domingo, 18 de maio de 2014

'Django Livre', de Quentin Tarantino



por Ythallo Rodrigues

Django Livre (Django Unchained), de Quentin Tarantino (EUA, 2012)

Não existem verdades mais verdadeiras do que as nossas próprias verdades. Começando pelo fim: um homem negro rodopia em seu cavalo de forma garbosa e épica para sua amada, finalmente livres, das correntes dos seus opressores. Serão felizes? A "América" permitirá? Viverão suas vidas no sul estadunidense? O Texas — um dos estados mais racistas dos Estados Unidos naquele período — os deixaria em paz, em plenas prévias da Guerra de Secessão? Eles precisam dessa felicidade futura, que não está neste filme? Pra que saber? Esse filme não anseia saber o que acontecerá no futuro.

É um filme que trata de questões muito delicadas, esse Django Livre. É possível dar nas mãos de um ex-escravo negro uma arma e ele ser o herói num filme, não um filme de qualquer gênero, um faroeste? E esse filme tem como pano de fundo um dos grandes genocídios da humanidade — a matança indistinta e criminosa de milhões de negros em toda a América — que durou três séculos, pelo menos. É possível dar essa arma a esse homem, independente de qualquer coisa, para que ele possa fazer a sua justiça? Finalmente, esse filme é possível?

Pois bem, este filme existe e é um faroeste de Quentin Tarantino. O western é um gênero cinematográfico criado por realizadores dos Estados Unidos, no início do cinema. Durante as décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950, esse gênero recriou a história estadunidense, a partir de suas lendas e mitos, fazendo-se através de seus contos heroicos — verdadeiros ou não — e de um universo repleto de bravura, luta, brutalidade, racismo, dor, amor, ódio, paixão e morte, muita morte. É impossível dissociar este gênero do cinema dos Estados Unidos, e principalmente da criação da sua história. Então pensemos, um filme deste cineasta, deste gênero, o que teremos? Sangue, muito sangue. Um sangue inclusive que provoca muitas risadas em quem o assiste. E como não rir perante tantos jatos vermelhos? Esta é uma grande homenagem aos grandes faroestes da história do cinema.

Vem-nos, no entanto, uma outra questão delicada. Por que comparar o percurso de um ex-escravo negro ao personagem de uma lenda alemã? Mais uma vez me pergunto, isso é possível? E me pergunto de novo, e por que não? Se alguém deseja criar um nível de conversa com o outro numa relação de igualdade — não falo nisso como num jogo, mas sim com afeto — qual seria a melhor atitude? Creio que não subjugar o outro é um começo. Simplesmente partir das experiências e principalmente das vivências mútuas, criando laços de afetividade para que numa troca entre os envolvidos possa finalmente se estabelecer, por exemplo, uma amizade.

E este também é um filme sobre a amizade, entre um homem negro e um homem branco de origem alemã. Um "alemão" que em uma de suas primeiras galhofas e num gesto muito sutil, quase imperceptível, aponta para quatro homens negros recém libertados a estrela do norte. Qual o porquê desse ato? Aquela estrela os levaria para longe do sul escravocrata, ou seja, eles poderiam finalmente viver suas vidas de homens libertos no norte dos Estados Unidos.

Mas o que tudo isso tem a ver com a tal lenda germânica? A lenda tem a ver com tudo que está posto. As lendas que o western criou para os Estados Unidos — os bravos cowboys brancos —, as lendas dos deuses brancos — alemães, gregos, romanos —, as lendas que o romantismo intocado europeu do século XIX ia buscar na idade média — cita-se inclusive Alexandre Dumas, escritor do romantismo francês de origem negra e que escrevia sobre heróis brancos de sua época —, até chegarmos finalmente à lenda de Siegfried. Percebe-se que aquela lenda germânica de montanhas, dragão e heroísmo, estaria pronta pra ser usurpada de suas origens e estar ao dispor de todos que a desejassem vivenciar ou se fizessem vivenciar, como no cinema, por exemplo. E melhor ainda, por qualquer um, sem preconceitos.

No caso deste filme, a lenda é vivida por um caçador de recompensas, ex-escravo, liberto por um estranho, obstinado em reencontrar sua Broomhilda, sem nenhum pudor de ser comparado com quaisquer que fossem as lendas. Um deus negro tão potente como o mais poderoso dos deuses germânicos, gregos, romanos, ou de quaisquer origens.

Contudo, isso não seria possível? Neste filme isso não só foi possível como desvelou a coragem de um cineasta de fazer do seu Django, um western com um protagonista negro, sem jamais esquecer o cinema — a arte cinematográfica —, sem esquecer a história hipócrita da sua "América", não deixando de ser americano, e capturando uma lenda que brancos criaram para os seus, e igualando-nos para uma conversa franca, sem superiores e inferiores, negros e brancos, sobressaindo-se apenas o vermelho que é espirrado nos nossos olhos. E rimos. O Django está livre, quando jamais deveria ter estado preso. Apesar do mal que há em todos a potência do bem resiste, até a morte, me parece.
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Ythallo Rodrigues é cineasta, poeta, integrante do Blog O Berro e da Filmes de Alvenaria.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 10, de 13 de novembro de 2013), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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