domingo, 24 de janeiro de 2016

Poesia e letra de música



por Amador Ribeiro Neto

Há uma tradição na música popular brasileira de explorar um modo de cantar calcado nas entonações da fala. Aquela coisa da ginga do malandro de morro vem daí e faz escola na nossa MPB a partir de Donga e a gravação do nosso primeiro samba, “Pelo telefone”, em 1917. Chega a 2016 na interpretação tão malandra quanto original de Zeca Pagodinho e Criolo. Este balanço maroto que a voz cantada surrupia da fala é bem diferente dos dós-de-peito dos tenores que acham que cantar bem é estourar tímpanos dos ouvintes de música popular.

Mas o que nos interessa é aquela coisa da ginga, do molejo, da musicalidade que habita a fala de cada um de nós. Sabemos que a entonação da fala possui um tipo de musicalidade. Alguns músicos sacaram muito bem isto. Noel Rosa foi um deles. Com seu jeito macio de falar, com o fio de uma voz fraquinha que vinha de um pulmão doente, o compositor de “Feitio de Oração” inovou a interpretação em nossa MPB, além de fazer escola. Mário Reis, e depois João Gilberto, souberam muito bem desafinar o coro dos tenores. Inventaram uma nova maneira de cantar incorporando a tecnologia do microfone, que amplia a voz e dispensa os contorcionismos pulmonares.

Noel talvez seja nosso primeiro intérprete bossa-novista. Nara Leão alcunhada de “os joelhos que cantam” (tinha belas pernas, era tímida e cantava “cool”) renovou o modo de cantar popular entre nós. Sua interpretação sensível e miúda, aliada a um repertório engajado com o que melhor se fazia na época, deixa saudades, além de boas e bons herdeiros, felizmente. Pena que ao ser substituída no espetáculo “Opinião” (em 1964) pela estreante Maria Bethânia, a garra-carcará do modo de cantar atarracado aos pulmões tenha voltado à moda. Bethânia musicalmente é uma anti-Nara. Enquanto para a primeira cantar é interpretar stanislaviskamente, para a segunda o canto é sempre brechtniano. Ou seja: Bethânia enche os pulmões e solta a voz em todas as direções, atingindo e estremecendo quem estiver na área. Nara é parcimoniosa: seu canto é produto de um ato de contenção e elaboração cerebral da voz. A emoção é filtrada pelo rigor de um canto-falado. Nara canta como quem está pensando, tal como nos versos de Fernando Pessoa: “o que em mim sente está pensando”. Síntese de razão e emoção.

A poesia, num primeiro momento, ao ser fixada no papel, dispensou a memória e a oralidade. Cristalizou-se em formas fixas e começou a emaranhar-se num círculo de formas e sentidos vários. O papel agora fazia o que a memória não permitia: guardar termos e ritmos arqui-irregulares, elencar expressões até então só dicionarizadas, realçar os esdrúxulos como requintes poéticos. Era a hora a vez da poesia empolada, palaciana, cheia de volteios e lero-leros.

Felizmente este foi apenas um momento. Embora, de tempos em tempos, poetas insistam na acepção de que fazer poesia (e muitas vezes prosa, e até crítica literária) é embolar o meio de campo do texto com metáforas cifradas ou jogos de palavras numa colagem “nonsense”. De repente, aquela besteira fácil e inconsequente que os surrealistas denominaram “escrita automática” vira moda entre os incompetentes que querem “fazer” literatura ou “crítica” literária.

Por sorte sempre tivemos autores que romperam com o círculo fácil do preciosismo verbal enquanto qualidade literária. Na época colonial, Gregório de Matos é um grande exemplo da poesia que se apropria da oralidade da fala sem comprometer minimamente a fabricação do texto poético. Não é à toa que ainda hoje nós o lemos com muito deleite.

Indo além do período barroco encontramos outros poetas que prezaram a oralidade enquanto qualidade estética. Tomás Antônio Gonzaga, com Marília de Dirceu e Cartas Chilenas. Álvares de Azevedo com Lira dos Vinte Anos. Cruz e Sousa com Broquéis. Augusto dos Anjos com Eu. Todos eles foram oásis de respiração oral em meio a uma enxurrada de beletrismos. A partir de 1922, com os modernistas, a literatura se deu conta de que, para ser boa, uma obra não precisa desprezar a fala.  Pelo contrário: a oralidade garantiu a qualidade de muitos poetas modernistas, como Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. Drummond veio logo depois e foi logo reclamando da pedra no meio do caminho que uns parnasianos anacrônicos queriam ressuscitar. E que finalmente ressuscitaram com a geração de 45, exceção feita ao grande João Cabral de Melo Neto, inserido nesta geração apenas cronologicamente. Cabral radicalizou a fala em Morte e Vida Severina e em Dois Parlamentos. Mas dela nunca abriu mão. Talvez fosse um bom tema de reflexão: o rigor de uma forma valéryana associado a uma oralidade não menos radical.

A partir da produção dos modernistas, e até nossos dias, oralidade está ligada ao que há de mais experimental em nossa poesia.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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