quarta-feira, 20 de abril de 2011

Pe. Cícero no Drama da Paixão

Centenário de Juazeiro do Norte # 08
Embalado pra viagem # 14

Semana Santa. E diante de muitas encenações da "paixão", lembro de uma em que o fundador de nossa cidade, Padim Ciço, assume papel fundamental no drama. Para muitos, o Pe. Cícero é o Santo maior de suas devoções e que traz para Juazeiro do Norte milhares de fiéis todos os anos em suas romarias. Nesse espetáculo, o próprio Jesus recorre ao nosso santo padre, no clímax do enredo, para lhe pedir ajuda.

O episódio se passou aqui pertinho, em "Matozinho", e quem conta o acontecido é o escritor J. Flávio Vieira em seu livro Matozinho vai à guerra.

Leia esse episódio:

Paixão de Cristo

Há controvérsias em Matozinho, mas parece que se deve à iniciativa de D. Carlina a ideia revolucionária. Enfurnada nas "Filhas de Maria", já entrada nos anos, viúva de um dos maiores paus-d´água da Vila, Carlina transpirava santidade por todos os poros. Um dia já tivera vida menos regrada, desfrutara uma difícil vida fácil, lá pras bandas da "Rua do Cacete no Lombo" em Bertioga, até que fora resgatada da zona por Zé Quequéu que, apaixonado, a tomou por esposa. Tirado o luto, Carlina voltouse à religião, pregava abstinência de todos os vícios e comentava, com ares críticos, os desvios dos matozenses mais libertinos. Como todo puritano, já esquecera que o caminho da virtude muitas vezes vem das veredas da perdição.

É provável, pois, que a ideia tenha vindo da neo-virtuosa Carlina. Reuniu a "Associação Comunitária do Sítio Pau Dentro" e propôs a encenação de uma "Paixão de Cristo" na Semana Santa que se já aproximava. Os argumentos pareciam fortes: o evento divulgaria a Associação e o Sítio e facilitaria a negociação das demandas, junto à prefeitura. Além do mais seria uma oportunidade, frisou Carlina com olhos piedosos, de mostrar a toda a Vila o grande poderio artístico do "Pau Dentro". Aprovada pela maioria dos presentes a proposta, o povo caiu em campo, com fins de encontrar meios e subsídios para bancar a produção. A prefeitura, como sempre — em Matozinho não é diferente — prometeu mundos e fundos, mas cozinhou, cozinhou e na última hora bateu catolé. A comissão arrecadou algumas poucas peças no comércio local e algum dinheiro dos coronéis mais abastados, usado na compra de vinho, sob a alegativa que todo elenco precisava ir avinhado. Quando D. Carlina protestou: "Álcool, na Via Sacra, de jeito nenhum!" Bedeu, o presidente da Associação, lembrou que apenas estavam seguindo a Bíblia, tanto não era pecado que Cristo tinha transformado água em vinho nas Bodas de Caná.

A parte mais conturbada da produção, no entanto, não podia ser outra, senão, a escolha do elenco. Havia candidatos demais para Cristo, São José e Nossa Senhora e de menos para Centurião, soldados romanos, bom e mau ladrão e figurantes. A primeira tentativa de divisão terminou por uma briga de proporções bíblicas envolvendo — pasmem vocês — santos, Pilatos, Cristos, Marias Madalenas, Josés de Arimatéia, Verônicas.Polícia chamada, aberto inquérito na delegacia, o soldado Severo fechou questão: vamos resolver tudo agora, por sorteio, para acabar o cu de boi! A decisão não podia ser mais salomônica. Claro que mesmo Salomão deve ter entendido que toda solução cria outros problemas paralelos, muitas vezes mais sérios que o original pretensamente resolvido. O Cristo vitorioso, "Zabelê", um chapeado de feira, tinha pouco a ver, fisicamente, com o Filho do Homem, era tamborete de samba, gorducho e cambota. "Zabé de Luca", amancebo de um soldado da polícia, recebeu a dificílima missão de encarnar Nossa Senhora. Garibaldo do Carvão recebeu a tarefa de lavar as mãos, como Pilatos. Gigi Marreta, quebrador de pedra, encenaria o Centurião e pelo rolo dos braços, previa-se que Cristo levaria tanta peia no percurso que não necessitaria ser crucificado: morreria antes! Dois Filhos do Santíssimo foram sorteados para bom e mau ladrão, desfigurando, um pouco, a herança do Pai.

