sábado, 13 de junho de 2020

9 (+1) poemas de Fernando Pessoa e alguns de seus Outros Eu(s), por Flávio Queiróz



por Flávio Queiróz

Fernando Antônio Nogueira Pessoa (*13.06.1888 +30.11.1935): poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político português. Nele 1 é  um número múltiplo...

Nesse contexto, interessa-nos o POETA lírico, épico, dramático, saudosista, nacionalista, Português e Universal!

A Obra Poética de Fernando Pessoa pode ser estudada a partir de três aspectos:
1.Textos Ortonímicos: aqueles escritos com o próprio nome.
Mensagem é o único livro escrito e publicado por Ele/Si mesmo em português (1934).

2.Textos Heteronímicos: escritos com outros nomes, poetas com biografias, características e estilos diferentes do Fernando Pessoa. Destacamos três:
* Alberto Caeiro
* Ricardo Reis
* Álvaro de Campos.

3. Textos Semi-heteronimicos: neste caso o poeta, apesar de assumir Outros Nomes, mantém traços característicos de Fernando Pessoa quando escreve.
* Bernardo Soares, um dos autores de uma das obras pilares da Prosa Moderna em Língua Portuguesa, é o principal responsável por mais uma estratégia literária inimitável de Fernando Pessoa.

E, para aprofundar ou se conhecer mais sobre o que falamos até aqui, deixo uma bibliografia para iniciantes; um livro que aborda boa parte da Obra Poética; e um terceiro para quem deseja uma Leitura Crítica do Autor(es) e da sua produção literária.

1.Para Iniciantes:
Margens do Texto / Fernando Pessoa, de José de Nicola e Ulisses Infante. Editora Scipione (1995).

2.Literária:
Fernando Pessoa / Obra Poética, volume único. Companhia Aguilar Editora (1965). Organização, Introdução e Notas de Maria Aliete Galhos.

3.Crítica Literária:
Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa, de Fernando Cabral Martins. Editora Assírio & Alvim (2014).




E sem colocar um ponto final (não sejamos tão dogmático, pedia o próprio Poeta, ao tratar de sua obra), deixamos 9 (+ 1) POEMAS de Fernando Pessoa e alguns dos seus Outros Eu(s):


1. “Ulisses” (Fernando Pessoa)O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo —
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

*


2. “O infante” (Fernando Pessoa)

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

*


3. “Mar Português” (Fernando Pessoa)

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena?
Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

*


4. “Nevoeiro” (Fernando Pessoa)
 

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

                Valete, Fratres.

*


5. “Autopsicografia” (Fernando Pessoa)

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

*


6. “Isto” (Fernando Pessoa)
 

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

*


7. “Poema em Linha Reta” (Álvaro de Campos)
 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

*


8. “Segue teu Destino” (Ricardo Reis)

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

*


9. “Há metafísica bastante em não pensar em nada” (Alberto Caeiro)

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

*


+1. “Emissário de um Rei Desconhecido” (Fernando Pessoa)

Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
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QUASE TODOS os poemas citados e outros não citados podem ser encontrados no YouTube, com  belas interpretações de atores, cantores, poetas e intelectuais do Brasil e de Portugal.

Apresentamos dois desses vídeos:

“Autopsicografia”, com Paulo Autran:


“Segue teu Destino”, com Maria Betânia (música de Sueli Costa):

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Flávio Queiróz: Professor das Disciplinas Literatura Portuguesa III e Introdução à Obra de Fernando Pessoa, no Curso de Letras da Universidade Regional do Cariri (URCA); Professor, Cronista e estudioso das influências ibéricas na leitura regional, assunto que o levará a uma viagem de estudos por terras lusitanas em 2021; publicou diversos trabalhos na área de Literatura e Cultura. Tem um livro publicado: Escrever de verdade: práticas de produção textual (2014).
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Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
9 (+1) poemas de O Belo e a Fera, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)
9 (+1) referências do Design Cariri, por Fernanda Loss
9 (+1) discos preferidos do rock internacional, por Michel Macedo
9 (+1) importantes obras de filosofia, por Camila Prado
9 (+1) artistas visuais contemporâneos, por Adriana Botelho
9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins
9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira
9 (+2) contos de Rubem Fonseca para ler, por Elvis Pinheiro
9 (+1) filmes para assistir na Netflix, por Wendell Borges



