domingo, 12 de abril de 2015

'Soberba', filme de Orson Welles



Grifo nosso # 82

Soberba (The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

"O contrato sem precedentes de dois filmes que Orson Welles assinou com a RKO Pictures em 1940 lhe permitia liberdade criativa total, porém dentro de orçamentos limitados. Soberba é o muitas vezes ignorado segundo filme desse contrato. Ele foi iniciado após o término de Cidadão Kane (1941), mas antes de a ira de William Randolph Hearst ‘arruinar’ a carreira de Welles como cineasta hollywoodiano. O desejo de Welles de levar o romance The Ambersons, de Booth Tarkington (ele também escreveu Alice Adams, Monsieur Beaucaire e os contos de Penrod — todos adaptados para o cinema), para as telas era obviamente um projeto mais pessoal do que Kane. Ele já havia realizado uma adaptação do livro com o Mercury Theatre, que foi apresentado pelo rádio.

Baseado no mundo da alta burguesia da virada do século que Welles recordava da própria infância, Soberba conta a história de George Amberson Minafer (Tim Holt), o talentoso, porém detestável, rebento de uma família aristocrata que recebe o castigo que todos desejam para ele. Além dos demais paralelos, o prenome omitido de Welles era George. Como isso deve ter parecido não só autobiográfico como, à medida que o filme era feito, terrivelmente profético, deve-se dar o crédito a Welles por seu ego ter permitido que Holt, um caubói juvenil em um raro papel sério (que só repetiria em O tesouro de Sierra Madre, de 1948), fosse escalado como protagonista.

Os primeiros 70 minutos revelam o gênio criativo, chegando a superar Kane. O filme começa com uma charmosa, porém mordaz, palestra sobre costumes masculinos, narrada por Welles e demonstrada por Joseph Cotten, e então recria o mundo confuso, tacanho, vívido e estranho dos Ambersons, que é destruído aos poucos pelo século XX — simbolizado, com perspicácia, pelo automóvel — e por suas próprias fraquezas ocultas. Trabalhando com o fotógrafo Stanley Cortez em vez de Gregg Toland, Welles engendra um filme que é tão visualmente impactante quanto Kane, mas que também transmite uma nostalgia mais terna e melancólica de passeios de trenó e cartões de visita, mesmo mostrando como as injustiças de uma sociedade de classes condenam pessoas decentes a uma vida de miséria. O empresário Eugene (Cotten) perde seu amor, a bem-nascida Isabel (Costello), para um palerma de uma família de renome, porém é incapaz de se dissociar da magnificência dos Ambersons, mesmo à medida que o tempo os reduz a frangalhos.

Enquanto Cidadão Kane é composto por uma série de cenas memoráveis, Soberba é um todo impecável: exemplo disso é a sequência de baile em que a câmera rodopia por entre os dançarinos, coletando pedaços da trama e de diálogos, seguindo um elenco numeroso e submetendo-se à música e à história. É uma tragédia que a versão original de Welles tenha sido tirada de suas mãos — confessadamente, enquanto ele estava no Brasil se divertindo e não retornando as ligações — e editada. Nos últimos 10 minutos, o elenco se torna inexpressivo enquanto se arrasta por um final feliz enxertado por alguma outra pessoa (provavelmente pelo montador Robert Wise). É como um bigode pintado no rosto da Mona Lisa, embora a refilmagem de 2002 de Alfonso Arau, que se atém ao fim original de Welles, não tenha sido muito bem recebida: a mágica era obviamente impossível de ser repetida."
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Estados Unidos (Mercury, RKO) 88 minutos. P&B; idioma: inglês; direção: Orson Welles; produção: Jack Moss, George Schaefer, Orson Welles; roteiro: Orson Welles, baseado em livro de Booth Tarkington; fotografia: Stanley Cortez; música: Bernard Herrmann, Roy Webb; elenco: Joseph Cotten, Dolores Costello, Anne Baxter, Tim Holt, Agnes Moorehead, Ray Collins, Erskine Sanford, Richard Bennett, Orson Welles (narrador); Indicação ao Oscar: Orson Welles (melhor filme), Agnes Moorehead (atriz coadjuvante), Stanley Cortez (fotografia), Albert S. D'Agostino, A. Roland Fields, Darrell Silvera (direção de arte).
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Kim Newman, no livro 1001 filmes para ver antes de morrer (Editora Sextante, 2008).

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