terça-feira, 22 de setembro de 2015

Submersa em Adèle



por Débora Costa

Demorei bastante para assistir Azul é a cor mais quente e, quando finalmente me rendi, fui pega de surpresa com tamanha beleza. Acabei repetindo a dose mais algumas vezes e toda vez me saltava um ponto diferente: a representatividade lésbica; a diferença de classes sociais;  a possessividade numa relação; a visão de um homem cis-hetero sobre um relacionamento entre duas mulheres; os abusos profissionais que a equipe técnica e as atrizes sofreram por parte do diretor... E no meio desse turbilhão de coisas, eu decidi me deter a falar do que me encantou desde a primeira vez: Adèle.

O título original do filme é La vie d'Adèle: Chapitres 1 & 2 e ao longo de suas três horas conhecemos uma garota,  interpretada pela Adèle Exarchopoulos, em seu processo de amadurecimento. Nos é permitido vê-la se percebendo no seu querer,  nas suas vontades e, ainda,  nos reconhecermos nela. Abdellutif Kechiche nos carrega para o âmago da personagem, seja através da câmera obscena que mostra tudo tão perto, seja na reprodução de momentos tão despretensiosamente únicos.

Vendo uma representação tão parecida com a realidade, ficamos tão envoltos na história que esquecemos que estamos numa sala escura. E é isso que acontece em todo Azul é a cor mais quente, ficamos tão perto da vida dessa menina que sentimos em nós o que ela sente. O diretor coloca referências literárias e imagéticas sutis dentro do longa, e mesmo assim não nos é quebrada a hipnose pela trama. Como com o cruzar de olhares com a moça de cabelos azulados, Emma (Léa Seydoux), que mesmo sendo prenunciado na cena da leitura de um trecho do livro, La Vie d'Marienne, ainda assim somos surpreendidos como aquele momento afeta Adèle. Ou quando durante a cena da festa, num momento de ciúmes, uma projeção passa uma cena do filme A Caixa de Pandora e parece remeter aos pensamentos de Adèle.

Presenciamos o brotar do desejo e o seu desenrolar,  em meio a uma problematização do dito “natural”: passando pela tentativa frustrada com o Thomas (Jérémie Laheurte) e pelo primeiro flerte e beijo com uma garota. E a partir daí mergulhamos nas suas descobertas sexuais e, principalmente, afetivas. Dessa forma, com o decorrer dessas desconstruções dentro da própria Adèle, a Emma surge. Quanto mais se descobria, mais se envolvia na relação. As cenas das duas sempre são de uma delicadeza que a tensão emocional entre elas vai nos contaminando.

Na segunda parte, o azul deixa os cabelos de Emma e passa a ser o tom frio que colore os dias da protagonista. O desgaste das diferenças corroía o que as duas tinham e vemos mais que nunca a dor de Adèle e sua queda. A linha entre a personagem e a atriz é tão tênue,  que o nome não parece ser a única coisa em comum nelas. Quando assistimos a dor, lágrimas e nariz escorrendo, não podemos dizer de certeza se pertenciam apenas à personagem. A atriz consegue transparecer uma vulnerabilidade que, até nos momentos mais difíceis para a companheira dela, tememos é por Adèle.
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Débora Costa: uma feminista que cursa Direito, participa do P@je e que gosta que só de filmes.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 21, de dezembro de 2014), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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