sábado, 18 de julho de 2020

Isolamento social, ventilação e apneia



por Amador Ribeiro Neto

Quando o poeta Alberto Bresciani escreveu e publicou Fundamentos de ventilação e apneia (São Paulo, Editora Patuá, 2019), ainda não se falava em coronavírus. Porém não deixa de ser indicial que a literatura mais uma vez antecipe a realidade. Senão, consideremos o que uma das estrofes do poema “Metabolismo” pontua:

Pode ser que um vírus se espalhe,
Uma brand new de gripe
Todo acaso pode ser letal

Me lembro que o saudoso Bóris Schnaidernann, em uma de suas aulas, nos dizia que o cinema existe na literatura antes de ser inventado pelos irmãos Lumière, com os planos de câmera, iluminação, fade out e fade in, etc. Iúri Lótman, pai da Semiótica Russa, na mesma direção, não hesita em afirmar que as artes antecipam as tecnologias.

Bem, falávamos da poesia de Alberto Bresciani, e é o que importa aqui. Seu livro, desde o título é um feliz achado em qualquer época. Nesta nossa, de isolamento social e afins, ganha especial realce. Friso: sua poesia não é destinada apenas a este momento, a esta circunstância: ela transpõe o agora porque é: 1. linguagem poética transtemporal e 2. imersão na condição humana. Ou como diria Pound: linguagem carregada de significado.

O livro de Bresciani possui duas partes/dois pulmões: 1. Ventilação espontânea e 2. Apneia. Ambas são coloquiais mas têm, no entanto, distintas dicções poéticas. E tal procedimento oxigena o livro. Lembro-me que comentando Incompleto movimento, livro de estreia do poeta (2011), escrevi: “A poesia de Alberto Bresciani tem um dos pés na busca do coloquial e outro na tradição clássica. Ora acerta, ora não. Ele parece almejar uma descontração da linguagem, mas tolhe-a com construções que lembram a poesia canônica bem comportada. Aquela poesia que nos remete aos neoclássicos, aos parnasianos e até – parece paradoxo – aos simbolistas”.

No livro seguinte, Sem passagem para Barcelona (2015), ele faz uma transição entre o primeiro e o agora lançado. Pois Fundamento de ventilação e apneia vale-se da mais fina linguagem coloquial e poética sem nenhum cacoete literário. Lê-se o livro com desembaraço e leveza tais como se estivéssemos numa sessão de cinema assistindo a um bom filme. E, se faço a comparação com cinema, ela não é gratuita. Desde o livro de estreia, o mundo imagético é uma das dominantes da poesia brescianiana.



Na primeira parte, o tratamento literário, para valer-me aqui de uma expressão cara a Cortázar, tinge-se de tal naturalidade que lemos os poemas em um ritmo que chega a dispensar seus títulos. A poesia flui em música e imagens. A narratividade é de tal forma fluida em ritmo e melodia, que o tema se faz música e dança para o leitor.

Mas há o outro lado da moeda. O medo do inevitável, a crueldade da evolução dos acontecimentos e a inexorabilidade da sequência dos fatos apavorantes ganham igualmente os sentimentos e a cumplicidade de quem lê. A forma poética imanta.  Há desespero e regozijo, febre e gozo, temor e alívio. Pode o leitor vivenciar a catarse, ou o distanciamento brechtiano. Depende de seu grau de consciência/vivência poética. De toda forma – com ou sem trocadilho –, a arte pulsa e impulsiona-se enquanto provocação. Regozijo ou flagelo, cabe a cada um.

Versos como

E então um tombo da cama para a vala
de corpos passados nos desperta,
assusta e empurra e estamos de pé

são um cutucão no leitor apático, ou ao menos, desligado. O que ele fará com este desenredar-se, só a ele lhe cabe. À poesia, a sequência de vogais fechadas (poucas) e abertas nos versos acima, bem como as consoantes linguodentais e bilabiais entre surdas e sonoras, desenham o tombo e o abrir-se para o despertar do novo mo(vi)mento.