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quinta-feira, 11 de junho de 2020

Divulgado o resultado do Edital Cultura em Casa pela Secretaria de Cultura de Juazeiro do Norte



A Secretaria de Cultura de Juazeiro do Norte divulgou o resultado final do Edital Cultura em Casa. A chamada pública trata-se de credenciamento de artistas, grupos artísticos, produtores e técnicos da cultura para apresentação em plataformas digitais e/ou online.

Confira o resultado clicando no link abaixo:

https://bit.ly/editalculturaemcasa

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quarta-feira, 10 de junho de 2020

9 (+1) poemas de ‘O Belo e a Fera’, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)



Neste dia 10 de junho, data em que nasceu o poeta cratense Geraldo Urano (ou Efe, ou Lima Batista, ou Gandhi, ou Mérkur...), em 1953, nossa editoria inaugura uma perspectiva diferente das Listas O Berro 9 (+1), com a nossa própria equipe apresentando uma seleção de poemas do livro O Belo e a Fera (cantigas), lançado originalmente em 1989, com a assinatura de Lima Batista.

Em 2015 a obra de Geraldo Urano foi reunida e editada no volume O Ferrolho do Abismo, com design gráfico do Estúdio Caravelas e prefácio da poeta e professora Cláudia Rejanne. No dia 5 de fevereiro de 2017, Geraldo fez sua viagem para outros planetas, deixando como legado tantas histórias e poesias.

A imagem em destaque nesta postagem é uma ilustração de Reginaldo Farias, a partir de fotografia e desenhos do poeta (estes últimos incorporados ao design de O Ferrolho do Abismo) e a capa original do livro O Belo e a Fera.


Livro O Belo e a Fera (cantigas), de Lima Batista

Prefácio

O Poeta chega ao dia em que desperta e tem a certeza de que nunca adormecera. Olha o Sol e inicia um caminho de alguns poucos passos para beber na fonte cuja água lhe molha os pés, enquanto no peito dói a ânsia de sobrevoar o Universo, sem pátria e muito menos pouso certo.

Uma manhã de junho. Na Serra, esperança afoita, donde trinam pássaros coloridos, nas flanelas das bananeiras. O gado pasta indiferente ao triturar das moendas dos engenhos em começo de moagem. E as águas descem gorgolejantes as lajes da Cascata.

Frio bom, brisa gostosa e a música do estio. Uma solidão cúmplice a falar de planos maiores em elaboração na mente de Deus. O homem e a espera, qual centauro que abrisse os olhos pela primeira vez. Vê o Vale que desce das encostas, indo repousar lá embaixo, nas cidades esdrúxulas; minutos que voam em farejo do novo que nasceu.

O Cariri traz, em Geraldo Lima Batista, a escrita da renovação, mais do que poesia, vigília e certeza, aviso de preparação do Futuro.

José Emerson Monteiro Lacerda
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meu amigo geraldo,

acabei de brincar lendo teu livro. e que brincadeira gostosa e tranquila é sentir o encaixe perfeito das tuas palavras. essas palavras são nossas. são palavras de um mundo mágico que você sabe muito bem encontrar no meio de tantos truques baixos.

a vida tem disso. às vezes você recebe um soco por sobre o estômago. é um golpe seco e cruel. às vezes nós encaramos o algoz e partimos para um próximo e infinito round. às vezes nós vamos a nocaute técnico ou violento, humilhante e injusto, mas nunca definitivo.

imagine muhammad ali numa esquina de new york ou de mauriti distribuindo sorrisos em vez de socos, nocauteando a espera, pois quem sorri não tem o que esperar.

é, brother, só nos resta sorrir diante da baixaria. isto é uma arma. e como diz o poeta: uma arma muito quente.
do seu amigo,

carlos rafael dias
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9 (+1) poemas de O Belo e a Fera (cantigas)

os ladrões estão satisfeitos
com a terra nua
todos os poderes
tiram partido dela
políticos artistas e religiosos
fazem loteria de suas vestes
mas não tarda
o dia da verdade
não tarda a hora da justiça


*


o sino está tocando
nada de novo no manicômio
ela tem lábios encarnados
pergunta quando vou fugir
escrevo seu nome na parede
meu anjo
qualquer dia nós vamos sair


*


antes que eu te chame escandalosa
vê se achas uma rosa
deixa o sol entrar
adeus cidade de detroit
vou embora pra chicago
apenas outro lugar
a outra é não me toque
te abaixes nova iorque para o luar passar


*


és como um tigre minha flor de roma
lirismo meu
ou quem dirá que sonhas?
a semana passou
como um cavalo veloz
como uma flexa passou por nós
se eu fosse um bicho
eu não teria sábado
amo israel
saí do mar procurando o céu
meu anjo
essas coisas de menestrel


*


escuta o vento
tu que és inspirado
elas não vão mal?
se aborrecem com a claridade
não és tu que és desajeitado
que só sabes passar mal
é a noite que invadiu o dia
melhora!
lava o teu rosto na pia


*


não sei de nada
não digo nada
nem nadar eu sei
mas sai do meu caminho
tu que és violento
ladrão de ninhos


*


o destino cruel de um país
confusão na praia
hotéis vazios
a juventude castigada
do noticiário sai fumaça
a paz de cachimbo
some por entre dedos nervosos


*


as condições históricas
a distribuição geográfica das raças
os sobradões coloniais
o amarelo da ásia central
tudo é caleidoscópio
eu consulto o relógio
quando se quebrará o espelho?
nada a contar
a não ser cacos prá todo lado


*


lorena sabe o que é
ser nesse tempo mulher.
atirei o meu anzol
para pescar um sonho
pesquei o abandono.
quando o futuro vier
não quero estar tão nua
as multidões carentes
no modernismo das ruas.
o grito do tucano
no domingo pernambucano
lorena sabe o que é
ser nesse tempo mulher
é bolero prá um deus
por telefone um adeus.
sempre ouvindo o vento
guardado o velho senso
no céu o sol e a lua
na terra a vida crua.


*


o planeta amarelo está em brasa
são os vulcões que se espalham
se eu dissesse
as moças de saigon
caminham pela noite azul da ásia
estaria mentindo
a primavera agora é só verdade
quem deterá os oceanos?
ou impedirá os rigores do inverno?
e essas cidades
para onde querem ir?
que crescimento besta é esse? 
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Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
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segunda-feira, 8 de junho de 2020

9 (+1) referências do Design Cariri, por Fernanda Loss



por Fernanda Loss

Traçar os limites do que é ou não design é uma tarefa complexa. Por isso, adaptei o pedido de “falar sobre Design Cariri”, e selecionei 10 referências daqui que compõem meu repertório visual. A escolha foi feita a partir do que me provoca, e tangencia o design em suas diversas vertentes.


 
1. Ladrilho hidráulico: a Fábrica de Mosaicos de Seu Jaime em Barbalha, fabricou padrões que estampam o piso de muita casa e prédio público no Cariri. O que me chama a atenção além das cores e formas é a possibilidade de diferentes composições com módulos que o ladrilho hidráulico possibilita.


 
2. Tipografia vernacular do Juazeiro: o centro do Juazeiro possui um arsenal enorme de letreiros populares estampados nos seus comércios. É um material rico para pesquisa e desenvolvimento de tipografia.


 
3. Cores da Chapada: a natureza no Cariri é a dinâmica, a mesma trilha da chapada vai apresentar paisagens diferentes em cada época do ano.


 
4. A Joia do Leo: o trabalho de Leo é incrível! Ele desenvolve peças primorosas utilizando metal e pedra kariri. É um joalheiro contemporâneo que se destaca por suas peças artesanais com acabamento delicado.


 
5. Indumentária do Reisado: o movimento das fitas coloridas e o reflexo dos espelhos da roupa dos brincantes de reisado produzem um impacto visual fortíssimo.


