sexta-feira, 31 de julho de 2020

9 (+1) obras de Luís Karimai, por Clara Karimai


Luís Karimai e Clara Karimai (foto - detalhe: Rafael Vilarouca)

por Clara Karimai

Quando me foi solicitada essa seleção, foram muitos os anseios e possibilidades na elaboração de um conteúdo sobre a produção imagética de Karimai. Bateu a insegurança. Apesar de ter crescido frente às inúmeras produções artísticas dele, alcançar as suas significações sempre me foi desafiador já que não se tratavam apenas de telas com paisagens de realidades objetivas, elas sempre me convidavam a olhares mais atentos.

Em nossos diálogos, sem nenhum argumento de autoritarismo, ele confortava a minha ignorância com a única orientação de deixar-me envolver pelos sentidos e percepções. O demais me viria por acréscimo.

Claro que por muitas vezes demorei o olhar e não apreendi o que hoje, mais madura e com mais vivências e sensibilidades, assimilo com as instigações que me resgatam sempre que preciso lutar contra essa insistente reificação da consciência, sobretudo neste momento em que o mundo vive essa pandemia e em que tudo pode/deve ser repensado, ser revisto.

Captar sentido do mundo à nossa volta é um percurso sugerido a quem aceita o convite a essa proposta artística de repensar as estruturas; de criar outras perspectivas humanas, sociais; de reflexão sobre o nosso alheamento diante da vida; de questionar sobre a razão de ser; das limitações impostas, mas também das infinitas possibilidades.

Eis algumas obras de Luís Karimai, meu pai querido. A decisão é individual, o caminho é único...


 
Homo lumen - luz da natureza – desenho - Nanquim em bico de pena - 48 X 33,5. Do álbum Destino Peregrinações e Mentes, 1982 – cópia em offset. Essa obra é de uma fase em que Karimai trabalhou muito com o nanquim. Há uma extrema valorização aos detalhes e ao jogo intencional de imagens, luz e sombra. O início da sua produção artística se manifesta convenientemente durante um período de descobertas pessoais, algumas angústias juvenis. O sofrer é representado com pedras, cipós, corpos transpassados por lâminas e pregos, elementos recorrentes nesse período.


 
Óleo sobre tela – Auto-peregrinação: compõe a série que Karimai produziu com a temática Horto. Retratou tudo que dá movimento a Juazeiro do Norte com narrativas férteis e múltiplas. As cores dão total sentido à obra. É quase possível sentir o calor característico do mês de setembro, durante a Romaria de Nossa Senhora das Dores. Gosto dessa tela porque é uma retratação nada simplista de como a cidade foi gerada. Dá uma nova realidade às coisas cotidianas. Tem sempre algo novo para ver. Além de revelar o impacto que essa cidade causou em Karimai, em meados de 1970, quando aqui chegou para pesquisas acadêmicas e daqui não quis mais sair.


 
Tela de 1995: alusão ao Juazeiro antigo, plantio de algodão e aos vários trabalhadores nos seus labores. Lembro dessa tela durante um bom tempo na parede da sala de casa e o quanto gostava de olhar para ela. A terra que se funde com o céu e a vastidão de espaço nos remete a perspectivas, esperanças, ao olhar adiante. Mais que a representação de um lugar preexistente, a cena não é irreal, mas toca o nosso imaginário.


 
Óleo sobre tela: a riqueza e harmonia dos detalhes prende o espectador. Eu gosto muito dessa perspectiva aérea. Ela possibilita a visão da paisagem como um todo para depois olhar por partes. A diminuição dos elementos é uma sugestão de distanciamento do observador para acomodar e revelar a profundidade da imagem. As obras de paisagem de Karimai possuem certa atmosfera meditativa. De beleza na simplicidade e silêncio que se alastra. Não muito habitual, nesta tela Karimai usou camadas grossas de tinta (impasto) nas árvores e em algumas vegetações para dar mais perceptibilidade à tinta.


 
O tempo espreita: nós - Óleo sobre tela: Uma experiência visual penetrante. Contrastantes nos planos dos tons frios (as figuras humanas) e quentes, as cores reforçam as contraposições das dualidades da temática: Desejo/castração, liberdade/amarras, contração/fluidez, tradicional/contemporâneo, razão/emoção, masculino/feminino, consciente/inconsciente. O semblante de olhos pequenos está compenetrado como quem perscruta. Karimai ainda brinca com os sentidos quando situa essas figuras em transbordo de êxtase, no espaço do cosmo.


