terça-feira, 7 de abril de 2015

O 'Anjo diluidor', de Jon Moreira



por Amador Ribeiro Neto

Conheci Jon Moreira quando tive a feliz oportunidade de ser seu professor no curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba. Ele ainda não escrevia poemas, embora já se revelasse poeta pelas respostas conferidas aos textos das avaliações de nossa disciplina – Teoria da Poesia – e pelas leituras interpretativas que fazia de poemas que constavam do conteúdo programático e que eram discutidos em sala de aula.

Logo destacou-se na turma. E começou a mostrar-me rascunhos de seus poemas. Passamos a discutir tanto sua poesia como a necessidade de ler-se poesia, em geral, e as teorias críticas. Aos poucos a admiração que passei a nutrir por sua dedicação às aulas, aos estudos e à produção de sua poesia, evoluiu para uma relação de amizade em que a poesia sempre estava em pauta. De fato vivenciávamos o lema barthesiano que há anos emoldura minha atividade no magistério: saber com sabor.

Incentivei a publicação de seus poemas em suplementos literários e em blogues. E, para minha grata surpresa, de repente apareceu-me com Anjo diluidor, seu primeiro livro, que a Editora Patuá ora publica. Pediu-me o prefácio, desde – ele fez questão de frisar – que eu considerasse pertinente escrevê-lo.

Lido o livro percebi, em bom número de poemas, o caminho aberto para um novo poeta. E um poeta que, mesmo novo, na idade e na experiência de criação poética, revela-se promissor.

Anjo diluidor, ao contrário do que pode sugerir o título, não abranda, não suaviza, não rarefaz a concentração de nada. Ao contrário: o nome do volume, retirado de uma canção de outro paraibano, o querido Chico César, remete, isto sim, a uma ironia que perpassa todo o livro. A ironia, registre-se, fina ironia, – diria quase sempre velada – perpassa os poemas como algo dissimulado ou transverso.

O “anjo”, na acepção de ente espiritual ou pessoa bondosa, passa ao largo da poesia de Jon Moreira. Mas deus e religião são temas de alguns poemas. Não para enaltecer a religiosidade – devota ou piegas. Menos ainda para louvar deus. Ao contrário: o que se constata no livro é um ateísmo convicto que se vale do sagrado para desmascará-lo, para despir sua invencionice. Para dar ao homem o que é do homem: poder de pensar-se num mundo em que ele próprio é o dono da história e da linguagem – e não crer cegamente em entes ou valores transcendentais.

A última estrofe do poema “Higgs” pontua: “Um dia que já não bastava / ser-se / Adão, sentindo-se só / Criou Deus”.

A inversão da mitologia judaico-cristã confere ao poema a transversa ironia a que me referi acima. Ela vaza o poema desmontando um dos pilares da crendice ocidental – ou, mais especificamente, a latina – e a latino-americana.

A poesia de Jon Moreira, calcada, antes de mais nada, na busca de uma textura da linguagem, na procura de um rigor da palavra, no zelo com a sonoridade, com as imagens e com as ideias elege, enquanto um de seus modos de expressão determinante, a metalinguagem. Não a metalinguagem explícita, didática e exaustiva. Mas aquela que sabe projetar-se como um elemento sutil, quando na verdade é um tsunami de emoções.

Eis aqui outra característica de sua poesia: ela trabalha a semioticidade da palavra, associada a um feixe de emoções. O leitor sensibiliza-se com esta linguagem de linguagens. Com este corpo a corpo do poeta com a expressão poética. Uma sensibilidade que advém do equilíbrio entre o que se diz e como se diz. Enfim, a emoção nasce do trabalho com a palavra, e não da verborragia destemperada de vocábulos seguidos por interjeições ou reticências.

Aliás, o uso que o poeta faz da pontuação, bem como da sintaxe, e do recorte semântico, resume-se ao essencial. Sempre que possível, a pontuação é suprimida em benefício de uma maior cumplicidade do leitor. A sintaxe promove uma relação limítrofe entre a norma culta e a popular com admiráveis resultados. A semântica sabe colher os vocábulos mais expressivos, quer para afirmar ou negar uma ideia. Enfim, até nisto Jon Moreira sabe manter o leitor cativo.

Ao lado do ateísmo e da metalinguagem, o erotismo apresenta-se em sua poesia de duas maneiras: ora nu e ora cru – fazendo parelha íntima com a pornografia. Aqui, a diferença que estabeleço entre erotismo e pornografia nada tem de moral. Antes: relaciona-se com o modo pelo qual o objeto se a-presenta (heideggereanamente falando) na cena. Se insinuado, ou parcialmente expresso, nomeio-o erotismo; se explícito e desnudado em seu caráter de crueza, pornografia. A nenhum dos dois casos aplico o adjetivo obsceno. A ambos penso o uso da linguagem em primeiro lugar.

Tomemos rapidamente o poema “Beijo”. A genitália feminina desdobra e descola-se entre o vermelho que se estende do batom dos lábios às formas contíguas da vagina. Zona de transição entre os conceitos. De fato, a literatura é o campo dos múltiplos significados e significantes. E sua teoria também o é. Para sorte dos que amam a arte. E para desespero dos aristotélicos e cartesianos de plantão.

Pois bem, para desenhar a imagem pornográfica, encontramos no poema o vocábulo “cu”. O monossílabo tônico, tão forte no som quanto impactante no significado, aparece desprovido de qualquer insinuação. Surge direto e explícito impondo o sexo desnudado e à luz direta: “o beijo / (...) tem forma de cu”. Cito o poema na íntegra:

O beijo
– do excesso de batom
no papel jogado –
tem forma de cu
nas pregas do lábio
no círculo aberto,
vermelho, ágil.

Já em “A primeira manhã” a descrição estampada cede lugar à exposição de ideias dissimuladas. O conceito vai esboçando-se pouco a pouco, com a calma e a intencionalidade do desejo. Os corpos entrelaçam-se na voz do silêncio, trancados um dentro do outro. A imagem é levemente sugerida. O ritmo dos versos arquiteta a estrutura da cena. O amor (enquanto Eros > erotismo) impera ímpar. Eis o poema:

O sol
–  como num clichê de novela –
esperou por nós
e a sós, nascemos.

O silêncio nos foi pai
ao redor das bocas
calou-nos a sete nós
trancando um tão por
dentro d’outro
que ressoa num
a outra muda voz.

Outra marca da poesia de Jon Moreira é a referência – direta ou sutil – à poesia de Augusto dos Anjos, Drummond, João Cabral, Glauco Mattoso, Paulo Leminski, Augusto de Campos, entre outros contemporâneos. O poeta sabe associar a poética da condensação, da negação, da sacanagem, da metalinguagem, da materialidade dos vocábulos a um coloquialismo bem natural e equilibrado.

Ao lançar mão do recurso de versos inteiramente rasurados, é como se ofertasse-nos o rascunho do poema a ser recuperado – ou suprimido. Ou seja: o que permanece como definitivo traz consigo as marcas do que fora efêmero.

Melhor: sutil efêmero. Efemeridade reforçada. Já que o que era para ser ignorado, comparece enquanto sombra do que se firma como realidade. Jogo de luz e sombra – se caro aos poetas barrocos – aqui ressurge refletindo muito mais a prosa poética de Machado de Assis em D. Casmurro, do que as circunvoluções pictóricas daquele movimento artístico.

Digo que em Jon Moreira o par luz-sombra espelha o Bentinho que escreve e apaga “pichações” para Capitu, no muro de sua casa. Em que o próprio narrador machadiano pede ao leitor que “risque” o que ele escrevera em capítulos anteriores. E mais que tudo: ao final do livro, sugere ao leitor que anule tudo que fora lido. E que se dirija a outro livro – aquele que ele promete um dia escrever. Em resumo: o lido deve ser renegado. O que está para ler-se é o que vale.

Fina e corrosiva ironia machadiana. Pois bem: este recurso de “riscar” as palavras, usado por Jon Moreira, faz o leitor descer à gênese do poema e poder constatar sua feitura e sua recusa. Falsa recusa? Melhor dizer: oblíqua recusa que, antiteticamente, às avessas, nega – para afirmar e incorporar o negado. Não como superação dialética, mas enquanto incorporação semiótica da falha.

Pois bem, a poesia de Jon Moreira, ainda que incipiente – repito – anuncia um promissor poeta. Pelo que tenho acompanhado de sua trajetória, aposto na continuidade de suas leituras – tanto de poesia como de teorias – e, por isto mesmo, aposto em seu talento, na continuidade de sua produção poética. O leitor encontra em Anjo diluidor uma expressiva mostra da jovem poesia de hoje. Em tempo: anjo quer dizer enviado. Que poesia oblíqua este anjo nos traz. Evoé!

(Este texto, com breves alterações, prefacia o livro Anjo diluidor, de Jon Moreira). 

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Publicado pelo Correio das Artes, março/2015, ano 66, nº 1, p. 38-39, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, em 29 de março de 2015, na coluna Festas Semióticas.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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