 
6. Fotopintura de Telma Saraiva: as imagens fantasiosas das fotopinturas de Telma são resultados de um trabalho minucioso. Para obter as imagens que vemos em sua obra, a artista se debruçava por um processo cheio de etapas, em que ela dominava cada técnica sem perder a liberdade criativa.


 
7. Ex-voto: os ex-votos que encontramos no Horto são uma representação visual da fé. Eles simbolizam uma graça alcançada ou um desejo de cura. É o símbolo de como um artefato ganha valor pelo significado que damos a ele, ou seja, trata da nossa capacidade subjetiva de dar sentido às coisas.


 
8. Espedito Seleiro: Espedito pega um saber tradicional, que aprendeu com o pai, e consegue inovar. Ele cria novos modelos de sandália e também aplica a técnica que ele domina tão bem em outros produtos, como almofadas, cadeiras, etc.



9. Stênio: o artista Stênio Diniz, além de ter feito parte do movimento da contracultura na década de setenta no Cariri, tem um papel muito importante na história editorial e gráfica brasileira ao estampar capas de cordéis com suas xilogravuras.


 
10. Zine o Berro: o fanzine do Berro foi meu primeiro contato com uma publicação independente. Eu tinha alguns exemplares quando estava entrando na adolescência, e achava incrível ver um impresso produzido por pessoas do Cariri, e que mostrava a cena artística local.
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Fernanda Loss é designer caririense. Formada pela UFPE, foi no Pernambuco que se apaixonou pelo carnaval. Há oito anos trabalha no Estúdio Caravelas.

Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
9 (+1) discos preferidos do rock internacional, por Michel Macedo
9 (+1) importantes obras de filosofia, por Camila Prado
9 (+1) artistas visuais contemporâneos, por Adriana Botelho
9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins
9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira
9 (+2) contos de Rubem Fonseca para ler, por Elvis Pinheiro
9 (+1) filmes para assistir na Netflix, por Wendell Borges
10 (+1) livros de escritoras que me tocaram, por Dia Nobre



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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Que saber é esse?



Poesia não é questão de verso, pressupõe trabalho, racionalização, construção e, principalmente, um saber. É o que mostra Amador Ribeiro Neto em Poemail, em linguagem experimental e consonante com o concretismo

por Anelito de Oliveira

Novo livro do paulista Amador Ribeiro Neto, radicado em João Pessoa, apresenta coletânea de poemas, em que apresenta a possibilidade de saber de si e do outro: “Livros nos devolvem quem somos”

Meu jovem filho
“quisera eu cosê-la / (a natureza) // a navalhadas /
e punhaladas // foices / e facadas // enxadadas / e machadadas //
sová-la / e sová-la // até devolver/ -me // intacta em sua alegria /
de mil sóis // a vida / de meu // jovem / filho”

Quando publicou seu primeiro livro de poemas em 2003, Barrocidade, Amador Ribeiro Neto, paulista de Caconde radicado em João Pessoa desde 1991, já era conhecido e admirado como um dos mais importantes pesquisadores da obra de Caetano Veloso e sensível crítico de poesia. Os poemas que publicou na antologia Na virada do século, organizada por Cláudio Daniel e Frederico Barbosa para a Landy, em 2002, constituíram uma “avant première” para uma poesia desejosa – não saudosa – de “avant garde”, de se concretizar como objeto dinâmico, movimento vivo. O segundo título publicado pelo autor depois de longos 12 anos, já em 2015, o “futurista” (ressoando Álvaro de Campos) Ahô-ô-ô-oxe, foi uma espécie de “tuitaço” artesanal, publicação aparecida em Florianópolis pelo selo Cartonera, anunciando o seu novo livro: Poemail, uma coletânea de poemas que agora sai pela Patuá.

A experimentação de linguagem, desarticulações e rearticulações do código verbal, é o traço que primeiro salta à vista numa poesia que se coloca abertamente no horizonte do concretismo e de outros tantos “ismos” do passado. Elucidar essa relação, num exercício de crítica intertextual, é importante, sem dúvida, num momento em que questões externas, sobretudo a questão de gênero e da mediação, sobrepõem-se muitas vezes de modo grotesco a questões internas, que dizem respeito à mecânica mesma da poesia. Todavia, o reconhecimento da relevância do gesto de Amador depende da qualificação dessa relação, da explicitação dos seus índices de autenticidade, de tal modo que possamos perceber um “intercessor” (Deleuze) dos “ismos”, que acrescenta dados ao repertório já convertido em tradição literária, não um mero emulador desses “ismos”.