 
Desenho – lápis grafite, aquarela, pastel e colagem: Esse desenho é composto por várias tiras de papel que vão aumentando o tamanho do desenho. Presente ao filho, Paulo. Começou com um papel pequeno e foi tomando forma na medida em que sentia necessidade de continuar e não queria perder o fluxo da criação. O menino descansa na pedra em um estado contemplativo, com serenidade. Essa obra me remete aos passeios de final de tarde que ele fazia conosco (filhos) e a meninada da rua, por cenários como esse, observando as inervações e colorações das folhas secas caídas pelo chão, as torções engenhosas das raízes, as pedras. “Pinta bem quem observa bem”, dizia. Para mim, essa tela tão fértil de detalhes emana a paciência, candura e mansuetude próprias de quem ensinava com a observância interna às orientações cedidas.


 
Óleo sobre tela: Karimai explora com clareza um pensamento complexo nesta tela. As disponibilidades das narrativas sugerem uma condução do olhar. As emoções envolvem as figuras humanas. Armaduras, caixas e prisões são suavizados por tecidos fluidos e transparentes, flores e seres diáfanos. Transiçõese transformações em que uma coisa vira outra. Caixas que são casas, mas também estradas, pontes, e os pontos de fuga que indicam continuidades... As cores entram como atenuantes às tensões. Onde existe aflição, também se aportam belezas.


 
Pintura mista: essa foi em parceria com o filho Lui, que na época tinha 6 anos e toda tarde ia desenhar com ele. Esse desenho foi feito despretensiosamente por Lui, deixado de lado após convite a outros afazeres. Karimai viu, gostou, aproveitou o desenho da telinha, reorganizou a forma e fez a pintura. Lui hoje está com 20 anos de idade e tem essa obra na mesa onde gosta de criar artes digitais.


 
Óleo sobre tela: “Abstrato é coisa de abstração. Capacidade de entendimento do real dever ser elevada e a síntese magistral. Não se faz abstração sem vivência calejada na vida, nem se consegue resultados sem equilíbrio na existência, na geometria dos similares-e-contrários.... Pinta bem quem observa bem” Luís Karimai.


 
(+1) Óleo sobre tela: me estimula a decifrar abstrações, alma/corpo, sonho/realidade, céu/sideral.
_

Clara Karimai: jornalista formada pela UFCA. Assessora de Imprensa. Atualmente se dedica na catalogação e disponibilização da memória e da obra do artista plástico Luís Karimai.

Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
9 (+1) livros sobre Juazeiro do Norte - Parte 1
9 (+1) poemas de Fernando Pessoa e alguns de seus Outros Eu(s), por Flávio Queiróz
9 (+1) poemas de O Belo e a Fera, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)
9 (+1) referências do Design Cariri, por Fernanda Loss
9 (+1) discos preferidos do rock internacional, por Michel Macedo
9 (+1) importantes obras de filosofia, por Camila Prado
9 (+1) artistas visuais contemporâneos, por Adriana Botelho
9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins
9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira


.

Secretaria de Cultura de Juazeiro do Norte lança edital para seleção de pareceristas de projetos



A Prefeitura Municipal de Juazeiro do Norte, por meio da Secretaria de Cultura (Secult), lançou na última terça-feira -feira, 28, o edital de chamamento público de credenciamento de pareceristas. As inscrições para o credenciamento serão feitas exclusivamente via Internet,  no site do mapa da cultura através do link https://mapacultural.juazeiro.ce.gov.br/,  no período de 29 de julho até as 23h59 do dia 04 de agosto de 2020.

O edital tem como objetivo a seleção de pessoas para atuar no âmbito da análise técnica de projetos submetidos aos editais da Secult. O cadastro terá validade de um ano, prorrogável por igual período. Para participar a pessoa interessada deverá ser Pessoa física com idade mínima de 18 anos, brasileira nato, residente e domiciliado no Estado do Ceará; no caso da pessoa física ser microempreendedor individual (MEI) é obrigatório que seu cadastro profissional contenha Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE) compatível com a(s) área(s) de atuação inscrita neste edital.

É necessário ainda ter, no mínimo, dois anos de atuação comprovada na(s) área(s) nas quais pretende se credenciar e ter concluído, no mínimo, um curso de nível médio ou equivalente. O candidato antes de realizar a inscrição deverá criar ou atualizar o cadastro no Mapa Cultural do Ceará com o perfil de Agente Individual (Pessoa Física). A Secult disponibilizará atendimento aos candidatos através do e-mail editalpareceristasjuazeiro@gmail.com .

Cada candidato poderá se inscrever em até uma área de atuação, dentre as 14 existentes, devendo comprovar experiência profissional na área escolhida. São elas: Artes visuais, Audiovisual, Arte Digital e Novas Mídias, circo, dança, fotografia, humor, literatura, música, teatro, Patrimônio Cultural Material, Patrimônio Cultural Imaterial, museus e memória, moda e design, além de Intersetorialidades das Políticas Públicas de Cultura, Gestão e produção Cultural.

A seleção será realizada em sessão pública, com início às 9h, nos dias 03 e 04 de agosto de 2020, transmitida pela plataforma Google Meet, com link a ser disponibilizado no instagram @culturajuazeiro. A divulgação do resultado preliminar acontecerá no dia 05 de agosto, quando os convocados serão remunerados com o valor bruto de R$ 2 mil. Para mais informações os interessados devem acessar o edital.

