quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Pó de lua



por Amador Ribeiro Neto

Clarice de Souza Freire (Recife: 1988) tem um blogue chamado “Pó de lua – para diminuir a gravidade das coisas”. Segundo ela mesma diz, “um lugar para escrever desenhando” pois, “com a ausência de peso, as palavras flutuam entre objetos que viram pessoas, pessoas que viram palavras e palavras que viram poesia cheia de delicadeza, mesmo nos lugares – e corações – mais pesados”. O blogue tem mais de 600 mil seguidores.

Pois bem, do blogue nasceu seu livro Pó de lua (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014). O volume possui quase 200 páginas. E a poetisa, que assina o livro como Clarice Freire, escreve tão bem quanto desenha. Infelizmente não é possível, no espaço desta coluna, reproduzir seus textos desenhados. Então, ficamos apenas com o texto escrito. O desenho, a partir da riqueza do texto, o leitor imaginará. E, afirmo com quase toda certeza, não errará nos resultados finais.

O livro possui quatro seções: “A lua minguante”, “A lua nova”, “A lua crescente” e “A lua cheia”. Li todas e não vi distinção entre elas. Cito poemas de cada parte. Quem sabe o leitor me auxilia.

Da primeira: “Despedida / É a cara composta / e a alma / vestida de ida”. “Expectativa / É a cara discreta / e a alma / criativa”. “O tempo / é inflexível / Por isso é tão / Duro / Vê-lo passar”. Para o leitor não imaginar que, sadicamente, escolhi três poemas pebas, aviso que citei os três poemas iniciais do livro.

Vamos à segunda parte: “Tentando segurar água / Entre os dedos / Vi o quanto é inútil / Me agarrar aos meus / (medos)”. Na sequência, o poema seguinte continua aterrorizando com o tema medo: “Se o medo / falasse / diria, medroso, que não amasse? / O medo, medroso, decerto, / Calaria. / Decerto, nada diria. / Afinal, para verbalizar que é real a / – miragem – e falar de amor / é preciso coragem. / O medo, medroso, não fica. / Vive em morre de passagem”. “Para não ser dono de / palavras / escorregadias / Preciso de um / – coração – / antiderrapante”.

Agora, a terceira e penúltima parte: “Estranho / como sua mente / quadrada / acabava sempre andando / em / círculos”. Interessante: neste poema a palavra “quadrada” está escrita dentro de um retângulo e a palavra “círculos” dentro de vários círculos. Por que o quadrado virou retângulo se os círculos continuam círculos? Obviamente a ambiguidade da poesia, uma de suas mais importantes características, explica a ilustração do poema. E enquanto o retângulo é vermelho, os círculos são verdes. No caso, vale usar a psicossemiótica das cores para sacar melhor o poema.

E na parte quatro, a última, temos algo bem atual. O poema que a abre está escrito em consonância com a recente e imprescindível moda dos livros para colorir. Ele diz assim: “Manual prático / de como colorir o céu / em 4 partes: / • Entre numa pequena porção / só sua no Infinito; / • Acenda uma chama bem quente por dentro; / • Se dirija para onde for bonito; / • E se jogue no vento”. Em tempo, se Clarice Freire tivesse usado o sinal • no início e no fim dos versos, eu diria que ela estava imitando o Alberto Lins Caldas. Felizmente, não. O Lins Caldas é um e a Freire é outra.

Mas citemos mais poemas desta parte final do livro. Em outra direção, muito em voga, a que discute as relações de gênero no uso da gramática, a poetisa dá sua contribuição: “ – E feminino de / “balão”, / tem? // – É “bailarina”. / Ela flutua e voa / também”. Por fim, para encerrar esta parte final, um poema autopremonitório: “finalmente / caiu / em si. / E foi em / queda / livre”.

O projeto poético de Clarice Freire, ao intitular o livro como Pó de lua, tem uma justificativa: “Uma noite ouvi falar que a lua era bela porque mesmo sendo só de areia deixava refletir a luz de outro e, por isso, nossas noites não são escuras”. Não sei se a astronomia descritiva está sendo usada corretamente. Mas sem dúvida é uma linda explicação no campo da linguagem poética.

Pois é, agora entendo o nexo entre as partes. E não entre cada parte e seus poemas. Os títulos das seções que abrem e fecham o volume remetem ao todo da obra. Quer seja: a poesia é minguante e o leitor, ao final, está cheio. Tudo num crescente, é claro. E a fase nova? Bem, fica por conta da nova poetisa na praça. Graças ao Facebook e aos seguidores da poetisa. Como ela mesma diz, “aprender a usar as palavras foi uma solução para acalmar as inquietações que borbulhavam por dentro desde muito cedo”. Sorte do leitor, a não ser que ele tenha um “coração pesado”.

Bem, aí o caso não é mais de literatura. E não nos interessa aqui.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 20 de novembro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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