quarta-feira, 22 de julho de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Febre e Mato



por Harlon Homem de Lacerda

Essa coisa de traição, de ser traído, de se sentir traído é coisa doída, meio doida. Primo Ribeiro que o diga, primo Argemiro que o sinta. Não é só aquela característica fundante da prosa rosiana que embeleza o terceiro conto do livro Sagarana: “Sarapalha”. Aquela coisa de o espaço ser gente, ser ente de ação e movimento. O diálogo entre os primos sobre a prima e o vaqueiro de Iporanga é construído num crescendo culminando na impossibilidade da morte – sendo a morte próxima e dolorida tão certa – e a na expulsão. O diálogo entre os doentes, em meio a seus devaneios e a ordem do dia, pautada nas vindas dos sintomas da maleita, é sobre Luisinha, Luísa. A mulher de Ribeiro que se foi embora com outro. Argemiro, o outro, é um outro que gostaria de ter sido o outro, mas não teve coragem ou teve pena. A leveza como a tessitura é cerzida pelo narrador mantém-se até a última linha do conto. Ribeiro descobriu que foi traído em pensamento por Argemiro. A vingança pesada contra o primo foi só pela impossibilidade de vingar-se de quem realmente o traiu, sua mulher.

Tem muito mais coisa nesse conto que faz a gente repensar, ruminar – como gostava Guimarães. Tem a preta que não aparece, que é cenário, cenário mais parado que o espaço. O sol caminha, as plantas agem. Tudo em volta tem movimento, mesmo um movimento adoentado, atingido pela malária. Tem o cachorro Jiló e sua dúvida em acompanhar o Argemiro ou ficar com Ribeiro. Tem a estória do capeta irado em moço bonito que carrega a menina moça no rio, querendo ser o fio narrativo de uma estória que só existia na cabeça de Ribeiro. A possibilidade de Luísa voltar, de ela chorar ou de ela ter ido aos infernos.

Mas tudo em “Sarapalha” é lento, puxado, adoecido, adormecido, variado como a maleita, a malária. As histórias começam entrecortadas, sem ânimo, com muitas reticências no final de cada frase, às vezes de frases de uma palavra só. Até a covardia de Argemiro em declarar seu amor pra Luísa, deixando-a escapar com outro, é morosa, é lenta, tarda a ser contada. Há fios que não se fecham na história, como os fios da trepadeira que transforma as casas em ruínas, sem dono, sem gente, fios que são como a doença que sobe rio abaixo e rio acima, e se acaba como a doença, que chega, de repente.

Tudo é forte em “Sarapalha”: as cores, a dor, a febre, a arte.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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