sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Múltiplo Caetano

por Fábio Vieira

Lançado em 24 de novembro de 2010, num restaurante à beira-mar do Cabo Branco, em João Pessoa, o livro Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (Orobó Edições) apresenta oito ensaios que falam sobre as canções, a prosa e o cinema de Caetano Veloso. Sob a organização do escritor e professor Amador Ribeiro Neto o livro é fruto da pesquisa “O neobarroco em Caetano Veloso” desenvolvida com alunos da graduação e pós-graduação do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.

Na introdução, Amador Ribeiro ilumina as bases teóricas da pesquisa e justifica o projeto de leituras, antes adverte que é apenas uma forma de ver a produção do compositor baiano, sem desejos totalizantes nem redutores. Apoiando-se em Severo Sarduy e Lezama Lima, aproxima os recursos estilísticos presentes na obra de Caetano aos procedimentos típicos do neobarroco: proliferação de termos, inversões, sintaxe inusitada, perda do objeto, metalinguagem, condensação. Elementos que promovem a erotização da linguagem e o júbilo da obra artística através da sabotagem do eixo denotativo e do desvio logocêntrico.

Daniel Sampaio de Azevedo faz interessante leitura da canção “Meu Rio” do disco Noites do Norte (2000), na qual destaca a maneira original com que Caetano amalgama as metáforas, a melodia e a naturalidade da fala cantada. Toma como referência as categorias de modalização da canção elencadas por Luiz Tatit no livro O cancionista. Composição de canções no Brasil: “tematização” (projeção das consoantes em staccato), “passionalização” (projeção e alongamento das vogais) e a “figurativização” (canto em forma de fala natural).

Kátia Fonsaca lê a canção “O herói” presente no álbum (2006) problematizando os termos “homem cordial” e “democracia racial” através das discussões apresentadas por Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro sobre a formação do Brasil. Kátia afirma que Caetano coloca essas referências em rotação através da contradição dos argumentos e da sintaxe de justaposição de contrários. Além de introduzir, pensando com os meus botões, a paródia dissonante de Castro Alves: “que a brisa do brasil BRiga e balança”. O termo “beijo” deslocado para “BRiga” (reforço do grupo oclusivo/vibrante), reflete e refrata provavelmente os conflitos desse desvio histórico do “beijo” cordial para a “briga” social.

Em outro momento, Kátia Fonsaca fala sobre as ligações entre a figura de Carmem Miranda e o Tropicalismo, os motivos de orgulho e vergonha provocados por esta portuguesa, e a assimilação crítica de Caetano posta na música “Tropicália”, híbrido entre cultura pop e dadaísmo: “Carmem Miranda da da da da”.

Em seguida, Ana Lopes chama a atenção para a saturação das cores nas canções do compositor baiano. Repetição de termos ligados ao campo semântico da luminosidade (“sol”, “lua” e “estrelas”) e a superabundância de cores são características que autorizam a autora a nomear de “barrocanção” essas composições de Caetano.

Karina Fonsaca, por sua vez, analisa de maneira perspicaz uma cena do filme de Caetano Veloso O cinema falado (1986) em diálogo com o poema “Organismo” de Décio Pignatari. Sugere que em ambas as linguagens há a presença das ideias desenvolvidas por Sierguéi Eisenstein, nas quais o processo de montagem se dá pelo choque de opostos e não pelo encadeamento linear dos quadros.

Já Leonardo Davino de Oliveira, atualmente doutorando em Literatura Comparada, faz uma leitura das canções “Feitiço” e “Namorado”, ambas do disco Eu não peço desculpas (2002). Baseando-se no conceito de paródia (“canto paralelo”) desenvolvido por Severo Sarduy e Haroldo de Campos, Leonardo entra nas texturas da canção com sensibilidade e argúcia, para nos revelar o poder de reflexão que o provocador Caetano tem. Ao ler a canção “Zera a Reza” do disco Noites do Norte (2000), destaca os espelhamentos, os anagramas e as intertextualidades da composição para nos convencer de que a Bahia já deu a Velô a régua e o compasso, o dom de iludir, e o jeito de corpo entre o prazer e a dor.

Por fim, Amador faz uma análise de vários trechos de canções a partir do mote metalinguístico, espelhado no texto autorreferente da metacanção. Destaca as canções menos populares, que escondem mais do que mostram, “que não se entregam de imediato”. Cita o livro inovador de Augusto de Campos Balanço da bossa e outras bossas que faz leitura inaugural das canções da Tropicália, ressaltando o caráter inventivo das composições. Amador, que escreveu uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado sobre a obra de Caetano Veloso, ambas inéditas, tem o cuidado para que o diálogo com a teoria não sufoque o objeto artístico, transformando-o em ilustração de um discurso pronto, mas que potencialize a canção a fim de torná-la aberta aos vários prismas e aos múltiplos olhares. A teoria está presente, mas quem sempre sobe ao palco da análise é a canção com seu desejo odara de dizer e de brilhar. O convite ao múltiplo Caetano está feito para que a gente nunca esqueça de que o saber vem junto com o sabor da canção.

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*Fábio Vieira é autor de Oriente ocidente através: a melofanologopaica poesia de Paulo Leminski (Ideia, 2010). Doutorando em Literatura e Cultura pela UFPB. email: fabiovieiramarcolino@gmail.com / twitter: @ffabiovieira

2 comentários:

  1. Olá, Lininha

    Você pode enviar um e-mail para o prof. Amador Ribeiro Neto, organizador do livro: amador.ribeiro@uol.com.br

    Abraço.

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