Em consonância com o concretismo, a poesia não é, para o poeta de Poemail, uma questão de verso, mas uma questão de fazer, que pressupõe trabalho, racionalização, construção e, antes de mais nada, um saber. Que saber é esse? Este é o ponto fulcral, eu diria, que é preciso tensionar, tentar elucidar, sabendo, de antemão, que não é tarefa fácil, sobretudo em razão do fato de que estamos diante de um poeta “savant”, não de um criador de poemas espontâneo, movido pela famigerada inspiração. Toda a primeira parte de Poemail, denominada “Elos”, decantando poetas, críticos e prosadores, atesta não apenas uma rede de relações intertextuais – dado previsível –, mas um “modus operandi” do saber letrado, cuja particularidade consiste num dobrar-se, num volver sobre si mesmo: “Livros nos devolvem quem somos /: o avesso / do / nada / de / novo / a / o avesso” (A morte e os livros).

Ao contrário de grande parte dos poetas ditos cultivados, que ainda hoje percebe a relação com a poesia a partir de um preceito beletrista herdado do século 19, Amador Ribeiro Neto encontra nos livros – de poesia, no sentido genérico de “poiesis”, de criação – uma possibilidade de saber de si – e, concomitantemente, saber do outro. Seu gesto poético, como já o demonstrava desde o turbulento Barrocidade, não é narcísico, autocomplacente, mesmo quando se empenha em falar do sentimento de pai diante da morte trágica de um filho. Vejamos já, para exemplificar este aspecto, o que se passa no belo “Meu jovem filho”, um dos momentos viscerais de Poemail: “Quisera eu cosê-la / (a natureza) / a navalhadas / e punhaladas / foices / e facadas / enxadadas / e machadadas / sová-la / e sová-la / até devolver/ -me / intacta em sua alegria / de mil sóis / a vida / de meu / jovem / filho”.

Esse poema, ao lado de outros em que o poeta atém-se a eventos dolorosos, como depressão e suicídio, figura na terceira e última parte de Poemail, denominada “Dentros”, precedida por “Sítios” e a já citada “Elos”. Saber de si, adentrar-se, dobrar-se, coloca o poeta numa situação de enfrentamento brutal da natureza, em que reluz uma verdade experienciada, com sabor de agonia, que tem sido sistematicamente evitada, quando não censurada, desde os anos 1990 na poesia brasileira em nome (quem sabe?) de uma saúde institucional, acadêmica, do campo literário. O movimento – corajoso – que “Meu jovem filho” realiza é compreensível à luz do que Foucault explora n’A hermenêutica do sujeito: a perspectiva socrática do conhecer a si mesmo consiste num despertar da interioridade como esfera incômoda, cuja imagem é a de um animal acometido por um tavão, o inseto que produz uma coceira terrível, um mal-estar no corpo.

Resistência ao Estado opressor

Nascido em 1953, Amador Ribeiro Neto tinha 11 anos em 1964, quando os militares tomaram cinicamente – tal como tem acontecido no país de 2016 para cá – o poder, investindo na demonização da democracia e instaurando, a partir de 1968, um “estado de exceção”, com a negação de direitos fundamentais, a começar pela liberdade de expressão. Tendo vivenciado as agruras daquele cenário, Amador pertence à geração que teve no incômodo, na insubordinação, no “desbunde”, como se dizia nos anos 1960 e 1970 ao ritmo da contracultura, uma questão de honra, um índice de resistência ao Estado repressor. O fato de sua poesia ter começado a aparecer em livro somente em 2003 não pode constituir estímulo para leituras agorais, presentistas, convenientes, pautadas apenas em valores teórico-críticos considerados atuais. Evidente que, como Murilo Mendes se via, o poeta de Caconde não é seu próprio sobrevivente, mas seu próprio contemporâneo – com toda a complexidade que este conceito implica, todavia.