Clique aqui para ler o edital.

Clique para acessar o formulário de inscrição.
.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

9 (+1) livros sobre Juazeiro do Norte - Parte 1



por Ythallo Rodrigues e Luís André Araújo

“Juazeiro é uma terra de pouca geografia e muita história”. Com essa frase, Monsenhor Murilo de Sá Barreto naturalmente se referia a toda a riqueza de fatos, histórias e culturas na vida de um município relativamente novo e com pouca extensão territorial.

E neste 22 de julho – dia da emancipação política do município – para ilustrar que o que não falta é história sobre o Juazeiro, resolvemos lançar a primeira de uma série de listas com livros que contam muitos dos fatos ligados à gênese e ao desenvolvimento de Juazeiro do Norte, em seus aspectos religiosos, políticos, econômicos e culturais.

Assim sendo, é importante pontuar algumas questões:

A produção editorial e acadêmica de trabalhos sobre Juazeiro é vastíssima, mas as listas são finitas, implicando no inevitável: muita coisa boa (e importante) naturalmente (e infelizmente) ficará de fora.

Como faremos mais de uma lista (aguardem as próximas!), possivelmente um livro não contemplado agora pode ser citado numa próxima postagem.

Para tentar diversificar as épocas, estilos, autores e autoras das obras, a lista não segue um critério de importância/relevância da publicação, então colocamos em ordem cronológica, considerando a data de lançamento da primeira edição.

Ressaltamos que a lista não é assinada por especialistas na história do Juazeiro e sua religiosidade, mas O Berro resolveu se lançar nessa missão por sempre demonstrar um eminente interesse e admiração pelo assunto, como quem se surpreende com a riqueza de cada história deste lugar. Então as listas surgem dessa curiosidade e admiração.

Por fim, enfatizamos que não estão sendo listados, necessariamente, livros com qualquer tipo de temática ligada ao Juazeiro ou pelo fato do escritor ou escritora ser juazeirense. A ideia é enumerar livros “sobre o Juazeiro”, com temáticas caras à sua origem e desenvolvimento enquanto município, no que se refere às questões religiosas, à história do Padre Cícero e/ou da Beata Maria de Araújo (e demais religiosos conhecidos), das romarias, etc., também pincelando aqui e acolá as questões econômicas, políticas e culturais.

Boa(s) leitura(s)!



O Padre Cícero que eu conheci (verdadeira história de Juazeiro) - Amália Xavier de Oliveira (Gráfica Olímpica, 1969): o livro da professora e memorialista Amália Xavier busca descrever a vida de Padre Cícero, tendo como recorte o período em que este viveu em Juazeiro, entre 1872 e 1934 (ano de sua morte). O texto que abre a edição de 2001 é uma carta da escritora Rachel de Queiroz, de 1968, com considerações que demonstram algumas características importantes do texto da professora juazeirense: “Estou acabando a leitura de seu livro O Padre Cícero que eu conheci. E quero agradecer a distinção que me fez, proporcionando-me a leitura em original, desse depoimento honesto, veraz e fiel. Sabe quanto venero a figura do nosso padrinho Padre Cícero; é uma dor de coração ver esses ‘depoimentos’ e ‘interpretações’ que saem por aí, assinados por aventureiros, por pessoas que se querem beneficiar da glória do nosso santo – ou por conhecidos inimigos dele. O seu livro vem pôr a verdade no seu lugar. É claro, sincero – e se é apaixonado, algumas vezes, – será desse paixão da justiça, que reclama quando vê a mentira entronizada.”


 
Milagre em Joaseiro - Ralph Della Cava (Paz e Terra, 1976): publicado originalmente em 1970 nos Estados Unidos – com a primeira edição brasileira lançada em 1976 – tornou-se importante referência pela apreciação e divulgação de documentação até então inédita sobre o “Milagre da hóstia do Juazeiro”, protagonizado pela Beata Maria de Araújo e pelo Padre Cícero. Ralph Della Cava, um historiador e antropólogo estadunidense, acabou apresentando, assim, um dos trabalhos de grande fôlego sobre a formação e desenvolvimento de Juazeiro do Norte, calcado no fenômeno religioso do fim do século XIX e impulsionado ainda com mais vigor durante o século XX. O livro – lançado originalmente pela Paz e Terra e reeditado em 2014 pela Companhia das Letras – estimulou tantos outros trabalhos acadêmicos e produções audiovisuais sobre a história do Padre Cícero e de Juazeiro.


