do espaço...
KARIMAI: Essa nova geração de Juazeiro é muito feliz, porque eu, Petrônio, Lurdinha e Zé Lourenço estamos ensinando arte para as novas gerações. Às vezes as pessoas não têm a dimensão da importância desse trabalho. Então, se mais artistas partirem para esse tipo de ensino — não que isso seja um como um emprego de professor de arte, mas que seja o engajamento de cada artista em um setor, pois temos instituições que trabalham com crianças abandonadas, crianças de rua, e precisamos passar a essas crianças a superação das suas condições —, é nesse sentido que a arte tem o seu papel de transformação, de mudança. Gostaríamos que os músicos também se engajassem nesse projeto. Não podemos colocar eternamente sobre as costas do poder público essa responsabilidade, cabe a nós também.
O BERRO: Qual a principal barreira enfrentada pelo artista na região?
PETRÔNIO: Discordo de Karimai quanto ao poder público, pois acho que ele tem um papel muito importante na arte. São poucas as empresas que se habilitam a cooperar com a cultura da região, então acho que o setor público tem um papel fundamental nesse momento. O Governo Tasso Jereissatti reduziu muito o investimento em arte e cultura, principalmente na nossa região. A gente vê que em Fortaleza tem o Instituto Dragão do Mar e em Juazeiro não existe nem a “Lagartixa do Sertão”, pelo menos para cobrir um pouco essa brecha. Então, se preocupam em fazer uma torre com mais de cem metros de altura [referindo-se ao Luzeiro do Nordeste, de Juazeiro do Norte, que ainda não havia sido inaugurado], não sei para que vai servir, deve ser para quando o avião for passando limpar a turbina, limpar a asa... e as prioridades são esquecidas. Tem também o Museu Vivo do Pe. Cícero, revitalização do Horto, mas, pelo amor de Deus, e o “Museu Morto do Pe. Cícero”? [aqui, referindo-se ao Museu que fica na casa onde morreu o Padre Cícero, na Rua São José] Não vai ter nenhuma atividade lá, não? Uma reforma, uma reestruturação? Posso estar sendo ingrato, pois foi inaugurada a Casa da Gravura e quem paga o aluguel do prédio é a Prefeitura. Certo, ela está cumprindo seu papel. Mas isso não é tudo, até porque nossas acomodações são modestas e foi prometido coisa muito maior. Mas os artistas deveriam se unir mais, ter mais consciência política e atuação.
O BERRO: Karimai, qual a principal barreira enfrentada como Secretário de Cultura?
KARIMAI: Quando reivindicamos a postulação de ocupar o cargo por um artista, fomos ingênuos, até certo ponto, pois acreditávamos que isso bastaria. O fato político é bem mais complexo do que se imagina. Entramos na Secretaria sem o orçamento e, ao mesmo tempo, não fizemos com que o Prefeito tivesse um compromisso político com os projetos. Então entramos sem nada, e sem verba você não faz nada, e sem compromisso você não tem como negociar. Tínhamos que fazer o papel de mendigo oficial, quando já exercíamos o papel de mendigos marginais. Apenas tínhamos um cargo, mas não tínhamos apoio, então ficamos de mãos atadas e, pior ainda, porque tínhamos a cobrança do artista, que não entendia porque determinados projetos não foram executados. Mas os projetos foram encaminhados, só não foram aprovados, apoiados e executados. E uma Secretaria sem um centavo não podia fazer nada. Agora, com esse meu desencanto em relação à política, acredito mais em mim, muito mais. Quando Petrônio fala da responsabilidade do poder público, eu não estou negando isto, mas o desencanto leva você a procurar outras saídas que existem, desde que você se empenhe e tome coragem e se una. Então, falta a nós trabalhar mais, ir à luta. Eu acho que tem saída sim, é difícil, mas o desafio está lançado.
O BERRO: E quanto à fusão da Secretaria de Cultura com a de Ação Social?
KARIMAI: Não gostaria de comentar, porque faz parte desse meio político. Então, favorecimento e distorção política do fazer da coisa pública, isso aí a gente vê todo dia. O certo era que fosse para que tivéssemos um reconhecimento do quanto os artistas populares, eruditos, cantadores, o pessoal do Reisado, os artesãos, já fizeram pela cidade de Juazeiro do Norte. O quanto Mestre Noza é falado, Ciço do Barro Cru e tantos outros artistas anônimos que não tiveram respaldo.
