"A gente não se perdoa de só agora, na edição 111 [17 a 23 de agosto de 1971], entrevistar uma das figuras mais quentes, mais importantes, mais talentosas da nossa música popular: Luiz Gonzaga, o velho Rei do Baião, nordestino legítimo de cara, alma e coração. Pra compensar nosso atraso, resolvemos (modéstia à parte) dar um banho em matéria de Luiz Gonzaga.
Após a entrevista, ele apanhou a sua sanfona no carro e deu um show pra gente aqui na redação. O negócio foi tão bom que juntou gente na rua. Mas isso não dá pra transcrever no jornal. Foi impossível, apesar dos nossos esforços, botar som nesta edição d'O Pasquim.
O PASQUIM - Luiz Gonzaga, como é que você está se sentindo depois que você voltou à moda?
LUIZ GONZAGA - É danado, né? É melhor vocês falarem de mim porque eu mesmo não sei o que sou, não sei porque falam de mim. Eu não entendo nada, eu vou levando. Pra mim tanto faz. Que é bacana, é, mas deixa o povo falar. Vocês me conhecem mais do que eu próprio.
O PASQUIM - Na época que você esteve afastado aqui do centro do Brasil você não sentiu falta? Você nunca parou de fazer sucesso? Quando os seus discos pararam de vender aqui no sul você continuou a fazer sucesso no interior e no Nordeste, não é?
GONZAGA - É interessante, eu nunca me senti bem para caitituagem. Chegar com o disco debaixo do braço e pedir para tocar, eu sempre achei isso horrível. Eu sabia que se eu caitituasse, se pedisse, se implorasse, eu conseguiria alguma coisa, mas meu temperamento não permitia. Uma vez eu procurei um disc jockey meu conhecido, pela afinidade de termos trabalhado na Mayrink Veiga juntos e ele ser madurão como eu, pedi para ele tocar uma música minha no programa dele e ele me disse: 'Gonzaga, você passou, me desculpe a franqueza'. Aí eu botei minha viola no saco e fiquei com vergonha de chegar em casa. Fui para Miguel Pereira, sumi. Então, daí pra cá eu fechei o balaio. Eu vou dizer o nome dele! Isaac Zaltman.
O PASQUIM - Mas você continuava enchendo praça, auditórios, circo, teatro, no interior do Brasil, não é? Ou você estava parado?
GONZAGA - Tem provérbio que diz: Deus escreve certo por linhas torras. Eu acho que eu estava fazendo um trabalho sério sem saber que estava fazendo. Eu pegava os patrocinadores, botava nas costas e ia cantar pro povo nas festas. Eu, dificilmente, dava espetáculo no cinema, no teatro, pra cobrar, pro povo me ver cantar. Eu cantava de graça na praça para o povo. Então eu consegui reunir as maiores plateias. Daí os meninos iam me assistir, os futuros gênios, como Gil, Caetano e outros e daí saíam querendo tocar sanfona.
O PASQUIM - Você gostou da gravação de'Asa Branca' do Caetano?
GONZAGA - Comentar se eu não gostei ou gostei pra mim não é muito fácil porque eu gosto demais do Caetano, gosto mesmo. Achei o trabalho dele importante, mas eu não posso comentar porque eu gosto demais. Enfim, gostei.
(...)
O PASQUIM - Como é que você consegue patrocínio e as coisas acontecem?
GONZAGA - Por eu viajar quase sempre com patrocinadores, eu me habituei a cantar para público tão numeroso que não me sentia bem em cantar para uma plateia pequena, mesmo pagando bem. Eu me sentia sozinho. Então era um martírio pra mim ter que dar um espetáculo. Até hoje eu me sinto assim. Quando me convidam pra trabalhar numa festa, a primeira coisa que eu digo é: vão cobrar ingresso pra me ver? Se dizem vamos, eu não vou. Eu não gosto. Eu gosto de cantar para o povo livre. Eu acabei achando que fiz bem, que cobrei bem porque todo mundo me viu cantar de graça. Os maiores patrocinadores que eu tie foram: o Moura Brasil, Alpargatas Roda, Martini, Cinzano, Café Caboclo. Isso no Sul. Para o norte, Aguardente Chica Boa, Serra Grande, Pitú, Casas Pernambucanas, Lojas Paulistas.
O PASQUIM - Qual foi o maior sucesso seu, o dia mais glorioso
GONZAGA - Aconteceu comigo em Recife. Por eu estar habituado a cantar pra milhares de pessoas, por mais que eu pedisse pra fazer os espetáculos em praça pública, os diretores da rádio terminaram e me botaram dentro da rádio. Então, eu fui pra rádio, eu cheguei na rua onde estava a rádio e vi um público enorme interrompendo o trânsito. Eu não sabia o que estava acontecendo. Achei que podia ter sido um incêndio, qualquer coisa. Parei o meu carro e vim a pé pelo meio do povo. Aí eu perguntei a um popular: escuta, o que houve ali? Ele me disse: o Luiz Gonzaga vai cantar aí hoje e o povo não pode entrar porque não coube. Aí eu tive a curiosidade de observar o tamanho do público, mas eu não podia, tinha que trepar em alguma coisa. Era um mar de gente. Aí eu não me contive e tive que cantar na rua.
O PASQUIM - Você é um homem rico?
GONZAGA - Não. Sou um homem que não botei pra fora o que ganhei.
O PASQUIM - Quer dizer que o Luizinho [Gonzaguinha] tá garantido?
GONZAGA - Luizinho tem uma reguenguela muito boa.
O PASQUIM - Você deu um conselho pro seu filho na televisão, mandando ele não compor nem gravar, pra ele ser economista e juntar dinheiro. Você tem medo do futuro?
GONZAGA - Eu não dei esse conselho a ele. Eu disse pra ele fazer música como passatempo. Ele se formou em economia. Se existem milhares de rapazes fazendo o diabo pra se formar em economia, pra serem financistas, por que Luizinho, que se encontra formado, vai abandonar uma coisa que todo mundo deseja?
O PASQUIM - Mas ele é um grande compositor, rapaz.
GONZAGA - Mas ele pode ser um grande compositor e trabalhar também.
O PASQUIM - Mas você só compunha e gravava. Você nunca trabalhou na vida?
GONZAGA - Eu? E fazer show, carregar sanfona nas costas? E pular de bonde andando com sanfona na mão e pegar bonde andando com sanfona na mão, não é trabalho?
O PASQUIM - Tem uma história do Paulo Mendes Campos, não sei se você conhece. Um cara chegou na casa dele e ele estava na máquina escrevendo. Aí ele virou pro Paulinho e disse assim: se eu soubesse escrever ia ser igual a você. Nunca ia trabalhar na vida.
GONZAGA - Vocês são formidáveis, logo bagunçam o negócio.
(...)
O PASQUIM - O seu nome todo, onde vocês nasceu, como você começou, esses dados todos, porque você deve ter histórias ótimas.
GONZAGA - Eu nasci em 13 de dezembro de 1912. Nasci na fazenda Araripe, município de Exu. Fazenda da família Alencar, todos sabidos como o diabo, mas eu não aprendi a ler lá porque não deu. Eu aprendi a ler no mundo. Nas placas de rua, decorando os nomes de jornais, decorando tudo por aí. Eu sou filho de dona Santana e o velho Januário, velho macho que me fez.
O PASQUIM - O que eles eram da fazenda? Eram donos da fazenda?
GONZAGA - Donos da fazenda e cedem espaços de terra para os pobres da fazenda plantarem.
O PASQUIM - Seu Januário era o quê?
GONZAGA - Meu pai trabalhava lá. Morava num alugado. Éramos agregados da fazenda.
O PASQUIM - Não é sua fazenda agora, não?
GONZAGA - Não. Quando eu ameacei tirar o meu pai de lá e comprar um pedacinho de terra pra ele, os donos da fazenda disseram: 'Não, nós não vende terra pra estranho, não. Mas pra Januário nós vende um taquinho'. Aí eu adquiri lá mesmo um pedaço de terra onde meu pai vive.
O PASQUIM - Januário está vivo?
GONZAGA - Está vivo. Nós visitamos ele esta semana mesmo.
O PASQUIM - E sua mãe?
GONZAGA - Minha mãe, infelizmente, não.
O PASQUIM - Seu Januário ainda está com os oito baixos lá dele, firme?
GONZAGA - Ainda toca pras moças ouvirem. Não toca profissionalmente.
O PASQUIM - Ele está com quantos anos?
GONZAGA - 85 anos.
O PASQUIM - Naquela época, em 'Respeita Januário' você fala no velho Jacó. Ele existiu mesmo ou foi só pra rimar?
GONZAGA - Não, o velho Jacó existia. Era nosso vizinho lá. Era muito encrenqueiro, bebedor de cachaça. Era um derrotista, não acreditava em nada. Até os 18 anos eu fiquei ali acompanhando meu pai na roça e nos forrós. Onde ele ia eu ia pra ajudar o velho, até que eu arribei. Caí, entrei no oco do mundo até hoje.
