
por Ythallo Rodrigues
Django Livre (Django Unchained), de Quentin Tarantino (EUA, 2012)
Não existem verdades mais verdadeiras do que as nossas próprias verdades. Começando pelo fim: um homem negro rodopia em seu cavalo de forma garbosa e épica para sua amada, finalmente livres, das correntes dos seus opressores. Serão felizes? A "América" permitirá? Viverão suas vidas no sul estadunidense? O Texas — um dos estados mais racistas dos Estados Unidos naquele período — os deixaria em paz, em plenas prévias da Guerra de Secessão? Eles precisam dessa felicidade futura, que não está neste filme? Pra que saber? Esse filme não anseia saber o que acontecerá no futuro.
É um filme que trata de questões muito delicadas, esse Django Livre. É possível dar nas mãos de um ex-escravo negro uma arma e ele ser o herói num filme, não um filme de qualquer gênero, um faroeste? E esse filme tem como pano de fundo um dos grandes genocídios da humanidade — a matança indistinta e criminosa de milhões de negros em toda a América — que durou três séculos, pelo menos. É possível dar essa arma a esse homem, independente de qualquer coisa, para que ele possa fazer a sua justiça? Finalmente, esse filme é possível?
Pois bem, este filme existe e é um faroeste de Quentin Tarantino. O western é um gênero cinematográfico criado por realizadores dos Estados Unidos, no início do cinema. Durante as décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950, esse gênero recriou a história estadunidense, a partir de suas lendas e mitos, fazendo-se através de seus contos heroicos — verdadeiros ou não — e de um universo repleto de bravura, luta, brutalidade, racismo, dor, amor, ódio, paixão e morte, muita morte. É impossível dissociar este gênero do cinema dos Estados Unidos, e principalmente da criação da sua história. Então pensemos, um filme deste cineasta, deste gênero, o que teremos? Sangue, muito sangue. Um sangue inclusive que provoca muitas risadas em quem o assiste. E como não rir perante tantos jatos vermelhos? Esta é uma grande homenagem aos grandes faroestes da história do cinema.
Vem-nos, no entanto, uma outra questão delicada. Por que comparar o percurso de um ex-escravo negro ao personagem de uma lenda alemã? Mais uma vez me pergunto, isso é possível? E me pergunto de novo, e por que não? Se alguém deseja criar um nível de conversa com o outro numa relação de igualdade — não falo nisso como num jogo, mas sim com afeto — qual seria a melhor atitude? Creio que não subjugar o outro é um começo. Simplesmente partir das experiências e principalmente das vivências mútuas, criando laços de afetividade para que numa troca entre os envolvidos possa finalmente se estabelecer, por exemplo, uma amizade.
E este também é um filme sobre a amizade, entre um homem negro e um homem branco de origem alemã. Um "alemão" que em uma de suas primeiras galhofas e num gesto muito sutil, quase imperceptível, aponta para quatro homens negros recém libertados a estrela do norte. Qual o porquê desse ato? Aquela estrela os levaria para longe do sul escravocrata, ou seja, eles poderiam finalmente viver suas vidas de homens libertos no norte dos Estados Unidos.
Mas o que tudo isso tem a ver com a tal lenda germânica? A lenda tem a ver com tudo que está posto. As lendas que o western criou para os Estados Unidos — os bravos cowboys brancos —, as lendas dos deuses brancos — alemães, gregos, romanos —, as lendas que o romantismo intocado europeu do século XIX ia buscar na idade média — cita-se inclusive Alexandre Dumas, escritor do romantismo francês de origem negra e que escrevia sobre heróis brancos de sua época —, até chegarmos finalmente à lenda de Siegfried. Percebe-se que aquela lenda germânica de montanhas, dragão e heroísmo, estaria pronta pra ser usurpada de suas origens e estar ao dispor de todos que a desejassem vivenciar ou se fizessem vivenciar, como no cinema, por exemplo. E melhor ainda, por qualquer um, sem preconceitos.
No caso deste filme, a lenda é vivida por um caçador de recompensas, ex-escravo, liberto por um estranho, obstinado em reencontrar sua Broomhilda, sem nenhum pudor de ser comparado com quaisquer que fossem as lendas. Um deus negro tão potente como o mais poderoso dos deuses germânicos, gregos, romanos, ou de quaisquer origens.
Contudo, isso não seria possível? Neste filme isso não só foi possível como desvelou a coragem de um cineasta de fazer do seu Django, um western com um protagonista negro, sem jamais esquecer o cinema — a arte cinematográfica —, sem esquecer a história hipócrita da sua "América", não deixando de ser americano, e capturando uma lenda que brancos criaram para os seus, e igualando-nos para uma conversa franca, sem superiores e inferiores, negros e brancos, sobressaindo-se apenas o vermelho que é espirrado nos nossos olhos. E rimos. O Django está livre, quando jamais deveria ter estado preso. Apesar do mal que há em todos a potência do bem resiste, até a morte, me parece.
____
Ythallo Rodrigues é cineasta, poeta, integrante do Blog O Berro e da Filmes de Alvenaria.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 10, de 13 de novembro de 2013), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário