por Amador Ribeiro Neto
Aqui na Paraíba temos uma geração de poetas que começa a publicar nos anos 2000 e já prima pela excelência de qualidade. A esta produção estou nomeando- a “novíssima poesia paraibana”.
Há vários nomes de peso. E a antologia que estou organizando, com o recorte acima, deve retratar o que se produz em nosso estado hoje.
Na presente coluna vou ater-me a três nomes, motivado por seus recentes lançamentos. De cada poeta transcrevo três poemas.
1. Edypo Pereira
A poesia de Edypo Pereira tem a manha de ser leve e certeira. Não faz rodeios. Pega o leitor. Prende-o. E dá-lhe um banho de prazer. Não sem, antes, pregar-lhe um bom susto. Sim, este poeta não faz concessões às facilidades. Não ajuda o leitor a ser beócio. Antes: sacode-o pelos colarinhos, pela gola da camiseta. E lança-lhe, no peito, o corpo de uma poesia encorpada.
De uma poesia que pega o leitor e o conduz a caminhos inusitados. Ainda que usuais. Sim, Edypo toma o mais usual como matéria viva e cortante de sua poesia. E o converte, subverte, advertindo o leitor de que o bom é também prazeroso e pode divertir. Além de fazer pensar.
Sim, esta poesia é leve e aguda, faz rir e refletir. Seduz e escoiceia. Não há como fugir de seu domínio. O leitor vai perceber que um poema abre-se para outro e que há uma trama de linguagem e de sentidos que é muito atual. Que é dinâmica. Que não deixa a peteca da qualidade cair. Qualidade entendida como trabalho com a palavra. Trabalho tão bem feito que chegamos a pensar que esta poesia é feita por um espontâneo digitar na tela do computador. Como se Edypo escrevesse e dissesse: é isso aí, está pronto.
É tão fluente, tão apaixonantemente engendrada, que o possível peso de sua construção dilui-se. Rarefaz-se. E fica o sólido da imagem, do som, da ideia girando na cabeça e no coração da gente. Uma poesia que dá o recado e nos provoca. Por isso, o poeta não hesita em valer-se tanto de palavras de baixo calão como de palavras da alta tecnologia. Não importa o universo semântico. Importa o que ele faz com a palavra. O mundo é esta carnavalização entre o baixo e o alto, o sujo e o sublime, o remendado e o inconsútil. A poesia é a linguagem singular. Aquela que estremece a cabeça e o coração.
Por isso mesmo Edypo Pereira lança sua ágil poesia para leitores espertos. Antenados. Aqueles ligados no aqui e agora. Amor, humor, rancor, despavor. Enfim, uma poesia intensamente século XXI. Pra ler e vibrar. Bem-vindo Turbolento (Ed. Penalux).
contato
ói
ói o disco
fazendo
ziggyziggyziggyziggyziggy
hora parece star distante
(ou)tra posso escutar
um tom major
você pode ouvir?
oficina da ideia
primeiro vem martelada
no hipotálamo
crashcrashcrashcrashcrash
como se eu tivesse tatuado
na cabeça
cuthere
passa
o tempo inteiro
serrando o crânio
vrukumvrukumvrukumvrukum
picareta
de onde ela veio
&
pra onde ela vai
não sei dizer
juízo final
no telão de led do juízo final
a humanidade saberá
que você nunca fez
poemasgoodvibes
sal e espeto nas mãos de mefistófeles
aguardando a carne
vai rolar
canibalismopoemofágico
na casa de satanás
2. Expedito Ferraz Jr.
Expedito, desde sua estreia com Poheresia, já se firmara como poeta que tem o que dizer. E, mais que isso, sabe como dizer o que quer, o que deve, o que merece ser dito. Antenado com as coisas da literatura, e arguto observador do cotidiano, com este seu novo livro reafirma a pegada certeira e lírica de sua poesia.
Como poucos – como os grandes sabem fazê-lo –, ele imbrica o lirismo mais sublime a um lirismo social que denuncia as fragilidades e as fragmentações da vida – social ou entre quatro paredes. O eu-lírico, perspicaz quanto sagaz, tanto veste como despe-se, das manhas, manias, saliências e reentrâncias da vida e da representação dela, via palavra.
Nesta poesia a linguagem é o vetor que nos conduz ora por estreitos, ora por largos caminhos, em linha reta ou labirintos, divisando a ampla geografia aberta ou os claustrofóbicos emaranhados de sombras. Uma poesia limítrofe entre a afirmação e a negação, sem ater-se à amarra dos valores. Uma poesia que vence as mordaças, sociais ou pessoais, para avançar rumo a uma expressão que diz o não dito, que capta o pouco – ou nada visto –, que flagra a fragrância do volátil, dissolvendo-se do concreto. E nos devolve a ele em eterno retorno.
Uma poesia que engendra outra máquina dentro da máquina usual do mundo. Por isso mesmo, ler Expedito Ferraz Jr. é adentrar na densa floresta de signos que a vida, a linguagem e a poesia nos oferecem. E para a qual, estamos pouco – ou, quase sempre – nada atentos.
Por isso mesmo esta poesia é um chute na canela da mesmice, da pasmaceira, do rol beócio de estar e reagir segundo controles remotos autoprogramáveis. Ela cava um abismo face às seguranças e certezas do leitor. Deleta o conhecido. Detona o dèjá-vu. Abre abismos aos pés de cada um. E anuncia uma possível ponte, que somente ao leitor atento é dado perceber.
Por isso mesmo, cativa, apaixona e prende o não hipócrita, o gêmeo, o irmão que está farto do conhecido, surrado, repetido. Aquele que, por sentir fome e sede, não teme imiscuir-se no visgo da vida, no visgo das coisas. Lambuzar-se de poesia.
O livro está dividido em duas partes – uma com poemas inéditos e outra com poemas (alguns revistos) que compõem Poheresia. Reunir parte dos poemas de livro de estreia ganha relevância ao deixar claro que o poeta, ainda que com apenas dois trabalhos, já é o feliz proprietário de uma dicção própria, um modo de alinhar-se dentro da produção contemporânea – aquela composta pela mais expressiva poesia de nossos tempos. Em ambos os livros, a verve sublime e irônica, a contenção e contenção verbais ao lado dos poemas mais discursivos, a espacialização vocabular, os trocadilhos vívidos e, de fato, inusitados – quer seja, criativos – o verso intratexto, intertexto e extratextual. Resumo da ópera: um poeta que sabe o ofício do verso e não abre mão da emoção de exercê-lo com finesse e humour. Bem-vindo O visgo das coisas (Ed. Penalux).
Desconcerto
um quarteto
de cordas
um arranjo
de flores
um solo
infinito
Brinde
dois copos
ocultam
um
mesmo luar
no
espaço
O visgo das coisas
Tempo em que, pra ter ensejo,
o ser das coisas carecia
de se valer da alma dos bichos
ou de pessoa humana
(modo de sedizer).
Máquina-de-escrever, por exemplo:
pra quê? pra quem?
Mas, quando deu fé,
ela sorrindo tanto dente,
muito que brancos,
foi ficando ali que ficou sendo
máquina-de-sorrir-ainda-que-todavia.
Guarda-chuva também, resignado,
em surdo haver de ser ave noturna,
recolhido em si, mofino, desalado,
sem uso sem asa sem voo sem chuva sem chão,
dormindo pendente, no esquecido
de nunca ter sido morcego,
antes a flor enlutada,
o agourento corvo
e nunca bengala,
e não sequer seu guia
Dos bichos alados, porém,
o janelão era o demais vivente,
suas venezianas costelas azuis
assoviando sempre e sempre,
e o grande par de asas
que se rebelava alguma vez,
mas só quando o vento suscitava,
como um gesto da mão
responde em sestro
ao zoom da escuridão de um pensamento
e sofrendo e sofrendo a deslembrança
de um talvez antigo voo.
tempo em que, por ser espelho,
o visgo das coisas padecia
mísero de luz, que é sem o que
sequer as réstias das orquídeas crescem,
nem as mandalas das aranhas acontecem.
3. Guilherme Delgado
Estrear com um livro consistentemente estruturado, sob o ponto de vista formal, e com uma gama admirável de significados, é coisa pra poucos e raros. E Guilherme Delgado está entre eles.
