terça-feira, 10 de novembro de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino



por Harlon Homem de Lacerda

“Em ‘Uma estória de amor’, em que se conta a festa de Manuelzão, chegado de menino pobre a encarregado de fazenda. Já no fim da vida, impelido pela vontade de se perpetuar, constrói ele uma capela e inaugura-a com um banquete. Em trilhos paralelos correm as duas ações: a exterior, constituída pela sequencia da festa, a chegada dos convidados, o cerimonial do banquete; e a íntima, o embate de inquietações surdas no espírito frusto de Manuelzão, torturado por ideias de vida falha, solidão, morte próxima. As duas ações chegam a remate no eclodir inesperado, na boca de um velho mendigo, de uma epopeia, milagre cuja vaga intuição integra o sentido da festa e apaga os tristes símbolos da vida incompleta de Manuelzão: o riacho que secou, o cavour que ele almejou por toda a existência e que estava fora da moda, afinal, se achou em condições de adquiri-lo”. (p. 23)

Essa epígrafe um tanto longa foi escrita no texto Rondando os segredos de Guimarães Rosa, escrito por Paulo Rónai em 1956 como artigo e publicado à guisa de prefácio em edições tardias do volume Manuelzão e Miguilim. Uma estória de amor é das estórias menos comentadas dos primeiros livros de Guimarães Rosa. Talvez, não o sabemos ao certo, por ser ela a que mais se encarregou de traçar um comparativo definitório entre o escritor e suas influências designando Manuelzão como pessoa real existente – aliás, o próprio Manuelzão (e seus entrevistadores, como Jô Soares) se encarregou de deixar isso bem claro. Basta dar uma olhada em vários vídeos à disposição no Youtube:

Manuelzão e Jô Soares:


Manuelzão e Bananeira Parte 01:


Entrevista com Manuelzão em 1990:


Eu digo isso assim num é com raiva de Manuelzão não, que ele é um velhinho bem simpático, sertanejo bom de altos costumes – como talvez escrevesse Guimarães Rosa. Raiva, eu tenho é dos tipos capiaus arvorados de grande cultura de civilizações meritórias do alto de seus prédios de tantos andares. Esse povo insiste em designar a literatura de Guimarães Rosa como um resultado direto de sua vida, de suas pesquisas, de suas anotações, das leituras que ele fez dos “Retratos do Brasil”. Se fosse isso Guimarães teria escrito tanta coisa de bonita e eterna? Insisto em pensar que não. Guimarães Rosa inventa, sugere, como bem diz Candido em vários textos.

Como prova peremptória e desfechatória do que quero dizer, deixo uma cantiga de dentro da estória do Velho Camilo pra vocês mesmos pensarem em como a verdadeira arte cria a vida, jamais imita.

O Vaqueiro-Minino e o Boi Bonito

– Levanta-te, Boi Bonito,
ô meu mano,
deste pasto acostumado!

– Um vaqueiro como você,
Ô meu mão,
No carrasco eu tenho deixado!

 – Levanta-te, Boi Bonito,
ô meu mano,
Com os chifres que Deus te deu!
Algum dia você já viu,
ô meu mano,
Um vaqueiro como eu?

– Te esperei um tempo inteiro,
Ô meu mão,
Por guardado e destinado
Os chifres que são os meus,
Ô meu mão,
Nunca foram batizados...
Digo adeus aos belos campos,
Ô meu mão,
Onde criei o meu passado?
Riachim, Buriti do Mel,
Ô meu mão,
Amor do pasto secado?...
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Toda crença tem seu santo
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Febre e Mato
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Sapo ou Cágado?
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ - Sobre ‘O burrinho pedrês’

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