quinta-feira, 2 de abril de 2020

Por que Bolsonaro governa o Brasil na contramão dos índices e recomendações científicas de combate ao Covid-19? Um ensaio sobre o “Estado suicidário”


Praça Padre Cícero em Juazeiro do Norte, deserta em tempos de coronavírus (foto de Luis Celestino - com edição)

por Lusmário Oliveira

Desde o início da pandemia do Covid-19 venho tentando compreender as atitudes que tem tomado o presidente Jair Bolsonaro. Minha questão partia basicamente desse pressuposto: como pode ele, mesmo com tantos exemplos ao redor do mundo, com tantos dados científicos e embates consistentes e diretos às suas atitudes, continuar agindo no caminho contrário da prevenção e promoção à saúde da população brasileira? Em tempo: antes de qualquer coisa, gostaria de frisar que não pretendo com textos como este trazer uma resposta concreta e/ou certeira, e sim discutir ensaios filosóficos que se propõem a discutir acerca do cenário atual, objetivando gerar reflexões e, talvez, servir de auxílio para a ampliação de conhecimento e construção de novas ideias.

Logo após os primeiros pronunciamentos do presidente sobre a pandemia, foram elencadas algumas possíveis explicações para as suas atitudes. Uma delas é a que alega se tratar de uma estratégia política que Bolsonaro estaria usando para isentar-se das responsabilidades de um quase certo crash da economia brasileira – o que não seria nenhuma novidade, tendo em vista que o colapso econômico vem se instaurando bem antes da pandemia. Esta estratégia de evasão viria atrelada ao direcionamento da responsabilidade aos governadores que não seguirem as suas recomendações de priorizar o sistema econômico em detrimento da saúde pública.

Mas de algum modo a tese acima não supriu minha curiosidade. O campo no meu cérebro que ansiava germinar ainda não via nada brotar. Posteriormente, quando tive contato com o ensaio do filósofo brasileiro Vladimir Safatle – “Bem-vindo ao Estado Suicidário” – sobre o atual cenário no Brasil, logo no primeiro parágrafo entendi o equívoco na construção da pergunta que fiz aqui, coincidentemente, no primeiro parágrafo. Também observei que coloca em xeque a explicação do parágrafo anterior, não por ela estar incorreta, mas por que o filósofo se propõe a uma discussão que vai além das fantasias que podemos conjecturar para as infindas possíveis motivações que possam existir nas atitudes de Bolsonaro.

Ou seja, para Safatle, o que está acontecendo no Brasil não nasce, em nenhuma instância, de um acidente ou de um voluntarismo dos governantes, “até porque, ninguém nunca entendeu processos históricos procurando esclarecer a intencionalidade dos agentes”. Deste modo, a irrelevância que o autor atribui às motivações que levariam a tais atitudes é incisiva ao ponto de defender que comumente esses agentes agem sem sequer terem alguma noção do que estão fazendo.

Mas afinal, o que Safatle quer dizer com “Estado suicidário”? Trata-se de um termo que se usa para explicar que este cenário vai além de um conceito mais discutido e conhecido: necropolítica. Conceito esse que foi desenvolvido pelo filósofo camaronense Achille Mbembe, em 2003, para designar as políticas de estado que decidem quem deve morrer e quem deve viver.

Fazendo agora uma comparação: assim como o fascismo para Bertolt Brecht “apenas pode ser combatido como capitalismo, como a forma de capitalismo mais nua, sem vergonha, mais opressiva e mais traiçoeira”, Safatle acredita que o Estado suicidário é inseparável do neoliberalismo e se encontra em “sua face mais cruel, sua fase terminal”. Deste modo, o Estado suicidário, conceito que toma emprestado de Paul Virilio, para além de gestor da morte como aponta Mbembe, atua continuamente para sua própria catástrofe, “ele é cultivador de sua própria explosão”.

Neste ponto, julgou-se importante elencar a perspectiva de Noam Chomsky sobre o cenário atual pandêmico. Para ele este cenário é gravemente fértil para que governantes consigam desestabilizar a democracia, e em seu ensaio apresenta as semelhanças do presente e as que percebeu há 80 anos atrás, quando tinha apenas dez anos e vivia no período de ascensão do nazismo que culminaria na Segunda Guerra Mundial. No entanto, o que seria mais importante para o que estamos discutindo agora é o que ele apresenta como uma leitura sobre um possível fim da humanidade.

Com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, cinco anos depois, com duas bombas nucleares lançadas pelos EUA em cidades japonas no ano de 1945, Chomsky atenta para os fatos que se seguiram: “há 70 anos vivemos sob a sombra da guerra nuclear. Aqueles que analisaram os registros só podem se surpreender com o fato de termos sobrevivido até agora. Vez após outra, o desastre terminal tem ficado extremamente próximo, a alguns minutos de distância”.