No poema a seguir, a urgência do aproveitamento de cada instante faz-se na brutalidade de atos desesperados de felicidade.  O poema que leva o nome de um multicolorido peixinho moçambicano de apenas 6cm, “Nothobranchius Rachovii”, traz a convocação sob forma concisa, leve e breve:

Façamos como killifishes africanos
:que explodem as cores mais violentas,
Cuspamos agora todo som, ódio, fúria

Sabemos que tudo se vai à brevidade
de um único ano e nossas vidas nunca
terão a chance de beber outra chuva

A segunda parte, igualmente narrativa, ao abdicar da terceira pessoa e da fluência rítmica, opta por abrir mão de alguma indagação e mistério. E por trabalhar certa cadeia de sons com mais cadência. 

Agora as emoções nascem de um eu que fala, via de regra, diretamente ao leitor. Mas como aquele é também alguém interessado, parte do problema, a empatia se estabelece com rapidez. Embora com menor taxa de adesão. A dicção da voz poética, ainda que em alta, tem menor amplitude que na primeira parte.

Esta parte, ao ser aberta com uma epígrafe dúbia – “Que a vida não tinha cura, / o tempo me ensinou, e mais tarde” – orienta-se com seguidos movimentos de oxigenação e sufoco, ventilação e apneia. A epígrafe desenha os movimentos que esta seção terá. Poemas como “Escape” e “Corvos” desenham o percurso da vida que se afirma e se nega, avança e retrai, pois a vida não é unidirecional. Antes: é complexa, bastante complexa – e os tempos, côncavos e convexos.

Escape

Tanto rumor nos ossos e ainda
Esperamos a válvula, alavanca
Que desarme, alavanca
Que desarme artefatos fatais,
Espalhados pelos companheiros
De causa, doces irmãos, pais

Erga-se o velame, abra-se o ar,
Venha outra voz, convencimento
De que vale ainda respirar
Neste mundo ou em outro plano
Imaterial, se mais houver além
De nervos vocacionados ao fim

Retorne o tempo gasto no nada
E reconheçamos nossos quartos,
Feridos e mortos, os fantasmas,
Por mais que relutem em abandonar
A cena de sangue que nos retrata
Acreditar pode ser o estopim da queda.


Corvos

Não via os corvos,
mas eram corvos,
prendendo o tempo
E eu criava pombos

Quando você saiu,
as sombras
tinham penas negras
e ficaram pela casa,
pela garganta,
as suas penas

Ontem entendi
e acendi a luz.

Eis uma das belezas de Fundamentos de ventilação e apneia, de Alberto Bresciani: colocar a palavra em primeiro plano, privilegiar o lugar da linguagem poética e, concomitantemente, anexar elementos essenciais da vida pessoal e social. De hoje? De hoje e de sempre. Pois sua poesia não é didática e sequer datada. A atemporalidade é sua marca histórica. Ela é aliada do leitor que busca ver beleza.

Ver beleza é afundar os dedos no peito até alcançar o coração com as mãos quentes e acolher-lhe os pulsares: os todos-inteiros e os quase-quereres.  As migalhas trituradas e as dores de imensos vermelhidões sangrando coágulos. A beleza da entrega e da recusa. Do amor e da indiferença. Do temor e da licenciosidade. Do mar e do semáforo fechado. Esta é a oferenda, o ofertório, o dom, a dádiva do mundo de poesia que Bresciani nos brinda com ventilação e brisa.

Beleza para todos os tempos, num livro maduro, elaborado, sólido – e, acima de tudo, muito bonito.
____

Publicado pelo Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, de João Pessoa, maio, 2020. Ano LXXI – Nº3, p. 38-40. Encartado na edição do jornal de 31 de maio de 2020.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e professor titular aposentado do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Publicou, entre outros livros, Lirismo com siso: notas sobre poesia brasileira contemporânea (crítica), Ahô-ô-ô-oxe (poesia), Muitos: outras leituras de Caetano Veloso (crítica), Barrocidade (poesia) e Poemail (poesia). Mora em João Pessoa (PB).

Textos mais recentes de Amador Ribeiro Neto no blog O Berro:
- Da novíssima poesia paraibana: Edypo, Expedito e Guilherme
- ‘Para quando’, de Kaio Carmona
- ‘Bambuzal’, de Rafael F. Carvalho
- ‘Identidade’, de Daniel Francoy

- A arquitetura das constelações
- for mar
- Poema das quatro palavras
- Hinos Matemáticos
- Dois olhos sobre a louça branca
- Alarido

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário