quinta-feira, 30 de julho de 2015

Xadrez



por Amador Ribeiro Neto

Ana Elisa Ribeiro (Belo Horizonte, 1975) é poeta, cronista, autora de livros infantis e professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Integra antologias no México, Portugal e França. Junto com o poeta Bruno Brum dirige a Coleção Leve um Livro, que espalha poesia, gratuitamente, pela capital mineira. Em poesia publicou Poesinha (1997), Perversa (2002), Fresta por onde olhar (2008), Anzol de pescar infernos (2013, com o qual foi semifinalista do prêmio Portugal Telecom de 2014). Xadrez (Belo Horizonte: Scriptum, 2015) é seu mais recente livro.

A poesia de Ana Elisa Ribeiro é arquitetada sobre as bases da surpresa e da corrosão. Sua capacidade de reverter a expectativa que os próprios versos constroem é admirável. O inesperado surge com carga de grande informação estética e irônica, na maior parte das vezes. O leitor sente-se contemplado em sua inteligência e sensibilidade.

A empatia se instaura a partir do segundo poema do volume,“Letra”, que diz: “Pareceu-me importante / conhecer-lhe a letra / mais do que a própria mãe; mais do que o tino, os dentes, / os hábitos, a palma da mão; // pareceu-me fundamental / conhecer-lhe a curva do ‘a’ / e a barriga do ‘g’, antes mesmo do pau / e de algum outro pormenor. // Pormenor sim, / embora eu pudesse reconhecer nele /o efeito de salto em queda livre”.

Conhecer alguém pela caligrafia, mesmo sabendo-o “em queda livre”, e o seu sexo, visto como pormenor, inverte a situação costumeira de domínio masculino e coloca em cena um feminismo certeiro. A voz que fala é corrosiva: conhecer a caligrafia “mais do que a própria mãe” e “mais do que o tino” além de debochar da presença da família, e do mundo racional, introduz o tio, obliquamente, em “o tino”. Imagem de sugestão garantida pela presença do vocábulo “mãe” anteriormente citado.

Então o leitor retoma o poema que abre o livro e se depara com um eu-lírico que afirma não haver “palavra para aquele amor”. Por isto mesmo resolve “dedicar a ele um livro inteiro”. Bem, definitivamente não estamos diante de um eu-lírico amoroso até debaixo d’água. Antes: seu amor é debochado e dissimulador. Por isto mesmo, diante de um sujeito de hábitos comuns, que aos poucos se revelam incompreensíveis, ele declara impiedoso: “eu adoraria ser / sua boneca inflável”. Na rota do consumismo que “troca um romance caseiro / por um ar condicionado” não resta muita opção. Ser objeto inflável bota fogo na fogueira das mercadorias que se sobrepõem à arte e ao amor.

Temos em Xadrez uma poesia que examina atentamente a realidade da vida e da escrita. Tudo feito com parcimônia, olhar desconcertante, metalinguagem e humor sarcástico. Todavia, nem sempre este rol de procedimentos leva à realização desta poesia.

O volume possui apenas 45 poemas. Mas alguns não deveriam estar ali. É o caso de “Entradas 3”: “Gastar a margem / escrevendo sobre / o que não tem / palavra // Amar / a margem // Amargar / o amor / à margem”. O vaivém de clichês e trocadilhos previsíveis só prejudica a linguagem do poema. Algo bem diferente do uso que a poeta faz do trocadilho e do clichê, quando os inverte e subverte em “Silêncio”: “Silêncio seu / é não. // Silêncio meu / é clareza. // Palavra / por estas bandas / é luxo”.

O poema “Da fama”, escrito sob a forma de 4 hashtags, detona o mundo das celebridades que, mesmo na hora, ou depois da morte, insistem em aparecer. É um poema breve e muito bem realizado.

Esta Ana Elisa Ribeiro nos pega. E vale. Xadrez: um livro que se lê entre muitas delícias no acerto dos ponteiros entre lirismo e deboche. Entre poesia e palavra num diálogo metalinguístico que produz e desconstrói o objeto de desejo. Ou de desdém.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 24 de julho de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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