(...)
O PASQUIM - Quando é que o Humberto Teixeira apareceu na sua vida?
GONZAGA - Humberto Teixeira apareceu numa fase justamente que eu precisava de um letrista. Eu vinha lutando com outros companheiros, Miguel Lima, J. Portela, mas eles não sentiam o Nordeste. Mas eu não queria cantar uma simples embolada. Eu queria cantar coisas bonitas do Nordeste. Eu procurei ele [Lauro Maia], e ele disse: 'Luiz, eu não posso resolver o seu problema. Mas eu tenho um cunhado que com certeza vai resolver o seu problema'.
O PASQUIM - Humberto Teixeira nunca tinha se metido com música na vida dele?
GONZAGA - Não. Ele já vinha fazendo uns sambas, uns negócios aí. Ele tinha muita tendência pra fazer música meio clássica. Ele escrevia música e tudo. Quando o Lauro me apresentou ao Humberto, eu disse: 'Eu tenho um tema pra você botar uma letrinha. Chama-se Pé-de-Serra. Olha aqui'. Aí ele foi fazendo os versos no joelho. Eu disse: 'Está ótimo, Humberto'. Ele disse: 'Mas isso não é a letra definitiva'. Eu disse: 'Peraí, nessa aí você não vai bulir mais, não. A letra é essa'. Ele disse: 'Não, depois eu vou te dar a letra definitiva'. Quando ele veio com a letra eu ainda achava que a primeira era a melhor. Aí foi um sucesso.
O PASQUIM - Quais as músicas que são tuas e quais as que a ideia é de Humberto Teixeira?
GONZAGA - Ideia de Humberto Teixeira é 'Assum Preto', 'Mangaratiba'.
O PASQUIM - 'Asa Branca'?
GONZAGA - 'Asa Branca' a ideia é minha. 'Respeita Januário' a ideia é minha mas a letra é totalmente dele. Eu só contei a história pra ele. Quando eu voltei pro sertão, depois de 15, 20 anos que eu tinha me afastado, eu queria saber quem era o melhor cantor de lá, ia investigando, querendo saber notícias. Pra todo mundo que eu perguntava eles iam dizendo: tocador aqui é Januário. O menino dele foi lá pro sul, não vem mais aqui, ficou por lá mesmo. Mas Januário aqui é o maior. A primeira música que eu toquei pro público eu notei que o povo não gostou muito. Então alguém gritou: Luiz, respeita Januário. O Humberto gostou muito dessa história e fez a letra.
O PASQUIM - O teu letrista predileto é o Humberto?
GONZAGA - Não tem dúvida.
O PASQUIM - E aquele que era médico, que morreu?
GONZAGA - Zé Dantas? Zé Dantas foi outro caso espetacular. Ele veio na onda do baião. Ficou naquela área de sertão, puro, autêntico, rimas fabulosas, E Humberto nessa área de asfalto, serão, norte, sul.
O PASQUIM - Ele é um craque.
GONZAGA - É. Nós vamos voltar a produzir outra vez.
O PASQUIM - Nesse negócio da volta de Luiz Gonzaga, você não acaha que o pessoal esqueceu um pouco o Humberto?
GONZAGA - Humberto começou a ser injustiçado pelo Ceará, terra dele. Porque Lauro Maia era muito popular lá, os cearenses bebiam com o Lauro, cantavam com o Lauro e ele era tido como líder cearense. Logo após a morte de Lauro Maia aparece Humberto. Aí começaram a acusar o Humberto de ter herdado o baú de Lauro Maia. Isso foi negativo pra ele. Como você sabe, o cantor sempre leva a melhor, e se Humberto tem aparecido, é porque eu faço questão de exaltar Humberto. Lá em Fortaleza nem adianta que ninguém acredita. Ele é um homem injustiçado. Agora, é um homem fabuloso. Ele fez um baiãozinho agora pra o LP 'O canto jovem de Luiz Gonzaga', e você vai ver que beleza. A letra diz assim:
'Bicho, com todo o respeito, dá licença eu vou voltar/ O desafio pra cabra macho enfrentar/ Falei com Carmélio e Sivuca/ Pro Zé Dantas o que eu fiz foi rezar/ Mas o caso é que modestamente/ Bicho, eu vou voltar/ Bicho, falar não é preciso/ Rei Luiz vai me ajudar/ Caetano muito obrigado por me fazer lembrar/ Não a mim mas aquilo que eu fiz/ Pro meu Brasil cantar/ Tá doido é duro seu mano/ A gente tem que respeitar/ Tem Gil, Capinam, tem Chico/ Tem Tom pra dar o Tom/ Mas se pego a viola e ponteio meus acordes mais ternos/ É duro eu me esqueço os invernos/ Bicho eu vou voltar'.
