domingo, 10 de julho de 2011

O poder político no Cariri após a emancipação de Juazeiro

Centenário de Juazeiro do Norte # 88

Hoje lançamos mão de um tópico do livro Milagre em Joaseiro (Miracle at Joaseiro - tradução de Maria Yedda Linhares), escrito por Ralph Della Cava, historiador norteamericano.

O livro é um dos principais estudos sobre o mito religioso do Padre Cícero, e foi publicado originalmente em 1976 (pela editora Paz e Terra). O texto é a tese de doutoramento de Ralph Della Cava e uma das grandes referências em pesquisa sobre a atuação religiosa e política do fundador de Juazeiro do Norte.

O tópico escolhido para ser aqui reproduzido é o "Balanço do poder: Joaseiro e o Cariri", que integra o capítulo 9 ("Joaseiro no Plano Nacional"). No fragmento selecionado, o autor faz considerações sobre a importância política do Juazeiro e do Cariri no cenário político cearense entre os anos de 1914 e 1934, destacando a influência política de Floro Bartolomeu e Padre Cícero. Mostra também como o Crato e o Juazeiro dividiram uma liderança política e econômica no Cariri, fazendo com que a região virasse um ponto importante para as negociações políticas estaduais e até mesmo nacionais.
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Balanço do poder: Joaseiro e o Cariri
Ralph Della Cava

É inegável que Joaseiro lucrou, a curto prazo, com a “revolução” [a Sedição de Juazeiro]. No final de 1914, a Assembleia do Ceará deu ao município o estatuto de distrito judicial autônomo (comarca). Concedeu a Joaseiro, também, o seu próprio Juiz de Paz e um tabelião público (ou cartório de notas), talvez a instituição jurídica mais importante da República Velha. Em síntese, a revolução de 1914 completara, no mínimo, o processo de libertação de Joaseiro com relação ao Crato: a autonomia notarial e judiciária conquistada em 1914 confirmou a vitória política de 1911. Agora, em pé de igualdade, Joaseiro e Crato, apesar das repetidas tensões, assumiram a liderança conjunta do Vale. Barbalha, que tinha aspirado a essa participação com o Crato, entrou numa fase de longa decadência, da qual só começou a sair em 1960. No Crato, o cel. Antônio Luís também retomou o poder, na qualidade de prefeito e deputado estadual. A partir daí, sua amizade pessoal e aliança política tácita com o Patriarca e Floro foram muito importantes para evitar que se extravasasse o ressentimento do Crato, especialmente quando Joaseiro assumiu, gradativamente, a posição dominante que hoje ocupa na história contínua dessas duas cidades.

Entre 1916 e 1926, o eixo Joaseiro-Crato dominou o Vale do Cariri. Suas unidades do Partido Conservador deviam menos aos Accioly (como havia sido nos primeiros anos do século) do que ao prestígio político do Padre Cícero. Como vice-governador do Ceará (nas eleições de 1914, passou de terceiro a primeiro vice-governador), como líder real ou fictício da revolução, como distribuidor de favores políticos e de mão-de-obra barata em todo sertão, o Patriarca era coberto de deferência pelos coronéis do Cariri. Somente com seu conselho, eles nomeavam as autoridades locais, apoiavam os candidatos a deputado estadual e federal; e somente com o seu endosso eles solicitavam subsídios governamentais para obras públicas e desenvolvimento econômico. De fato, até 1926, foi concedido ao Patriarca, pelas instáveis coligações governamentais do Ceará, considerável mandonismo local em troca de seu apoio e patrocínio eleitoral. Em contrapartida, o Patriarca — ladeado por Antônio Luís e Floro Bartolomeu — usou sua influência em prol do Joaseiro e do Vale do Cariri.

Não resta dúvida de que o Cariri tinha, finalmente, alcançado um considerável poder de barganha dentro da política cearense. Durante as quase quatro décadas anteriores recebeu poucos benefícios de Fortaleza. Seus impostos, entretanto, destinavam-se a asfaltar e a iluminar as ruas da capital, assim como fornecer à classe média de comerciantes do litoral esgoto, água potável, bondes, teatros, novas igrejas, luxuosos clubes particulares, hospitais, clínicas e cinemas. O Cariri, durante muito tempo, clamou contra essa desigualdade, o que explica, em parte, por que os comerciantes do Vale sempre preferiram negociar com a praça de Recife. O porto de Recife, por estar mais perto da Europa e do Sul industrial do que Fortaleza, oferecia mercadorias a preço mais baixo; maiores facilidades de transporte dentro de Pernambuco reduziam os custo do comércio de varejo no interior. Apesar do comércio natural que existia entre o Vale e o litoral pernambucano, era o poder político e fiscal da eqüidistante Fortaleza que muito tirava do Vale e pouco retribuía.