Quando penso na produção de armas capazes de destruir a humanidade sinto uma sensação de que estamos falando de Estado suicidário, porém, Safatle entende que um acontecimento como este houve apenas uma vez na história recente. Trata-se do momento da queda do regime nazista, mais precisamente em um telegrama: o telegrama 71. Nesse, Adolf Hitler anunciou o fim de uma guerra então perdida. No telegrama haviam os dizeres: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”.

Com esse telegrama, Hitler deu ordem para que o exército nazista destruísse o que ainda restava de infraestrutura da nação já bastante arruinada. Como se, no íntimo, este fosse o real objetivo final: que a nação se extinguisse pelas suas próprias mãos, “pelas mãos que ela mesma desencadeou”. Foi essa a resposta para uma raiva secular contra o próprio estado e contra toda a sua representação. Há diversas formas de destruir o estado e uma delas é aumentando a velocidade de sua própria catástrofe, independentemente do número de vidas que irá custar, explica o filósofo brasileiro.

As semelhanças com o governo de Bolsonaro são graves. Há algum tempo ele vem incentivando e agindo de forma a atacar instituições do estado, tais como o fechamento do Congresso e do STF. Agora, em meio a uma pandemia, ele encontrou uma catástrofe que serve como uma luva para seu plano de destruição do estado e tem feito de tudo para que consiga atingir seu objetivo autodestrutivo.

Recentemente duas matérias me chamaram atenção. Uma veiculada pela revista inglesa The Economist e outra pela BBC Brasil. A revista de economia inglesa chama o presidente de “BolsoNero”, em evidente alusão ao personagem histórico que ficou famoso por supostamente ter ordenado o incêndio de Roma, onde era imperador. A BBC Brasil veiculou uma matéria sobre o Brasil da meningite de 1974. Trata-se dos tempos da ditadura militar e, assim como hoje Bolsonaro tem tentado rotineiramente, havia um enfraquecimento da autonomia dos veículos de informação e dos jornalistas através, principalmente, da censura. A jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sobre a meningite em 1974 explica: “assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença. [...] Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas”.

Em meados do mês de março (de 2020), quando questionado sobre sua saúde, Bolsonaro disse: “se eu me contaminei, é responsabilidade minha, ninguém tem nada a ver com isso”. O neoliberalismo se embasa nessa visão de homem que é relacionada ao conceito de “indivíduo” e que gera em sua esfera mais perversa outro conceito: o de individualismo. Conceito político, moral e social que manifesta a ideia de que existe liberdade do indivíduo perante o grupo. No entanto, estamos longe de falar de uma situação que gera consequências apenas na vida de quem se contamina, tendo em vista se tratar de um vírus altamente contagioso.

E é neste ponto que Safatle vislumbra uma possível alternativa. Alternativa esta que é oposta e combativa à que está tomando o presidente. Pressupõe afeto em relação ao outro sem que ele sequer faça parte do grupo que eu vivo ou sem que ele precise estar no meu lugar. Assim, recorda que são nesses momentos mais dramáticos que sentimentos como estes surgem e são capazes de lembrar aos sujeitos que eles fazem parte de um organismo maior, que é interdependente e necessita de apoio mútuo. E não é isto que está acontecendo em/entre várias nações do mundo?

Em partes, sim, mas o Brasil é um dos únicos países do mundo que tem um presidente que se recusa a seguir as recomendações de combate à pandemia global, e continua incentivando a população no sentido contrário. Se medidas como estas continuarem sendo tomadas, o Brasil tenderá a ser objeto de um cordão sanitário global e, talvez, isolado e com as instituições e governadores estaduais e municipais enfraquecidos, seja um cenário ainda mais propício de se instaurar um estado autoritário que colocará ainda mais combustível para acelerar as engrenagens de autodestruição.
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Lusmário Oliveira é psicólogo clínico e Gestalt-terapeuta.


Fontes:
Vladimir Safatle - Bem vindo ao estado suicidário.
https://jornalggn.com.br/blog/doney/bem-vindo-ao-estado-suicidario-por-vladimir-safatle-n-1-edicoes/

Noam Chomsky – Não podemos deixar o covid-19 nos levar ao autoritarismo.
Original em inglês:

https://truthout.org/articles/we-cant-let-covid-19-drive-us-into-authoritarianism/

Tradução de César Locatelli, para Carta Maior:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Nao-podemos-deixar-o-COVID19-nos-levar-ao-autoritarismo/6/46871

The Economist - Presidente do Brasil brinca com uma pandemia:
https://www.economist.com/the-americas/2020/03/26/brazils-president-fiddles-as-a-pandemic-looms

Estadão – The Economist diz que Bolsonaro brinca com conoravirus e chama presidente de BolsoNero:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,the-economist-diz-que-bolsonaro-brinca-com-coronavirus-e-chama-presidente-de-bolsonero,70003249319

BBC Brasil - Escolas fechadas, hospitais lotados, eventos cancelados: o Brasil da meningite de 1974:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52058352

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