Fechada a questão sob força de cassetete e ameaça de xilindró, passou-se à parte de figurino, não menos complicada. Nossa Senhora enfronhou-se num vestido de chita vermelha, pouco condizente com o luto de mãe. Maria Madalena usava um vestido velho de noiva que já fora longo na dona, mas na discípula,muito mais alta, ficou pegando marreca, tipo minissaia. São José cobria-se com uma colcha de Chenile puída, aberta no meio com um buraco grande, por onde o santo enfiou o pescoço e deixou cair o pano. Pilatos envergava um saiote que não era,nada mais nada menos,que uma saia de farda do glorioso Colégio Estadual Godofredo Freixeiras de Matozinho. Complementando a indumentária, uma toalha de rosto encarnada, enrolada, em diagonal, do pescoço ao vazio e, na cabeça, um galho de mufumbo em feitio de louros. O Cristo carregando sua cruz pesadíssima de braúna, vestia-se, apenas com um fraldão mal-engembrado feito com caminho de mesa e amarrado na cintura por um torçal amarelo, arrancado das beiradas de uma cortina. Na cabeça uma coroa de espinhos de macaúba e o corpo todo untado de uma mistura de azeite de coco, k-suco de uva e colorau, em grandes prastadas.

Na Sexta-Feira Santa, depois de devorar seis tonéis grandes de Vinho São Francisco, o cortejo saiu percorrendo os três quilômetros que separavam o "Pau Dentro" de Matozinho. Uma grande assistência se foi formando com jeito de procissão. Chegando à Vila, o Cristo já vinha estafadíssimo de tanto peso de braúna e tanta lamborada no lombo. As pernas cambotas de Zabelê já pareciam quase um círculo perfeito e ainda tinham mais dois quilômetros para lombar, de subida íngreme, até a Serra do Carneiros, lugar escolhido para Gólgota. Alguns problemas terminaram por acontecer, coisa não de todo incomum em superproduções. O bom e mau ladrões capotaram antes de chegar a Matozinho com os motores encharcados de vinho. São José, piedosíssimo, já na cidade, deu uma topada numa pedra, que arrancou o chamboque do dedão e, perdeu todas as veias da santidade, não resistiu e gritou, para o desespero de Carlina:

— Puta que Pariu!

Ao chegar na cidade, tiveram que trocar o chicote de couro que o centurião carregava, por um cordão de enganador, sob pena do Cristo, simplesmente, não resistir. Na subida da Serra, alguém comentou em voz alta:

— Meu Deus, que sofrimento! O peso da cruz é tanto que as pernas de Cristo já envergaram e parecem até um bodoque!

Chegando ao momento crucial da Paixão, no alto da Serra dos Carneiros, na beirada de um barranco, os soldados deitaram a cruz e amarraram o Cristo. Os pés, pra juntar aqueles arcos, já foi um problema. Ataram-nos com umas cordinhas finas que tinham tirado do armador da casa de Carlina. As mãos, no entanto, tiveram que atar à cruz com umas embiras, por falta de corda. Depois, cavaram o chão e fincaram-na, com o Cristo semimorto, amarrado lá em cima.A turba,embaixo, aguardava junto com todo o cortejo artístico, ao ápice do espetáculo. O momento em que o Filho do Pai gritaria aquelas palavras em grego:

— "Eli, Eli, lemá sabactâni!" Pai, ó Pai, por que me abandonastes?

Aos poucos, o Cristo, encarnado em Zabelê, começou a se contorcer, mais do que se poderia esperar. É que formigas de roça, atraídas pelo açúcar do k-suco, subiram pelas canelas do profeta e começaram a picar mesmo ali por baixo do fraldão divino. Antes de gritar as palavras derradeiras, as contorções aumentaram, num realismo nunca visto, como se se tratasse de uma convulsão. De repente, no bole-bole, as embiras que atavam as mãos do Messias se quebraram. Com os pés amarrados, o povo o viu despencar para o chão, numa queda fenomenal, enquanto, do alto de todo o seu poderio, pedia uma ajuda totalmente inusitada:

— Valei-me, Meu Padim Ciço!

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