 
Juazeiro do Padre Cícero: a terra da mãe de Deus - Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (Francisco Alves, 1988): nesse estudo pioneiro, desenvolvido no decorrer da década de 1970 e apresentado como tese de doutorado em 1980 pela antropóloga Luitgarde Oliveira, acompanhamos o percurso de constituição histórico-social do sertanejo, em que seguimos até a vila de Juazeiro em seu nascedouro no final do século XIX e a partir de lá somos convidados a entender os meandros do catolicismo popular na formação de Padre Cícero como um dos ícones desta categoria. O livro segue pelo século XX, observando a relação estabelecida entre os romeiros de Padre Cícero e a cidade que é o espaço sagrado da devoção de toda a gente do Nordeste que compõe as romarias. Na edição mais recente, de 2014, há ainda o acréscimo de um quarto capítulo que delineia alguns aspectos da chegada do Juazeiro de Padre Cícero no século XXI.


 
Juazeiro do Padre Cícero - Raimundo Araújo (org.) (Gráfica Mascoto, 1994): em 1994 Juazeiro tinha algumas datas importantes para comemorar – no sentido de trazer à memória, recordar: 80 anos da morte da Beata Maria de Araújo; 80 anos da Sedição de Juazeiro (a famosa “Guerra de 14”); 80 anos da elevação da condição de vila a cidade; 60 anos da morte do Padre Cícero e 150 anos do seu nascimento; 25 anos da inauguração da estátua do Padim no Horto... ufa! (correndo o risco aqui de esquecer outras efemérides importantes daquele ano). Para homenagear tantos fatos relevantes, o escritor Raimundo Araújo, um dos grandes entusiastas da história de Juazeiro, organizou essa antologia com textos dos mais variados profissionais, moradores, admiradores e estudiosos da história da cidade. Nas páginas do livro são explorados diversos assuntos e temos uma seção com fotografias, que hoje provocam um certo saudosismo, pois já se vão 26 anos do lançamento dessa obra impressa pela tradicional Gráfica Mascote.


 
Maria do Juazeiro: a beata do milagre - Maria do Carmo Pagan Forti (Annablume, 1999): dentre os mais variados assuntos e personagens que fazem parte da história de Juazeiro do Norte e do Cariri, para a equipe d’O Berro a Beata Maria de Juazeiro merece um destaque especial. Sendo assim, naturalmente haveríamos de mencionar uma das primeiras obras com um certo fôlego que se debruçou especificamente na figura de Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo. Coube então à psicóloga e professora Maria do Carmo Pagan Forti levantar uma questão que sempre merece um debate mais profundo: após o caso do milagre da hóstia, ocorrido em 1889, o Padre Cícero tornou-se o líder e grande referência de um dos maiores fenômenos sócio-religiosos da história do Nordeste brasileiro: as romarias de Juazeiro; entretanto, a grande protagonista daqueles fatos, a Beata Maria de Araújo, foi sendo apagada da história, tendo seu nome e sua importância poucas vezes lembrados no fenômeno em que se transformou o Juazeiro. Maria do Carmo não hesita em tomar partido e defender a beata de todas as acusações sofridas durante o processo eclesiástico que condenou Maria de Araújo ao enclausuramento e esquecimento nos seus últimos anos de vida – e em boa parte da história.


 
Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão - Lira Neto (Companhia das Letras, 2009): com uma considerável lista de personagens da história brasileira no seu currículo como biógrafo, o jornalista e escritor cearense Lira Neto também se debruçou sobre a história do Padre Cícero. O resultado dessa pesquisa foi o livro Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, que apresenta uma narrativa baseada em vasta documentação sobre a riquíssima e surpreendente história que envolve as questões políticas e religiosas da ascensão do Padim Ciço no sertão nordestino. Sem esnobar o mérito de sua pesquisa historiográfica, vale mencionar a recorrência de escutarmos leitores do livro falarem que se trata de uma narrativa instigante, envolvente, por ser uma história (de certa forma) “romanceada”, prendendo o leitor com um texto que flui facilmente, prendendo a atenção a cada página. Por fim, também vale citar o peso da editora Companhia das Letras e a sua capacidade de distribuição nacional, que fizeram desse livro um importante divulgador da história do Padre Cícero em todo o território brasileiro.



O teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado de Juazeiro - Edianne Nobre (Editora IMEPH, 2011): em seu primeiro livro, a professora e escritora Dia Nobre narra as histórias que estão em torno dos milagres de Juazeiro, a partir da perspectiva das nove beatas que acercavam o Padre Cícero em seu itinerário de fé. A partir da forma clássica de um texto dramatúrgico em três atos, a autora vai desenvolvendo em cada uma das cenas o desenrolar dessa história intrincada (iniciada nas últimas décadas do século XIX) e tramada por inúmeras vozes e contextos diversos. Fatos históricos (ou místicos) que reverberam até hoje na cidade em que Juazeiro do Norte se transformou. Ao final do percurso do livro a autora reafirma a potência “do fato extraordinário que é um pequeno povoado sombreado por juazeiros crescer no meio do nada e se transformar em um caloroso e famoso centro de religiosidade católica”. A obra faz parte da importante Coleção Centenário, lançada em 2011, quando foram comemorados os 100 anos de Juazeiro, e a autora posteriormente lançaria uma obra de grande impacto sobre a Beata Maria de Araújo – mas isso é assunto paras as próximas listas...


 
A Praça Padre Cícero - Daniel Walker (Expressão Gráfica e Editora, 2017): praticamente toda cidade possui uma praça que poderia ser chamada de “o coração da cidade”. E parece que não foi por acaso que um livro sobre a Praça Padre Cícero fosse capaz de representar toda dedicação de uma vida do professor, historiador e escritor Daniel Walker a Juazeiro do Norte – e, lógico, ao Padre Cícero. Lançada em 2017, a obra foi fruto de uma longa pesquisa (de mais de 5 anos) que esbarrava na falta de acervos públicos mais cuidadosos em registrar a história do nosso povo e das nossas cidades. Mas Daniel Walker abraçou a missão, consultando escritos e ouvindo “causos” de tantas pessoas que viveram muitas histórias na famosa praça, com destaque especial para as décadas de 1960 e 1970, quando, segundo o próprio autor “ela esbanjou todo o seu glamour e ficou cravada na memória de todos nós, como sendo nosso local de lazer e namoro”. O resultado é um livro com muitas histórias, informações e um rico acervo fotográfico.


 
Juazeiro sem Padre Cícero: expectativas e temores gerados pela morte do Padrinho (1934-1969) - Amanda Teixeira da Silva (Editora CRV, 2018): já a obra da professora e historiadora Amanda Teixeira segue o percurso temporal imediatamente posterior à morte de Padre Cícero, até o final na década de 1960. Na contracapa da primeira edição Amanda traça uma breve sinopse do seu trabalho. “Padre Cícero morreu em 1934. Havia, no período, diferentes expectativas sobre o que seria Juazeiro após o desaparecimento de seu fundador. Para muitos jornalistas, a morte de Padre Cícero representava um problema econômico, constituído pelo possível esvaziamento da cidade e pela fuga de mão de obra do Nordeste para o Sudeste e o Norte do país. Alguns temiam ainda possíveis acessos de fanatismo ou a consolidação de um problema social, já que os romeiros e retirantes ficariam então sem o apoio espiritual, moral e material do sacerdote. Para os devotos, por outro lado, o desaparecimento do Padrinho significava o fim da relação pessoal com um santo que falava a língua dos pobres e nunca se negava a ouvir e auxiliar os necessitados. De certo modo, a persistência de Padre Cícero nos corações de seus seguidores surpreendeu os intelectuais e as autoridades religiosas que planejavam dar fim à sua memória. A morte não foi capaz de eliminar o Padrinho. Juazeiro sem Padre Cícero passou a ser Juazeiro com mais Padre Cícero do que se imaginava.”


 
+1. A mulher sem túmulo - Nilza Costa e Silva (Armazém da Cultura, 2010): “Maria foi a segunda beata a receber a hóstia. Tomou um susto. Sentiu alguma coisa estranha em sua boca, um gosto de sangue... Teve vontade de expulsar aquilo de dentro de si, pois não sabia o que era. Terminou cuspindo tudo sobre a palma da mão. Só aí notou, visivelmente pálida, que a hóstia estava sangrando.” O livro de Nilza Costa e Silva através dos fatos romanceia a história de Maria de Araújo, a beata protagonista dos milagres da hóstia consagrada, a renegada santa de Juazeiro. Em 1930 o túmulo de Maria de Araújo foi violado e destruído por oficiais da igreja católica, um mistério que paira sobre a hoje populosa Juazeiro do Norte, e que faz ecoar a pergunta trazida ao final deste romance: “Onde está Maria de Araújo?”
_

Confira outras listas postadas recentemente no blog O Berro:
9 (+1) poemas de Fernando Pessoa e alguns de seus Outros Eu(s), por Flávio Queiróz
9 (+1) poemas de O Belo e a Fera, livro de Geraldo Urano (Lima Batista)
9 (+1) referências do Design Cariri, por Fernanda Loss
9 (+1) discos preferidos do rock internacional, por Michel Macedo
9 (+1) importantes obras de filosofia, por Camila Prado
9 (+1) artistas visuais contemporâneos, por Adriana Botelho
9 (+1) leituras para quem quer conhecer melhor a literatura brasileira, por Edson Martins
9 (+1) músicas para ouvir no Primeiro de Maio, por Antonio Lima Júnior
9 (+1) obras que me fizeram refletir durante o isolamento, por Cecilia Sobreira
9 (+2) contos de Rubem Fonseca para ler, por Elvis Pinheiro


.

sábado, 18 de julho de 2020

Isolamento social, ventilação e apneia



por Amador Ribeiro Neto

Quando o poeta Alberto Bresciani escreveu e publicou Fundamentos de ventilação e apneia (São Paulo, Editora Patuá, 2019), ainda não se falava em coronavírus. Porém não deixa de ser indicial que a literatura mais uma vez antecipe a realidade. Senão, consideremos o que uma das estrofes do poema “Metabolismo” pontua:

Pode ser que um vírus se espalhe,
Uma brand new de gripe
Todo acaso pode ser letal

Me lembro que o saudoso Bóris Schnaidernann, em uma de suas aulas, nos dizia que o cinema existe na literatura antes de ser inventado pelos irmãos Lumière, com os planos de câmera, iluminação, fade out e fade in, etc. Iúri Lótman, pai da Semiótica Russa, na mesma direção, não hesita em afirmar que as artes antecipam as tecnologias.

Bem, falávamos da poesia de Alberto Bresciani, e é o que importa aqui. Seu livro, desde o título é um feliz achado em qualquer época. Nesta nossa, de isolamento social e afins, ganha especial realce. Friso: sua poesia não é destinada apenas a este momento, a esta circunstância: ela transpõe o agora porque é: 1. linguagem poética transtemporal e 2. imersão na condição humana. Ou como diria Pound: linguagem carregada de significado.

O livro de Bresciani possui duas partes/dois pulmões: 1. Ventilação espontânea e 2. Apneia. Ambas são coloquiais mas têm, no entanto, distintas dicções poéticas. E tal procedimento oxigena o livro. Lembro-me que comentando Incompleto movimento, livro de estreia do poeta (2011), escrevi: “A poesia de Alberto Bresciani tem um dos pés na busca do coloquial e outro na tradição clássica. Ora acerta, ora não. Ele parece almejar uma descontração da linguagem, mas tolhe-a com construções que lembram a poesia canônica bem comportada. Aquela poesia que nos remete aos neoclássicos, aos parnasianos e até – parece paradoxo – aos simbolistas”.

No livro seguinte, Sem passagem para Barcelona (2015), ele faz uma transição entre o primeiro e o agora lançado. Pois Fundamento de ventilação e apneia vale-se da mais fina linguagem coloquial e poética sem nenhum cacoete literário. Lê-se o livro com desembaraço e leveza tais como se estivéssemos numa sessão de cinema assistindo a um bom filme. E, se faço a comparação com cinema, ela não é gratuita. Desde o livro de estreia, o mundo imagético é uma das dominantes da poesia brescianiana.



Na primeira parte, o tratamento literário, para valer-me aqui de uma expressão cara a Cortázar, tinge-se de tal naturalidade que lemos os poemas em um ritmo que chega a dispensar seus títulos. A poesia flui em música e imagens. A narratividade é de tal forma fluida em ritmo e melodia, que o tema se faz música e dança para o leitor.

Mas há o outro lado da moeda. O medo do inevitável, a crueldade da evolução dos acontecimentos e a inexorabilidade da sequência dos fatos apavorantes ganham igualmente os sentimentos e a cumplicidade de quem lê. A forma poética imanta.  Há desespero e regozijo, febre e gozo, temor e alívio. Pode o leitor vivenciar a catarse, ou o distanciamento brechtiano. Depende de seu grau de consciência/vivência poética. De toda forma – com ou sem trocadilho –, a arte pulsa e impulsiona-se enquanto provocação. Regozijo ou flagelo, cabe a cada um.

Versos como

E então um tombo da cama para a vala
de corpos passados nos desperta,
assusta e empurra e estamos de pé

são um cutucão no leitor apático, ou ao menos, desligado. O que ele fará com este desenredar-se, só a ele lhe cabe. À poesia, a sequência de vogais fechadas (poucas) e abertas nos versos acima, bem como as consoantes linguodentais e bilabiais entre surdas e sonoras, desenham o tombo e o abrir-se para o despertar do novo mo(vi)mento.

No poema a seguir, a urgência do aproveitamento de cada instante faz-se na brutalidade de atos desesperados de felicidade.  O poema que leva o nome de um multicolorido peixinho moçambicano de apenas 6cm, “Nothobranchius Rachovii”, traz a convocação sob forma concisa, leve e breve:

Façamos como killifishes africanos
:que explodem as cores mais violentas,
Cuspamos agora todo som, ódio, fúria

Sabemos que tudo se vai à brevidade
de um único ano e nossas vidas nunca
terão a chance de beber outra chuva

A segunda parte, igualmente narrativa, ao abdicar da terceira pessoa e da fluência rítmica, opta por abrir mão de alguma indagação e mistério. E por trabalhar certa cadeia de sons com mais cadência. 

Agora as emoções nascem de um eu que fala, via de regra, diretamente ao leitor. Mas como aquele é também alguém interessado, parte do problema, a empatia se estabelece com rapidez. Embora com menor taxa de adesão. A dicção da voz poética, ainda que em alta, tem menor amplitude que na primeira parte.

