domingo, 19 de abril de 2015

'O Estranho', filme de Orson Welles



Grifo nosso # 83

O Estranho (The Stranger, Orson Welles, 1946)

"O filme menos conhecido de Orson Welles como diretor, O estranho foi um projeto de médio orçamento que ele aceitou do produtor Sam Spiegel para provar que conseguiria fazer um ‘filme dentro dos padrões, comercial’. Representante de uma série de thrillers realizados imediatamente após a guerra sobre a perseguição de criminosos nazistas (dentre outros exemplos estão Acossado [1945] e Interlúdio [1946]), este filme remete à reputação antifascista conquistada por Welles com sua famosa montagem de Júlio César e chega até a encontrar eco em um romance que ele considerou filmar antes de decidir que Cidadão Kane (1941) seria seu projeto de estreia: The Smiller With a Knife, o livro de mistério anterior à guerra de Nicholas Blake sobre o fascismo inglês.

Wilson (Edward G. Robinson), designado como investigador do governo, persegue o carismático nazista Franz Kindler — que é supostamente o inventor dos campos de extermínio — até uma pequena cidade universitária em Connecticut. Kindler está fingindo ser o professor  de história Charles Rankin e a acaba de se casar com Mary (Loretta Young), a filha de um juiz da Suprema Corte. Menos complicado do que o triângulo político-amoroso de Interlúdio, o filme se estrutura sobre um tema parecido, à medida que Wilson tenta persuadir Mary a delatar seu marido cruel, antes de se tornar uma variante daqueles thrillers populares na década de 40 (como À meia-luz [1944] e Inspiração trágica [1947]), no qual um esposo malvado planeja assassinar sua mulher inocente.

Welles interpreta um vilão übermensch convincente entregando-se em um diálogo em que afirma que ‘Marx não era alemão, ele era judeu’, sua podridão destilando-se no mundo insignificante da cidadezinha pitoresca à medida que dá vazão a seu hobby obsessivo, consertando um relógio antigo. O estranho ainda tem a força visual de Welles, porém, em 1946, os filmes noir já haviam absorvido seu amor pelas sombras e pelo grotesco, de modo que ele acaba se misturando aos outros representantes do gênero.

O filme se torna especialmente melodramático no clímax, que se dá no topo de uma escada sabotada na torre do relógio. Kindler é encurralado como King Kong e morto por um boneco mecânico das engrenagens do relógio, que o empala com sua espada estendida — o tipo de violência explícita justificável em um filme hollywoodiano de 1946, se o violão fosse um nazista não arrependido. Antecipando David Lynch por décadas, Welles estabelece uma atmosfera amigável de cidadezinha do interior e a subverte, com filósofos de farmácia que roubam no jogo de damas e rainhas do baile que se casam com fascistas."
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Estados Unidos (Haig, International, RKO) 95 minutos. P&B; idioma: inglês; direção: Orson Welles; produção: Sam Spiegel; roteiro: Anthony Veiller, Victor Trivas, Decia Dunning; fotografia: Russell Metty; música: Bronislau Kaper; elenco: Edward G. Robinson, Loretta Young, Orson Welles, Philip Merivale, Richard Long, Konstantin Shayne, Byron Keith, Billy House, Martha Wentworth; Indicação ao Oscar: Victor Trivas (roteiro); Festival de Veneza: Orson Welles, indicação (Leão de Ouro).
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Kim Newman, no livro 1001 filmes para ver antes de morrer (Editora Sextante, 2008).

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