terça-feira, 31 de março de 2015

A cuspida de Dona Anita



por Harlon Homem de Lacerda

Há uma atmosfera de envolvimento afetivo entre Clarice Lispector e público que, mesmo quem nunca a leu, cita constantemente passagens de suas obras (até sem saber se ela escreveu realmente aquele trecho ou citação). Clarice parece fornecer o alimento para o zeitgeist contemporâneo e, sem dúvida, a expressão de sua narrativa consubstancia sentimentos e realidades tantas e impede que passemos por ela sem ao menos nos encantarmos. Este encantamento será tratado aqui ao falarmos sobre a ação de uma personagem: a cuspida de Dona Anita, no conto “Feliz aniversário”.

Conto do livro Laços de família, “Feliz aniversário” constrói em nossa mente a imagem de um palco escuro com um canhão de luz sendo apontado num momento para a nora de Olaria, noutro para Zilda, noutro para a velha imóvel à cabeceira de uma mesa de aniversário suja e vazia de qualquer amor e assim para cada uma das personagens desnudadas em suas aparências mofadas e suas angústias pequeno-burguesas.

Depois de entrarem todos os “cornos, maricas e vagabundas” no velho sobrado para comemorar os oitenta e nove anos da matriarca (menos Rodrigo, o neto viril que é carne do coração e não do joelho como os outros), presenciamos uma sequência de desafetos, intrigas, hipócritas retorcidos em seus discursos vazios. Somos, entretanto, guiados até a aniversariante através de um magnetismo construído magistralmente pela narradora.

É no quarto parágrafo do conto que tomamos conhecimento de Dona Anita: um parágrafo de uma oração. Em outros três parágrafos igualmente curtos, indicando talvez a solidão daquela senhora, a sua coisificação transformando-a quase em mais objeto do espaço da sala, somos informados do tédio que a define. O canhão de luz, então, é apontado pra velha iluminando seus pensamentos: conhecemos o extremo desgosto dela ao ver no quê sua família se tornou. Toda aquela angústia, desespero, tristeza conhecidos por nós através de seus pensamentos é materializado pela cuspida. Uma das poucas ações físicas da personagem, além de piscar, falar umas poucas palavras de despedida, quase sorrir e pedir vinho.

A cuspida de Dona Anita é a materialização do sentimento de derrota, de uma vida jogada fora ao ver no que a família dela se tornara. A cuspida é a necessidade de purgação de um veneno borrifado ano após ano pelas carnes de joelho que nem sabiam escolher esposas, não tinham vigor algum, não tinham vida. A cuspida de Dona Anita é o anticlímax de uma festa fracassada, sem alma, sem razão de ser, feita apenas como uma obrigação porque a velha ainda está viva. A cuspida de Dona Anita é a ação, o único ato legítimo numa festa ilegítima. Dona Anita cospe a hipocrisia de toda uma sociedade alimentada em aparências, em distorções, em relações vazias, em reificação, em alienação. Dona Anita cospe o fracasso da sociedade ocidental.

Neste conto curto encontramos uma razão para entendermos o encantamento que Clarice Lispector nos provoca. Neste encantamento provocador compreendemos a força de uma narrativa alicerçada no dilaceramento do véu de Maia, que obscurece nossas relações cotidianas. Por este e outros motivos, louvemos Clarice Lispector e tentemos lê-la de verdade, além das citações, além das redes sociais. Um brinde a Clarice!
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

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