Esta parte, ao ser aberta com uma epígrafe dúbia – “Que a vida não tinha cura, / o tempo me ensinou, e mais tarde” – orienta-se com seguidos movimentos de oxigenação e sufoco, ventilação e apneia. A epígrafe desenha os movimentos que esta seção terá. Poemas como “Escape” e “Corvos” desenham o percurso da vida que se afirma e se nega, avança e retrai, pois a vida não é unidirecional. Antes: é complexa, bastante complexa – e os tempos, côncavos e convexos.

Escape

Tanto rumor nos ossos e ainda
Esperamos a válvula, alavanca
Que desarme, alavanca
Que desarme artefatos fatais,
Espalhados pelos companheiros
De causa, doces irmãos, pais

Erga-se o velame, abra-se o ar,
Venha outra voz, convencimento
De que vale ainda respirar
Neste mundo ou em outro plano
Imaterial, se mais houver além
De nervos vocacionados ao fim

Retorne o tempo gasto no nada
E reconheçamos nossos quartos,
Feridos e mortos, os fantasmas,
Por mais que relutem em abandonar
A cena de sangue que nos retrata
Acreditar pode ser o estopim da queda.


Corvos

Não via os corvos,
mas eram corvos,
prendendo o tempo
E eu criava pombos

Quando você saiu,
as sombras
tinham penas negras
e ficaram pela casa,
pela garganta,
as suas penas

Ontem entendi
e acendi a luz.

Eis uma das belezas de Fundamentos de ventilação e apneia, de Alberto Bresciani: colocar a palavra em primeiro plano, privilegiar o lugar da linguagem poética e, concomitantemente, anexar elementos essenciais da vida pessoal e social. De hoje? De hoje e de sempre. Pois sua poesia não é didática e sequer datada. A atemporalidade é sua marca histórica. Ela é aliada do leitor que busca ver beleza.

Ver beleza é afundar os dedos no peito até alcançar o coração com as mãos quentes e acolher-lhe os pulsares: os todos-inteiros e os quase-quereres.  As migalhas trituradas e as dores de imensos vermelhidões sangrando coágulos. A beleza da entrega e da recusa. Do amor e da indiferença. Do temor e da licenciosidade. Do mar e do semáforo fechado. Esta é a oferenda, o ofertório, o dom, a dádiva do mundo de poesia que Bresciani nos brinda com ventilação e brisa.

Beleza para todos os tempos, num livro maduro, elaborado, sólido – e, acima de tudo, muito bonito.
____

Publicado pelo Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, maio, 2020. Ano LXXI – Nº3, p. 38-40. Encartado na edição do jornal de 31 de maio de 2020.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular aposentado do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica), Barrocidade (poesia) e Poemail (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos mais recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- Da novíssima poesia paraibana: Edypo, Expedito e Guilherme
- ‘Para quando’, de Kaio Carmona
- ‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho
- ‘Identidade’, de Daniel Francoy

- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido

.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Corpo em Crise: Ensaio a̶b̶e̶r̶t̶o Fechado – Destrinchando o primeiro encontro com o palco



“Corpo em crise é um projeto de música autoral que tem como processo de construção principal etapas de traduções. Primordialmente, busca explorar como as crises políticas e questões efervescentes atuais são traduzidas em sensações pelo corpo. Então, como esses sentimentos podem ser traduzidos em imagens ou enredos mentais, como se encaixam dentro de uma narrativa. A última etapa seria a tradução dessas imagens e histórias em palavras e em sonoridade.

Sendo o corpo o conduíte principal de tais traduções, ele também é o foco das composições, com um toque dançante, às vezes enérgico, às vezes contido. A música intitulada ‘Mãos’, por exemplo, trata de um corpo que vai para as ruas para não permitir que seus direitos escapem por entre os dedos, mas também tateia as memórias de uma infância sem medo. A música ‘Língua’ é malemolência, é gingado, é uma sensualidade que permeia os corpos da noite urbana, que seduz sob as luzes dos postes e dos letreiros de neon.

Cada uma das músicas tem como título uma parte do corpo. Imprime sobre cada membro ou órgão uma identidade relativa a um sentimento, a um movimento, a uma questão política. Afinal, o corpo é político, assim como os espaços que lhe são permitidos ocupar ou forçado a desocupar, qual membro é usado para que finalidade, quem tem poder sobre o corpo de quem.

Em termos de sonoridade, o projeto mistura música pop, samba, rock e eletrônico.

Queríamos compartilhar nosso trabalho em um ensaio aberto marcado para a noite de 16 de março, que precisou ser cancelado por conta das medidas preventivas lançadas pelo governo do estado durante a tarde do mesmo dia, que previa o cancelamento de eventos com público maior que 100 pessoas. Como já estávamos com tudo programado, resolvemos fazer um ensaio fechado, sem público, apenas com a equipe técnica. O ensaio foi gravado e intitulado ‘Corpo em Crise - Ensaio a̶b̶e̶r̶t̶o fechado’.