Ainda à luz do modo inquietante como Foucault repensa a subjetividade, é possível dizer que o tavão de Amador – e de todos os marginais, alternativos, vanguardistas da sua geração – é a ditadura militar, o “Estado de exceção”, que provoca ânsias rimbaudianas de desregramento de sentido, ataques de “beat generation”. Poemail nos permite perceber uma espécie de passo a passo desse processo no âmbito específico de uma poética: os “elos” autorais, os “sítios” habitados, os “dentros” acessados. O que conta nesse processo, segundo essa ordenação, é, em primeiro lugar, o nível discursivo, a representação, a “realidade de signos”, para lembrar Haroldo de Campos, uma das referências estruturantes do poeta em Amador, ao lado de Caetano Veloso e, como Poemail o revela agora, João Cabral. Em segundo lugar, contam nesse processo duas geografias – a paulista e a paraibana. E, em terceiro lugar, conta a vida vivida, a experiência nua e crua de existir, afeto familiar, doença, morte – e a alegria!



De fato, é a alegria que, como assinala o poeta Ronald Polito no prefácio a Poemail, desponta como fatura geral, ponto luminoso da geleia, nesse livro que é tão século 21, afim da internet, hipertextual, rizomático, quanto modernista, generoso com as brasilidades, as feiras, as malícias, os altos e baixos, as contradições cotidianas de um país transbarroco. A “alegria é a prova dos nove”, como sentenciou Oswald, mas não só isso; é um torquatiano porto seguro, mas também não só isso; é uma caetânica auto-afirmação sobre os podres poderes circundantes, mas algo que também vai mais além disso. A alegria de Amador é uma alegoria, para lembrar Celso Favaretto lendo a Tropicália, do processo de desregramento de sentido como processo de barroquização, que pressupõe uma compreensão da matéria de poesia – temas, eventos, sensações, experiências, signos diversos – como algo modulável, dobrável, variável. Trata-se de uma alegria que resulta de um saber sobre si mesmo como objeto comunicante, espécie de “eumail”.

Toda a autenticidade desconcertante que atravessa Poemail se deve, sem dúvida, a uma perspectiva sobre a alegria, esse controverso capital nacional, muito próxima àquela concebida pelo poeta e psicanalista mineiro Hélio Pellegrino, um dos maiores poetas-sabedores do país, numa crônica que é uma obra-prima, hoje constante do seu A burrice do demônio, coletânea organizada pelo jornalista Humberto Werneck. “Toda alegria longa e autêntica – é severa”, diz Hélio, “o que não impede que a alegria seja leve e tenha gosto de vinho.” Essa crônica se chama “A construção da alegria”. Ainda no início desse belíssimo poema em prosa, diz o autor de alguns dos versos mais pungentes de sua geração, reunidos pelo mesmo Werneck no volume Minérios domados: “Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis”.

Realmente, não são fáceis as ferramentas com as quais Amador Ribeiro Neto constrói o seu barco-alegria. Poemas como “Ensimesmado” (“cada dia / entendo / mais & mais / profundamente / o som / surdo / dos / suicidas”), “A cerca da dor” (“a dor / corrói o metal dos edifícios”) e “Invocação das dores” (“largar livros / leituras / escritas / todo / & / qualquer / texto / para que / adentrem / angústias / desgraças / flagelos”), todos pertencentes aos “Dentros” de Poemail, dão a precisa dimensão existencial dessas ferramentas, desvelando a razão da particularidade “ivre”, bêbada, por isso mesmo humana, frágil, sensível, do barco do poeta. O artifício vanguardista, atualizado em clave concretista ou barroquizante, articula-se, nessa poesia, de modo produtivo a uma substância sempre tensa, agitada, transbordante, que não aspira apenas à leitura fria, mas a um envolvimento corporal, dançante, cantante, com o leitor. O Poemail do poeta do barco-alegria grita, como o Cazuza de “Boas novas”: “Então, vamos pra vida!”.
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Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O iludido (Páginas, ficção), Traços (Patuá, poemas) e A aurora das dobras (Inmensa, ensaio) entre outras obras.

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