terça-feira, 15 de setembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado



por Harlon Homem de Lacerda

O que é conto? Tantas pessoas já fizeram essa pergunta e nem sabemos mesmo o que djabo é isso! Chega, então, Guimarães com uma conversa entre o doutor e o valentão manso, de fulô no nome. Uma conversa mesmo, dessas que se tinha antigamente, sentado em mesa de bar ou em cadeira disposta no terreiro. Essa conversa é um conto? Mas aí, perto do fim da conversa é que o narrador de “Corpo Fechado” do livro Sagarana diz que a história vai começar. Essa história é o conto? Manuel Fulô conta uma série de causos pro doutor médico. Esses causos são o conto? Tudo o quê se acha entre o título, a cantiga de roda e o fim da estória é o conto? Por quê? A construção em forma curta de uma narrativa que se resolve num tempo e num espaço únicos é o conto? E o que se faz, nesse caso, com o tempo no qual Fulô andava com os ciganos? E com os valentões antes dele e do Targino? “Corpo Fechado” nos traz várias indagações do ponto de vista formal e não queremos resolver nenhuma delas.

O que queremos é marcar a correlação entre a oralização da escrita e a oralização da forma. Tanto no extrato linguístico quanto formal, o conto “Corpo Fechado”, a exemplo de outros contos ou narrativas de Guimarães Rosa, materializa uma realização popular através de mecanismos de metalinguagem ou de aproveitamento de fórmulas linguísticas usadas normalmente nas conversas, nos já referidos causos – histórias contadas pra passar o tempo ou pra servir de exemplo a qualquer situação. Estes mecanismos e fórmulas estão na possibilidade de acompanhar a narrativa do doutor, do narrador ou do próprio Manuel Fulô ao longo do conto ou do causo. Talvez, quem já presenciou uma conversa jogada fora num fim de tarde possa se apropriar mais do que estamos falando aqui. O mais importante, entretanto, é a possibilidade de a literatura superpor-se à teoria com um tapa de luva sublime.

Com o conto “Corpo Fechado” vamos aproximando-nos do fim do livro Sagarana. A cada leitura surge-nos uma nova possibilidade de questionamento, de surpresa, de problema, de satisfação com a obra rosiana. A cada leitura, sentimos uma possibilidade de fugir às leituras já plasmadas da obra de Guimarães, que, normalmente, ficam na superfície da investigação linguística, onomástica, mística ou apenas histórico-social. Nesse conto, percebemos a novidade da obra rosiana interpondo-se a qualquer limite histórico ou formal. É realmente uma literatura nova, que permanece nova. Não adianta prendermo-nos apenas a fortuna crítica tão abundante e, às vezes, repetitiva da obra do escritor mineiro. Falamos isso pela simples constatação de uma experiência pessoal.

Há pouco menos de um ano, nós lemos o livro Sagarana por completo, conto a conto, mas só nessa leitura mais calma, mais leve, mais livre, encontramos algumas observações tão relevantes para pensarmos a obra de Rosa. Pedimos, então, aos leitores de “Perspectivas do Alheio” que no acompanhe não apenas lendo nossa crítica, mas lendo o próprio texto. É nele que vocês encontrarão a força de Guimarães Rosa e da Literatura Brasileira.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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