O objetivo da divulgação do ensaio fechado é trazer para o público o material que temos trabalhado desde que começamos a ensaiar e receber um feedback, saber o que outros olhares tem para contribuir com nosso processo criativo, com a construção de nossa sonoridade e performance.

Em maio, foi aprovado no edital Cultura Dendicasa da Secult Ceará um vídeo onde trazemos falas de integrantes da banda e três músicas do ensaio gravado em março. O vídeo faz parte da plataforma decorrente do edital, que abriga 400 trabalhos produzidos na quarentena por artistas cearenses.” (texto da produção - Corpo em Crise)

O vídeo está disponível no link abaixo:
https://bit.ly/corpoemcrise

Instagram: @corpoemcrise



Sinopse
O ensaio aberto do Corpo em Crise, nossa primeira aparição pública, foi cancelado por conta da pandemia. Resolvemos, então, fazer um ensaio fechado e fazer registros desse momento. Aqui compartilhamos relatos da banda sobre as composições, processo criativo, e três das músicas gravadas nesse ensaio.

Ficha Técnica
Roteiro, apresentação e composições: Corpo em Crise
Vocal: Ailton Jesus
Guitarra: Zarelly Souza
Baixo: João Victor
Teclados, samples e MPC: Marcus Freire
Iluminação: Sinesia Ventura
Técnico de som e gravação: Michel Leocaldino
Filmaker e edição: Linaldo Pereira
Edição final: Marcus Freire
Fotos: Fusion Filmes.

.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Lockdown fajuto e flexibilização capenga: receitas para um ‘puxincói’ anunciado



por Hudson Jorge

Nesse momento em que vemos os casos de covid-19 aumentando descontroladamente em muitas regiões, principalmente no Cariri, há diversos relatos de pessoas que continuam ignorando a gravidade da doença e suas consequências, seja para a saúde individual ou coletiva das pessoas ou mesmo para a economia. São festinhas nas calçadas, churrascos (quase todo mundo tem um vizinho travesso juntando amigos e assando uma carninha regada a cerveja gelada), enquanto outros se enfurnam em suas casas, abrindo mão, inclusive, de se relacionar ou fazer funerais de entes queridos.

Há um tempo atrás eu ouvi de jurista (que não me recordo o nome) que as leis e o Estado existem para proteger o cidadão, inclusive, dele próprio – na época a discussão era sobre regras de trânsito e uso da cadeirinha para crianças (porque muitas pessoas alegam que querem ter o direito de optar pela utilização ou não).

O que vemos aqui é uma sucessão de inoperâncias do Estado, influenciadas por políticas de governos.

Em todas as esferas, os governos estão sendo pressionados a flexibilizarem, inclusive, a rigidez (estranho, não?), e para isso existem vários aspectos influenciadores (economia, ideologia e eleições).

Por mais que o Estado* se esforce para oferecer estrutura mínima de atendimento para infectados, a grande preocupação passou a ser a de que o cidadão tenha um leito para morrer “dignamente”.

Os municípios não operam para fazer valer os próprios decretos estabelecidos, os governos estaduais não agem efetivamente para vigiar e punir os desobedientes, seja por falta de contingente ou por falta de organização.

Enquanto isso, acontece o que acontece: uma parcela da população se protege, se tranca, deixa de ver pai, mãe, familiares e amigos; a outra liga o “foda-se” e descumpre lindamente regras, leis e recomendações.

No final das contas, pagam todos, porque parece que ficaremos girando indefinidamente nessa roda chamada pandemia. Um “puxincói”, como diria minha vó: libera, restringe, libera e restringe. Mas, o pior é ver começar a chegar relatos de parentes e amigos infectados, alguns mortos e o povo, em todo canto, querendo fazer disso tudo um eterno Leblon.

Somos tão incapazes de controlar a pandemia, que o discurso de salvar vidas apregoado pelos governantes de estados e municípios foi revertido para a preocupação de que não faltem leitos nos hospitais.

Isso reforça uma ideia que venho batendo na tecla nas conversas informais: para o Estado somos números. Deixaram de se importar com as vidas, para se importar com os números.

Enquanto o sistema de saúde não colapsar e as pessoas não estiverem morrendo nas calçadas, como aconteceu no Equador, está tudo bem!, está tudo ótimo!, mesmo que morram dezenas, centenas ou milhares diariamente.

“Quanto mais gente morre, melhor”, porque os leitos são liberados automaticamente. Não há colapso, entendem?
_

*Quando me refiro a Estado, falo dos Governos Estaduais e Municipais. O Governo Federal desde o início se mostra incapaz, ao menos, de compreender a situação, o que o torna, infelizmente, ineficaz e inoperante.

foto: Nívia Uchôa (@niviauchoa)

.