quinta-feira, 15 de maio de 2014

Poesia do corpo



por Amador Ribeiro Neto

Depois de ler Corpos em cena, de Susanna Busato (S. Paulo: Editora Patuá) arrependi-me de ter chegado ao fim. Sabe aqueles livros que são tão bons que dá dó terminá-los? Pois este é um destes. Por isto decidi relê-lo.

Depois de relido (existe trilido, tetralido?), quis voltar a alguns poemas. Foi aí que me dei conta de que o volume não possui sumário. Apenas cinco partes distintas. Nada mais. Será isto índice de alguma coisa? Nenhuma página numerada quer dizer o quê?

As leituras me levaram à percepção de que um poema se imiscui no seguinte. Que este, por sua vez, ela-se com o anterior. Em movimento contínuo. Mas mesmo assim insisti em buscar determinado poema. Quanto mais folheava o livro, mais me embrenhava na “selva selvaggia” de imagens da fala e da grafia. Não apenas imagens, mas imagens da fala. E da grafia. Fui percebendo aos poucos que a poesia de Susanna Busato é feita da voz que fala no (e através do) corpo.

E como já nos advertem os linguistas, a fala é composta por milhares de entonações. Tantas, que nem somos capazes de retê-las ao ouvir aquele que fala. Retemos os sentido. O significante, dilui-se no ar. Daí, pressuponho, a não numeração das páginas iconize as inumeráveis entonações da fala.

Mas tantas entonações acabariam em pura perda de sons. O poema se esgotaria. Não é o que acontece: as entonações acabam se resolvendo, e muito bem, em entoação. Em musicalidade. E é aí que entra a dica dos capítulos, intitulados, cada um dos cinco, como “Ato”. Clara referência à arte dramatúrgica. Já que o teatro é, por excelência, a arte da fala. Melhor: é a arte do corpo das personagens que falam.

Seguindo a leitura, damo-nos conta de que os Atos têm títulos que remetem à terminologia musical: Ato 1. Claves do corpo. Ato 2: Sustenidos e Bemóis. Ato 3: Corpo em curva. Ato 4: Bemóis. Ato 5: Breves e semifúrias. Dentre todos, somente o Ato 3 não faz referência direta à música. Mas o “corpo em curva” pode remeter ao intérprete, ao regente ou à própria pauta musical. Movimento que se aclara no título seguinte: Bemóis. E que se beethoveniza (ou wagneriza) no título do Ato 5. Breves e semifúrias: “a língua do poema” “agarrada à forca / canta / calada/ a toada”.

A música vem “ordenar” a fala. Dar forma à anarquia das entonações. Refrear o  que se esquece valendo-se do reforço dos refrãos. Enfim: a música vem organizar o carnaval.

E a cúmplice da música nesta tarefa arranjadeira é a grafia, que se caracteriza pela somatória de um número determinado de sinais. Ela traz a unidade: outro lado da moeda da fala/do corpo. O corpo é um sinal com milhares de entoações. E entonações.

A poesia de Susanna Busato é isto: linguagem que se inscreve nos corpos humanos e nos corpos da matéria escrita. Seu canto é um alerta que se processa pelos meios digitais.  A ciberliteratura perpassa seu livro que, à primeira vista, somente à primeira vista, é um livro de poemas eróticos e – vá lá – feministas. Ele é mais. É poesia digital/digitalizada. Cabe ao leitor perceber estas referências da escrita no corpo de um computador. Um toque sutil que mobiliza outra(s) leitura(s) crítico-interpretativa(s). Isto é bom. É bom demais.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 09 de maio de 2014, p. B-7.

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