quinta-feira, 30 de abril de 2015

Visão do térreo



por Amador Ribeiro Neto

Ruy Proença (São Paulo, 1957) é engenheiro de minas formado pela Politécnica da USP, onde também cursou História. Mas,  antes de tudo, é poeta e tradutor. Em poesia publicou: Pequenos séculos (1985), A lua investirá com seus chifres (1996), Como um dia come o outro (1999) e Coisas daqui (2007). Foi editado nos Estados Unidos, França, Portugal, Argentina. Traduziu a coletânea Boris Vian: poemas e canções e Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon. Visão do térreo (São Paulo: Editora 34, 2007) é seu mais recente livro de poesia.

A vertente nasce-morre rasga o volume do começo ao fim. E cava no leitor a sensação tanto da necessidade de viver como a de desconforto ante a inevitabilidade da morte. A morte está sempre presente em todos os horizontes deste livro. Mesmo na celebração do nascimento.

Todos temos uma “invisível cicatriz”, título do poema que abre o livro e que lá pelas tantas joga na cara do leitor: “viver / é cobrir os outros / de cicatrizes / e ser coberto”. O estigma do corte e da cicatriz formam o design da dura linha da vida. A marca do nascimento é a tatuagem natural da morte que trazemos desde o primeiro choro.

Já o poema que encerra o livro, o belo “Adstringência”, o ponto final diante da vida-morte se anuncia assim: “e como a noite / disfarçada de berinjela / pousasse sobre a fruteira da mesa // e pousasse além / aos poucos / sobre todas as coisas // e não houvesse luz / nas lâmpadas / nem no pensamento // abandonei tudo o que estava / ainda por fazer / e me encolhi num canto // e como um caroço / que entra na fruta sem caroço / caí no sono // protegido pela matéria / adstringente da morte / e sua polpa”.

São inegáveis a beleza e a singularidade das imagens que estruturam o poema. O ritmo, igualmente rico, alicerça o rol das ideias em espiral, fazendo o percurso do mergulho no escuro da polpa: vida e morte amalgamadas no mesmo corpo da natureza e da natureza morta. Todo o livro condensa uma armação bem arquitetada. A gangorra das ideias e formas abre mão de ser gongórica para abarcar a semiótica das várias linguagens  interdependentes, interpenetrantes, intercambiáveis.

Tal recurso é um alento num livro que insere a morte em seu lugar fatal e fatídico. Com golfadas de ar. Na vida que resfolega num quarto de UTI. Um fragmento de “Trens urbanos” exemplifica o que buscamos dizer: “Uns  acham que a vida / é preparação pra morte. // Outros, que a morte / é o motor da vida. // Outros não acham nada. / Sobrevivem”. Em nova passagem do mesmo poema ele anuncia: “o rio morto vivo”. Para depois concluir: “O trem para. A porta se abre. / Na falta, // qualquer rua, pra mim, / é rio”.

O poeta sabe cavar no poema o abismo do desamparo humano.

Mas a vida que habita a morte, ou vice-versa, é um processo que também leva a alumbramentos. O poema “Aprendiz” anuncia: “Morrer / morri muitas vezes. // E se ainda estou vivo / não é porque sou como os gatos. // Um campo de dores / farpado / se espalha após cada morte”. E mais adiante ele continua: “sempre que morro / o motor volta a dar partida – // um  ventilador  renasce / lança brisa sobre o campo / enxuga as dores. // Às vezes / hélice ou asa / me leva para o alto de amores”.

Não foge ao poeta realçar o cerne da vida pelo amor nela contido. Ainda que amor e morte andem entrelaçados o tempo todo. 
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 24 de abril de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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