Tal disparidade parece ter sido um fator importante para a participação do Cariri na revolução de 1913-1914, que deve ser compreendida hoje, com o recuo do tempo, não como um conflito entre “uma cultura sertaneja atrasada” e “o litoral civilizado” mas, sim, como uma tentativa do Vale no sentido de aumentar sua cota de “civilização”, poder e resultantes benefícios materiais. A chamada “sedição” não foi, pois, uma revolta para destruir a estrutura de poder do estado mas, antes, o meio violento expressamente utilizado para obter maior participação naquele sistema, compatível com a contribuição do Vale ao progresso do Ceará. Que esta ambição tenha sido parcialmente frustrada explica o fato de persistir até hoje sentimento regionalista. A origem e a sobrevivência desse sentimento coincidiram com uma noção significativamente mais ampla de “regionalismo nordestino” o qual, começando na década de 1920, traduziu as reivindicações dos habitantes do Nordeste árido por uma participação maior na crescente prosperidade do país. Tanto no Cariri como no Nordeste, este movimento acompanhou, paralelamente, o surgimento do nacionalismo através do Brasil, no qual Padre Cícero também teve um papel a desempenhar.

Por enquanto, importa saber que, logo após a revolução, a influência do Patriarca, política ou qualquer que ela tenha sido, estendeu-se com rapidez dentro do Cariri e em outros estados do Nordeste, justificando assim a assertiva, já tantas vezes repetida, de que Joaseiro era o maior reduto político do Nordeste. Nos estados vizinhos de Pernambuco e Paraíba, por exemplo, até mesmo longe, como Alagoas (de onde vieram tantos romeiros de Joaseiro), poucos eram os candidatos para os cargos políticos que não pedissem o patrocínio do clérigo. Coube aos próprios governadores do Ceará pagar à sua influência o tributo mais elevado. A partir de 1917, três dos quatro governadores eleitos anteriormente a 1930 fizeram uma “peregrinação” pessoal a Joaseiro, depois das quais as fotografias tiradas em companhia do Patriarca constituíram um dado importante na literatura da campanha eleitoral. Mesmo após a morte do Padre Cícero, em 1934, candidatos e políticos continuaram a visitar o túmulo do Patriarca; muitos chamaram a si mesmos de “romeiros do meu Padim” com olhos voltados para os votos dos fiéis do “santo do Joaseiro”.

A base da influência política do Patriarca estava, parcialmente, no seu prestígio religioso junto às classes inferiores. Em grande parte, provinha da atividade constante e da ambição de Floro Bartolomeu, e era por elas alimentada. Floro, após sua breve atuação como presidente da Assembleia Legislativa do Ceará (1914-1915), foi reeleito deputado estadual na legislatura de 1916-1920. Em 1921, obteve a cadeira de deputado, como “independente” (pelo Cariri) na Câmara Federal, para a qual fora derrotado nas eleições de 1916. Floro exerceu seu mandato federal até sua morte prematura em março de 1926. É forçoso acrescentar que seu falecimento marcou o começo do fim político do Patriarca, prova evidente de que, sem Floro, o título honorífico de “maior coronel do Nordeste brasileiro” jamais teria sido conferido ao Padre Cícero.

Com o desaparecimento de Floro, Padre Cícero tentou, desesperadamente, nomear um sucessor, Juvêncio Santanna, o primeiro Juiz de Joaseiro, afilhado do Patriarca e filho do conhecido chefe de Missão Velha. Mas o insucesso do Patriarca deveu-se à decisão dos dois partidos de acabar com a posição de “terceira força” que o Cariri desfrutava nos assuntos do estado e, dessa forma, negaram apoio a Santanna. Ora, os interesses do Vale, decidido em manter a posição vantajosa do Cariri, obrigaram o Patriarca a ser o próprio sucessor de Floro, o verdadeiro construtor do reino político do Vale. Em maio de 1926 o Patriarca venceu, facilmente, a eleição para a Câmara Federal. Mas, devido à sua saúde precária, à pouca inclinação e às severas críticas que se amontoaram sobre a sua candidatura, partidas dos políticos litorâneos desgostosos, o Patriarca jamais tomou posse na sua cadeira. Apesar disso, sua decisão de ceder momentaneamente aos desejos dos chefes do Vale salvou o Cariri da decadência que lhe havia sido reservada pelos ambiciosos políticos profissionais do litoral. Dois anos mais tarde, o Patriarca, apesar das suas más condições de saúde, a ameaça de cegueira e a sua idade avançada (tinha 86 anos), tentou mais uma vez reunir o eleitorado em torno de Juvêncio, sua própria escolha para a Câmara, bem como a do Cariri. Nisso também falhou, e a nomeação de Juvêncio para secretário do Interior e Justiça, em 1928, foi arquitetada em Fortaleza para recompensar o Cariri pela perda de um lugar no Legislativo Federal. A revolução de Getúlio Vargas, em 1930, no entanto, completou, simbolicamente, a rápida destruição (a partir da morte de Floro) do Padre e da influência política direta do Cariri: o novo prefeito de Joaseiro, nomeado pelo governo revolucionário, mandou retirar da Prefeitura o retrato do Patriarca. Tal fato, que feriu profundamente o octogenário, representou o fim simbólico de uma era da história política do Nordeste brasileiro. A morte do Padre Cícero, em 1934, embora desse motivo à apoteose do “santo do Joaseiro” por parte dos pobres, dos humildes e dos fiéis, foi, em termos políticos, um anticlímax.

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