quinta-feira, 2 de julho de 2015

Passos partidos



por Amador Ribeiro Neto

Regina Mello (Itaúna-MG, 1959) é poeta e artista visual. Bacharel em escultura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná (UEPR). Artista plástica pela Escola Guignard (UEMG). Fez cursos de extensão em artes visuais, música, filosofia e gestão cultural no Brasil e na Alemanha. Produtora e editora do programa de rádio Tropofonia, da UFMG. Curadora e idealizadora dos projetos Galeria da Árvore, Sementes de Poesia, Ecolivro Brasil, entre outros. Publicou dois livros/escultura intitulados Livro de vidro (2004 e 2005). Autora também dos livros de poesia Cinquenta (2010) e Passos partidos (Belo Horizonte: Anome Livros, 2012). Este, seu mais recente título.

Em Cinquenta o desespero causado pelo vazio, a paixão por jogos sonoros e a fixação na ecologia dão o tom de um livro que, verde, procura por algo além. Algo que, infelizmente, esvai-se atrás de uma emoção buscada à força. Resultado: poemas frágeis. Cito: “dentro de mim / respira leve / a falta do meu pedaço / encontrado / distante / calma / certeza / chama de vida...”.

Por isso mesmo destoa um poema como “Ela derramou lágrimas negras / Que mancharam a pele / E marcaram a alma / Nunca mais ela brilhou / Nem sorriu ou respirou / Hoje, foi confundida com / Escultura de mármore negro”. O sentimento materializado em escultura marmórea possui grande impacto visual. Consequência de um amálgama de imagens concretas bem definidas. O poema é faca cravada no peito dolorido. Pena que esteja praticamente só no livro. Isto é muito pouco. Quase nada.

Passos partidos consolida o procedimento “da moda” de escrever a partir de trocadilhos. Ok: poesia é trocadilho. Mas de som e sentido, notou Jakobson. Do eixo da similaridade sobre o eixo da contiguidade. Não é jogo a esmo. Poesia nunca é o mesmo. É sempre o outro. O surpreendente. E Regina Mello gosta de trocadilhar, de perder-se em aliterações e assonâncias, embriagada pelos torneios de consoantes e vogais.

É o que acontece com “voando dados / mãos dadas / pés dados / unhas dadas / olhos dados / bocas dadas / cabelos dados / cinturas dadas / ombros dados / mãos dadas / braços dados / toda dada / tudo dado / todo dado”. Não dá.

Ou então a poetisa embrenha-se no cipoal de imagens surradas como se a mesmice fosse garantia de espontaneidade. E a espontaneidade, garantia de coloquialidade. Não é. Só há senso comum em “A poesia é fonte de vida / É a infinitude do mar / A simplicidade do amanhecer / A tristeza do entardecer // A poesia é leme da vida / É força de furacão”. Este rol de imagens-feitas sufoca o possível poema.

A vontade de escrever e alongar-se faz com que muitos poemas esvaziem-se e percam o que têm de melhor. Escrever é, no mais das vezes, apagar. Riscar. Deletar. No caso de “O tempo / passa e se arrasta em cores / O tempo / arranca o silêncio do espelho / O tempo / rasga e separa as histórias / O tempo / esparge o sonho para a vida” há bons versos que se diluem no ramerrão das anáforas. Talvez fosse melhor que a poeta se prendesse ao seguinte: “O tempo / arranca o silêncio do espelho / O tempo / esparge”.  Eliminar os outros versos, bastante previsíveis. E cortar o objeto do verbo espargir. Deixá-lo intransitivo projeta a imaginação no espaço. Lembro Robert Browning: “less is more” (“menos é mais”). Poesia é condensação, nos ensina Ezra Pound.

Cito o poema “Brumadinho”: “Montes que se curvam e rolam / Sob as brumas que velam e revelam / As cores dos montes que abrigam vidas / Geradas nas barrigas grávidas da terra”. O poema pode resumir-se aos dois versos iniciais. E suprimir o artigo feminino plural do segundo verso, assim como a metáfora do último verso.

Regina Mello: muitos erros e alguns acertos. Que, todavia, apontam para uma poesia que pode vir a ser expressiva. Aguardemos.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 26 de junho de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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