O PASQUIM - A tua relação com Gonzaguinha é boa, Luiz Gonzaga?
GONZAGA - Houve uma coisa muito interessante. Eu tinha muito medo que o Gonzaguinha se desvirtuasse. Viesse a pertencer a um grupo mau-caráter.
O PASQUIM - Quantos filhos você tem?
GONZAGA - Eu tenho um casal.
O PASQUIM - Ele é o mais velho?
GONZAGA - É. Eu tenho uma filha com 19 anos, Rosinha. Pois bem, eu queria fazer aquele tipo de pai durão. Hora de chegar, essa coisa toda e ele muito vivo, inteligente pra burro. Ele não foi totalmente criado por mim desde o início. É uma história muito bonita que existe na vida dele.
O PASQUIM - Você pode contar pra gente?
GONZAGA - Posso. O Luizinho já se libertou completamente. O Luizinho encontrou uma família que dava apoio a jovens artistas e ele se sentiu bem naquele meio e me disse que eu ficasse tranquilo, que eu não me preocupasse, que se por acaso ele não viesse dormir em casa algumas noites, era porque ele estava cuidando de festivais e se sentia bem na casa do Doutor Portocarrero, essa coisa toda. Aí ele foi ficando, foi ficando e finalmente com a vitória dele nos provou que estava certo, não adquiriu vício nenhum, e hoje é ídolo lá em casa. Mesmo que eu quisesse pensar diferente, a Rosinha não deixaria porque é uma amizade muito sincera, muito pura e nós não queremos ser velhos boko moko [expressão da época que significa algo como cafona, brega]. O Luizinho é um rapaz que tem tudo pra se sentir muito seguro. Primeiro nós não escondemos nada dele. Ele é chamado de vez em quando pra ser consultado nos negócios que eu pretendo fazer. Ele pode se considerar filho do povo e isso é muio importante porque Luiz Gonzaga é povo, é gente. Ando de acordo com a minha maneira de pensar, e ele próprio tem poucas coisas a me censurar. Quando tem que discordar ele discorda mesmo.
O PASQUIM - Você gosta das músicas dele?
GONZAGA - Eu gosto muito da linha melódica das canções do Luizinho. Ele tem uma harmonização muito bonita. Eu fico por aí porque eu não entendo bem as letras.
(...)
O PASQUIM - Você disse que tinha um entusiasmo muito grande por Lampião. Você chegou a conhecer o bando?
GONZAGA - Não.
O PASQUIM - Você teve vontade de ir pro bando?
GONZAGA - Tive loucura. Eu era doido que Lampião passasse por Araripe pra eu seguir o bando. Quando deu-se um grito: 'Lampião vem aí!' as famílias todas foram para o mato e eu fui sob protesto. Ele precisava de um sanfoneiro, de um menino de chapéu de couro fazendo bonito e tirando retrato.
O PASQUIM - Quantos anos você tinha?
GONZAGA - 15, 16, por aí. Nós nos escondemos no mato. Aí no dia seguinte minha mãe disse assim: 'Quem é que quer ir lá no Araripe pra saber se Lampião já passou, se o povo já voltou?'. Eu digo: 'Eu'. Aí voltei correndo. Quando eu cheguei no Araripe todo mundo tinha voltado menos nós, e Lampião não tinha passado. Foi quando ele foi ver o Padre Cícero em Juazeiro. Tudo indicava que ele ia passar por ali, mas ele pegou outro caminho. Quando eu voltei pro rancho onde a gente estava escondido eu disse: 'vou me vingar'. Aí gritei: 'Corra gente, Lampião vem aí". Ah, menino. Foi um tal de rede debaixo do braço, todo mundo se arrumando pra correr, aí eu: 'É mentira'. Todo mundo já voltou pra casa, só nós é que estamos aqui. Minhas irmãs, meu pai, minha mãe, todo mundo me cobriu. Levei o maior pau por causa de Lampião. Não conhecia Lampião, mas a primeira chance que eu tive, mandei buscar o chapéu, quebrei na testa, peguei uma sanfona e saí cantando as histórias de cangaceiro por aí.
O PASQUIM - Luiz Gonzaga, o sanfoneiro de Lampião.
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Entrevista publicada na edição 111 do Pasquim (13 a 23 de agosto de 1971).
Postagem neste 13 de dezembro de 2012, data do Centenário de Luiz Gonzaga.
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Obrigada por postar. Amei.
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