quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Terceira pessoa do singular


“Qualquer pessoa que se apaixone é uma aberração”

por Raquel Morais

Ela (Her, EUA, 2013), do diretor e roteirista Spike Jonze, conta a história de Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), um escritor profissional de cartas de amor. Recém-separado e acompanhado da solidão, Theodore compra o SO1, o primeiro Sistema Operacional com inteligência artificial, Samantha (Scarlett Johansson). Programada para atender a todas suas necessidades, “ela” atende a demanda maior, a da companhia de um amor.

Apaixonar-se pela voz de um sistema operacional parece ser falta de qualquer resquício de sanidade? Não para Spike Jonze (diretor de alguns videoclipes e de filmes como Quero ser John Malkovich, Onde vivem os monstros e Adaptação), que amplia a relação homem-máquina em um âmbito maior que sua funcionalidade mecânica, criando uma espécie de ficção científica romântica. O filme não se esgota nesta ideia criativa-curiosa de um homem que se apaixona por uma máquina. Em tempos de whatsapp, twitter, facebook e vários outros aplicativos que aproximam-afastam as pessoas, Ela é uma crônica sobre a ilusão da aproximação que tanto vivenciamos hoje. São retratadas as novas configurações do amor e «todos» conflitos afetivos, físicos, éticos e morais que uma história de amor poderia suscitar, sobretudo a solidão e o narcisismo do século XXI, já que o Sistema Operacional Samantha é uma mistura de secretária, mãe, amiga e namorada, uma idealização da mulher feita para agradar. Muitas vezes parecendo ser uma versão feminina do Theodore, já que, em alguns segundos, tudo o que ele conhece e gosta ela não só sabe como também passa a gostar. Quem sabe o SO1 tenha sido apenas um encontro consigo em um momento para reflexão do luto da separação, pois é a partir de Samantha que o Theodore consegue se separar (mesmo!) de sua mulher.

Com o roteiro de caráter existencialista (vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original de 2014), o enredo explora o ciúme, a possessão, a separação, o sexo à distância e a noção de pertencimento nos amores contemporâneos, metaforizando o Sistema Operacional, muitas vezes como as pessoas (do tempo atual) que só estão se relacionando a partir de uma máquina. O filme compara as salas de bate papo, o sexo online, com o sexo com um SO1. O que os difere são os sentimentos, quando eles existem e, por mais ridícula que a situação parecer, ele se sobressai na beleza das imagens. A primeira situação é ridicularizada no filme e, no entanto é algo comum hoje, já o segundo, que a princípio é uma situação vergonhosa e não comum, no filme se torna lindo.

O longa-metragem não mostra datas, mas logo nota-se que se trata de um futuro não muito distante, no qual as máquinas são capazes de desenvolver emoções ou, pelo menos, de satisfazê-las no plano sentimental (porém, esse acarreta o físico). O diretor aposta numa fusão tão completa entre máquina e humano que não se consegue mais imaginar uma interação humana sem logo ter a intermediação de um sistema virtual.

Sua trilha sonora é quase toda instrumental, e às vezes parece participar do filme com outras funções, como é caso da cena inicial que tem o som de uma música que lembra o toque padrão de um celular, ou quando a música é utilizada para expressar o sentimento que os personagens estão sentindo, ou quando ela é utilizada para registrar o momento (função geralmente destinada às câmeras fotográficas).

A câmera se posiciona na tentativa de enganar o espectador. A primeira cena é um close do rosto do Theodore falando coisas delicadas, parece uma declaração, mas quando a câmera abre, em vez de uma pessoa, tem-se um computador. Depois a câmera passeia pelo espaço de um departamento, onde várias pessoas estão cumprindo a mesma função. São imaginadores de um sentimento alheio, pagos para escreverem um possível afeto através de imagens de fotografia, algo que as pessoas querem transparecer, mesmo talvez não sentindo. As montagens, inserções silenciosas de Theodore e sua ex-mulher Catherine (Rooney Mara), mergulhados em tranquilidade, são lindas e têm cores solares.

As atuações correspondem ao teor suave de toda a experiência: Joaquin Phoenix faz de Theodore um homem inteligente, solitário dentro e fora do filme, já que a maioria das cenas são cenas em que ele era o único ator na frente das câmeras. Mas Theodore é, acima de tudo, um homem qualquer, com quem «todos» poderiam se identificar. Já Samantha, o sistema operacional, é vivida por Scarlett Johansson, a voz é uma parte indispensável da atuação (uma versão dublada de Ela destruiria o filme). Sendo afetiva, Samantha pode simular uma essência estável, algo que subverte as representações correntes do mundo digital. O mundo frio da tecnologia é aquecido pela afeição. Sua vizinha e amiga com quem trava vários diálogos maravilhosos, Amy (Amy Adams), nutre uma amizade com outro Sistema Operacional. Para os personagens, o virtual é visto como um modelo de perfeição para o real.

Com tons de pastel, o filme traz as cores rosa e amarelo com presença marcante, tem os dias melancólicos acinzentados e os dias felizes enriquecidos pela luz do sol. Há uma intenção de colocar nas cores o reflexo de instabilidade dos sentimentos de Theodore. Há também uma brincadeira com o tempo, uma inovação com o futurismo propagado pelo cinema Hollywoodiano, o «futuro» desta produção é bastante curioso, já que as cores e os figurinos evocam os anos 1960-1970, enquanto os espaços fazem o possível para remeter a um futuro próximo. Esse futuro é um mundo onde as pessoas nas ruas não se olham, falam sozinhos com seus sistemas operacionais, estão cercados por arranha-céus, se vestem semelhantes e estão sozinhas, mesmo quando acompanhadas. Alguma semelhança com o tempo presente?

Inovando ao falar de um futuro que já pertence ao presente, Jonze surpreende o espectador com a certeza de que esta será apenas uma linda história de amor que celebra as paixões virtuais e defende a inclusão crescente de máquinas em nossas vidas. O filme reserva um final extremamente inteligente. Ela não é uma ingênua celebração da tecnologia, mas uma reflexão sobre «todos» os aspectos que ligam os homens à máquina e os novos limites que estão surgindo com essa interação, assim como os limites do sufoco dos nossos sentimentos e a projeção que fazemos da nossa vida (principalmente no amor) na invisibilidade do meio virtual. Porque não importa a época, as pessoas sempre vão estar à procura do amor, em qualquer «forma-fôrma», colocando o grande tema que é a aberração, que é o ser apaixonado em suas novas configurações. 
____


Raquel Morais assim se apresenta: uma “sei-lá-o-que” que gosta de cinema.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 23, de agosto de 2015), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário