quinta-feira, 23 de julho de 2015

O azul versus o cinza



por Amador Ribeiro Neto

Marco Aqueiva (Bauru-SP, 1966) é Mestre em Literatura Portuguesa pela USP, onde graduou-se em Letras. Professor de Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa na Faculdade de Ciências e Letras de Bragança Paulista. Integra o coletivo “Quatati”, de produção e divulgação de literatura. Autor da novela Sóis, outono, sou? (2009), do romance Sob os próprios pelos: seres extraordinários (2014). Sua estreia em poesia deu-se com Neste embrulho de nós (2005). O azul versus o cinza / O cinza versos o azul (São Paulo: Patuá, 2012), também de poesia, foi premiado pela Secretaria de Cultura de Atibaia.

Já desde o título cruzado, num espelhamento em quiasmo, intui-se que ao menos duas linhas vão se delinear em reflexo e refração. Ao abrir o livro damo-nos conta de que a capa também é espelhada e que ele é montado ao modo de ponta-cabeça. Quer seja: lê-se o volume invertendo-o segundo o título que escolhemos.

A princípio esta “moda” que os poetas têm de ficar inventando formas gráficas para seus livros só enche de mais confusão as prateleiras. Das livrarias e de nossas estantes. Mas aqui, a forma escolhida, de fato, informa. O leitor está diante de um livro pensado nos menores detalhes. Isto é gratificante. Azul e cinza se cruzam. Versus e versos complementam-se sonora e semanticamente. Não há facilidade no trocadilho. O poeta rompe o esperado e instaura uma provocação: o termo “verso”, enquanto adjetivo, na acepção de contrário, concordaria com que sujeito? E “verso”, como substantivo, significando página oposta à da frente, não reitera o enigma gramatical?

Indo e vindo com o livro em suas mãos, o leitor adentra o jogo de amarelinha. Um procedimento que vem de Poe e chega a Cortázar. Mas que tem um pé fincado lá no Barroco lúdico do vocábulo visualmente desenhado na página branca. Enfim, Marco Aqueiva é um enxadrista da poesia. E ela move-se em suas mãos numa dança constelar.

Em “O azul versus o cinza” notamos a dicção cabralina. Não resta dúvida. Todavia, é uma influência naquilo que um poeta pode oferecer de melhor ao outro: consciência do seu processo de criação poética. E Marco Aqueiva sabe fazer sua poesia desenvolver-se a partir do diálogo com Cabral. Dele extrai a secura e a mineralidade de uma poética substantiva. Bem como a matéria viva de palavras-pedras que imprimem a concretude da vida sem narrações ou psicologismos – reais ou pretensos.

É o que temos no longo e belo poema “No comprimento das tintas”, que começa dizendo: “Modelar o cinza / o cinza em seu acorde baixo e negro / a ferrugem carregada nas unhas / o aço inoxidável adentrando o nervo / a fome, sempre ela, chão mas amorosa // Remodelar o telhado / a respiração encosta suas telhas brutas/ sobre o azul pedra, sem peso sem altura / só então, para melhor sentir o cinza / remodelar o sustento ao estalo do extravio”. O poeta constrói o poema numa engenhosidade isomórfica à da arquitetura de imagens, geradas enquanto desvio semântico. Tudo surpreende. Da fome “chão mas amorosa” até o “sustento ao estalo do extravio”. Poesia se faz com espanto e emoção. Fonte originária da linguagem. O poeta sabe disto.

Mais adiante, no mesmo poema, diz: “Naquela época o cinza / ainda não nos esticava os arredores / as mãos sem projeto / ainda não abriam as rotas para dentro / os pés em torta revista / ainda não se retraíam sob o tráfego / o corpo neste complexo / ainda não se desvinculava inteiro // Naquela época entre dores / preocupações e outros cansaços / toda erosão do corpo redescobriu-se / nos lençóis de asfalto”.

Já em “O cinza versos o azul”, a dicção cabralina arrefece, abrindo território para um coloquialismo elegante e leve. Dialoga tanto com Gregório como com Drummond. A figura reiterativa é a da construção física da cidade e suas vias. Espelhando um eu que se dissimula na concretude dos pétreos versos.

Marco Aqueiva não escreveu apenas um livro: projetou sua poesia para o mais exigente e sedento leitor. É de poetas assim que nossa poesia se faz, à vera. 
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 17 de julho de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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