PETRÔNIO: Eu acho que isso não é fusão, é confusão. A Secretaria de Cultura é um órgão primordial para uma cidade como Juazeiro do Norte. São muitos artistas que estão trabalhando e procurando elevar o nome da cidade. O que seria Assaré se não fosse Patativa? Então eu acho que a administração pública tem que ter mais respeito. A Secretaria de Cultura tem que ser só ela, exclusivamente.
O BERRO: Quanto à união dos artistas, o que é que falta? Já que temos uma Associação de Artistas (AMAR), a Casa da Gravura, mas o que se vê é o afastamento de muitas pessoas...
PETRÔNIO: Durante as décadas de 60, 70 e 80, tivemos uma forte manifestação política por parte da juventude, dos artistas. Muitos que estavam engajados na luta contra a ditadura militar, então acho que existia um inimigo concreto e todo mundo reconhecia e se dispunha a lutar contra ele. Acho que o fim da ditadura militar e outras coisas, como a queda do muro de Berlim, o fim da URSS, diminuiu muito os ânimos, muita gente pensou que o sonho tinha acabado. E esse pensamento faz com que as pessoas abandonem a luta. Vivemos um novo momento, chamado neoliberalismo. Ele até o momento guarda um grande trunfo de desmobilizar toda a sociedade. Eu acho que falta uma liderança que leve às pessoas a ideia de que ainda é preciso lutar, inclusive porque o neoliberalismo é um inimigo concreto, na imagem do nosso presidente, nosso governador, nosso prefeito.
KARIMAI: As instituições de artistas deveriam organizar melhor o seu planejamento de trabalho. Precisamos abrir frentes de trabalho, encaminhar a nossa produção, ter criatividade, não só na obra, mas também no emprego. Se os espaços são poucos, alguma coisa existe e devemos aproveitar, de forma metódica; e o que não existir cabe a nós criar. Alguns artistas estão me procurando e eu estou dando assessoria a eles, elaborando os projetos e fazendo encaminhamentos, e acho que esse é um primeiro passo. Podemos nos unir e ao mesmo tempo viabilizar soluções. Determinados artistas aqui só conseguiram trabalho porque foram lá fora. Eu cansei de ir a Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, levando os trabalhos nas costas, não somente os meus, mas dos gravadores daqui, dos artesãos, então são clareiras que a gente abre lá fora também. “Ô, meu filho, se você quiser ser artista você tem que fazer isso aí”, cair na romaria que a gente faz aí fora, dormindo em que lugar for, comendo um dia e não comendo no outro, ouvindo muito “não” e se deparando com a incompreensão das pessoas. Se achar que ficando aqui em Juazeiro o pessoal vai chover em cima da gente, não vai não. Tem que fazer essa batalha espinhosa.
O BERRO: Há um interesse em determinadas camadas de sempre negar o apoio à cultura? Tem políticos interessados no não desenvolvimento da cultura?
PETRÔNIO: A questão não é estar interessado em que a cultura não ande, é apenas desinteresse, descaso. Eles não pensam nisso, não param sequer para pensar que existe arte, cultura. Conheço muita gente rica em Juazeiro do Norte que compra quadro ou escultura lá fora, não compra aqui. Já entrei em loja de quadros em Juazeiro onde o pessoal só comprava quadro de artista de fora. Será que os trabalhos daqui não têm qualidade? Karimai falou que o artista tem que pegar seu trabalho e cair no mundo. Todo artista tem que fazer isso, ninguém vem atrás de você, não. Agora, o que reclamo é por não ter um espaço sequer aqui. Fico com pena de todo mundo ter que ir pra fora. Karimai foi o único “maluco” que fez o contrário, veio para cá. Mas os outros, terem que ir para fora, isso é um prejuízo muito grande para a região. (...)
E o Horto inteiro deveria ser tombado. A subida, os casarios, a estátua e tudo mais. Esses casarios populares representam uma arquitetura consolidada desde a época da colonização até os nossos dias de agora e que, infelizmente, está havendo uma modificação, também pela questão do azulejo, que a gente compreende, porque isso lembra a tradição portuguesa de colocar azulejo no frontal das casas. Mas com isso nós perdemos uma coisa muito interessante em Juazeiro do Norte, que eu retrato muito em meus quadros, que muito me chamaram a atenção e ainda me chamam.
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