Dividido em duas partes, simetricamente compostas num geometrismo espe(ta)cular, o livro é coisa de poeta que faz sabendo muito bem como se faz bem, como se faz bonito, como se faz gostoso. Sim, porque esta poesia, sendo cabeça, é também estômago e coração. Sensibiliza e emociona porque pega o leitor pelo cerebralismo, pelo sublime – e por ambos. Sorte de quem sabe (é capaz de) recebê-la.
São vinte e dois poemas. Onze em cada campo. Digo, em cada seção. Por isso mesmo a explicitação verbal do título torna-se desnecessária – porque redundante. Basta o sinal gráfico dos dois pontos. Eles explicam tudo. Não é isso ou aquilo. Nem isso e aquilo. Nem aquilo ou isso. Nem aquilo e isso. São dois pontos. Sem nada antes nem depois. Instigando o leitor a pensar, a sentir. Convidando-o a ser copartícipe. A tomar o livro nas mãos, na mente, na emoção, na elaboração. O livro em sua unidade.
Esta dinâmica reverbera clara na primeira seção, intitulada “caligrafias”, em que poetas, ficcionistas, ensaístas, e até um diretor de cinema, surgem reciclados em suas biografias pessoal e intelectual.
Guilherme Delgado recicla de dentro. Penetra o corpo da vidobra de cada artista – e, uma vez nele, solta a poesia (do Guilherme) pra dentro da vida de representação de cada um deles (dos artistas).
Então, o gozo do texto do próprio poeta soma-se, em parcelas matemático-simétricas, ao prazer do texto do artista eleito, presenteando o leitor a soma das frações fractais.
Tal processo, planejadamente in progress, conduz à fruição de sins, nãos, talvez. Entregas e dissimulações. Lances dos lados de dados que, per se, desenham a poesia que se fabrica – e que se concebe enquanto plurívoca: música, imagem e significado no mesmo quadrado.
A segunda seção, intitulada “aqui o eco”, reverbera as obras e seus artistas da seção um, não mais reciclando, mas como produto acabado e final da poesia deste novo poeta. Tempo de conhecimento da dicção poética de Guilherme Delgado e seu tônus poético de densa materialidade.
Se antes o poeta imiscuía-se na dança instigante da conversa entre homens inteligentes, agora coloca sua voz no alto-falante e proclama de si, per si, por si.
Eis a voz do poeta. Eis seu livro de estreia. Que nos chega grande. Parcimonioso, mas exato. Denso. Leve. Delicioso. Deixando aquele gostinho de quero mais. Aquela vontade de já ler o livro que ainda vai chegar. Assim se faz poesia. Assim nasce um poeta. Bem-vindo : (Ed. Patuá).
caligrafia para haroldo
leio um livro e livro-me viro o livro lido e lido comigo até me ver livre
que lendo-me no outro torno-me outro ou isto sou esse um ao outro que
por força do hábito a um outro habito um outro que não se sabe mas desconfia
que é sentido pois sinto que se isso não é tudo na vida ao menos é delícia pros meus
sentidos posto que livre também livro se ao espelho shhhh rosno àquele
acumulador cínico para que doe outro de seus tantos livros lidos e nesse seu doar
nesse ser-se seu sem mim doa a semente de si ou simplesmente o eu le livre
que mallarmé não leu livro-lenda livro-infinito livro que ele legou a quem lê livre
de livros e um livro relido por dois leitor amigo já são dois livres a ler livros
VI
A fala é falo
afiado
trespassa a fenda
do grito
ampara o silêncio
tesado
faz filtro de ruídos
rimados
tem raiva mas ri
se relaxa
desembaraça
o pelo-novelo
quebra o gelo
calado
e ainda hoje
tem o seu apelo
preservado
pois haja o que
houver
ver é ágil
XI
Julgado
pronto
acabado
definitivo
julgo
Aponto
o dedo
deduro
o próprio
punho
Ponto
* * * * *
Eis um café pequeno da poesia que se produz hoje na Paraíba. Não nos faltam motivos de satisfação e orgulho.
____
Publicado pelo Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, em janeiro de 2018, ano 68, nº 11, p. 08-11, na coluna Festas Semióticas.
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular aposentado do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica), Barrocidade (poesia) e Poemail (poesia). Mora em João Pessoa (PB).
Textos mais recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- ‘Para quando’, de Kaio Carmona
- ‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho
- ‘Identidade’, de Daniel Francoy
- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido
- Tudo (e mais um pouco)
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