quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Saccola de feira



por Amador Ribeiro Neto

Dos 18 livros semifinalistas do Prêmio Oceanos 2015, ficou faltando comentarmos apenas um. É Saccola de feira (São Paulo: nVersos, 2014), de Glauco Mattoso (São Paulo: 1951), escritor com público certo na literatura brasileira contemporânea. E isto não é pouco, num país de parcos leitores.

Sua produção cobre um amplo e rico painel, indo da poesia ao romance, conto, crônica e ensaio. Uma obra que se caracteriza por apurado rigor literário. Glauco Mattoso preza a palavra em suas dimensões sonora, imagética e, acima de tudo, logopaica. Entendendo, por este último termo, a reunião de textos fixados num conjunto de ideias explícito e ludicamente apaixonante. Impossível o leitor não se deliciar com qualquer livro da produção mattosiana.

A poesia de Glauco Mattoso, que é a categoria em questão agora, vem talhada nas pontas das afiadas facas da ironia, sátira e mordacidade. Sempre (per)seguindo a sexualidade, que é o núcleo explícito de sua obra. Não há em sua poesia um erotismo restrito a si, desenvolvido dentro dos prazeres bem aceitos do corpo. Ela tem a rebeldia do gozo da carne liberta de todas as normas e preconceitos. Em termos psicanalíticos, o poeta trabalha a perversão ao elevar ao alto as partes baixas e os desejos socialmente reprimidos. Quando chuta o pau (e a xota) da hipocrisia, coloca o dedo na ferida e revela novos modos do gozo pleno. E, de quebra, libera fartamente os instintos sexuais.

O pé, nosso membro mais fixo ao chão, é elevado aos céus orgásticos. Quanto mais sujo e fedorento, mais gostoso. O ato de beijá-lo, limpa e cristãmente, cede lugar a chupá-lo, imundo e suado, com o gosto acre do chulé.

Seis ilustradores e Julia Marçal, no projeto gráfico, são os responsáveis pelo irreverente, ousado e inquietante corpo visual do volume. Esta visualidade não ilustra os poemas no sentido de repetir o que eles dizem. Antes: estabelece o diálogo, ampliando-lhes a linha radial de significações.

O prefácio, assinado por Susana Souto Silva, é detalhista e esclarecedor. Mas destoa do “conjunto da obra” por usar uma linguagem acadêmica cifrada. A terminologia exige muito e acaba cansando o leitor. É bom quando a linguagem crítica aproxima-se da linguagem do objeto analisado. Ambas agindo na mesma frequência.

O livro, dividido em 4 seções, é lido enquanto unidade homogênea: crítica corrosiva aos costumes da vida e da arte. Em grande linguagem poética. Nada passa incólume ante a pena contestadora de Glauco Mattoso. E isto é raro, na cena tão bem comportada e careta de nossa poesia. Passo agora a citar fragmentos de poemas de cada seção. De “Culinaria vegetaria”: “A comida ella devora / com algum indifferença, / mas aquilo que ella adora / é que, todo o tempo, pensa”.

Na segunda parte, o poeta se apropria de motes conhecidos em “Glosas venenosas”. Uma de suas qualidades é rir de si mesmo: “Cabaceiras, ninguém nega, / já deu puta masochista. / Em São Paulo, em vez da cega, / é fatal que um cego exista: // O poeta, que se entrega, / quando um sádico o conquista. / Quer soffrer, como a collega, / e escutar em tom sarrista: // Dou risada do seu choro! / Cego, engula o desaforo! / Faça mudo a chupetinha! // Você chora e eu dou risada! / ‘Sua avó, puta de estrada! / Sua mãe é femea minha!”.

Em “Glosando a trova”, terceira seção: “Essa falta de decoro / é do Pedro que eu receio, / si ao trovar, por desaforo, / palavrões mete no meio:” E finaliza o soneto: “Não bastou meu quarto verso; / elle encontra um mais perverso: / me deixou de sacco cheio sacco cheio”. Em “Fabulas redondas”, última parte do livro, ávida sexual dos animais é revirada ao avesso. A “conclusão moral” é pândega. E sempre mordaz. Como no soneto “Fabula do sapo que pagou o pato”: “Toda a fauna da floresta / certa noite é convidada / a comer bem, numa festa, / e se anima a bicharada. // Avisado, ao sapo resta / disfarçar, pois tem estrada / garantida quem attesta / ter boquinha apequenada. // Tenta o sapo fazer bico / ao dizer: ‘Com pena eu fico / do hippopotomo, coitado!’ // Não convence, todavia, / e está fora da folia. / Moral: entra só veado”.

E mais não digo. Quem quiser que se delicie com esta Saccola de feira. Bom demais pra poesia. E pra liberar geral muita coisa. Como é prazeroso quando os corpos da arte e da vida se fundem numa só linguagem. Ponto certo no Prêmio Oceanos.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 06 de novembro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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