terça-feira, 18 de agosto de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente



por Harlon Homem de Lacerda

O conto “Minha Gente” é uma viagem sentimental pelo espírito do sertão mineiro, suas fazendas, jogos de xadrez e de amor e morte, política coronelista “daquele tempo de antigamente”. O narrador esmera-se em debulhar cada detalhe da região de Cordisburgo. Sabemos que é Cordisburgo pela rápida referência à Gruta do Maquiné. Em todo o caso, a viagem sentimental do narrador confunde-se com a biografia do autor não pelas ações, mas pelas descrições. Entre o narrar e o descrever não encontramos qualquer abismo entre distinguir e ordenar ou igualar todas as coisas, como o queria Lukács, mas encontramos uma contiguidade entre as duas maneiras de cotejar a literatura, seja no feitio estético, seja no feito saudosista de um conteúdo arraigado a memórias e gostos.

O fato é que, para nós, enquanto “Minha Gente” não se destaca como um dos grandes contos do livro Sagarana, faz a nós mesmos construirmos uma veleidade de sentimentos numa estrada memoriosa de nossos próprios passados e gostos. Faz-nos lembrar, e agora peço escusas a quem não comparte conosco de tais imagens, da serra de Santana. Quem parte de Nova Olinda para Santana do Cariri e, a certa altura dos treze quilômetros, depara-se, ao virar de uma curva, com a visão do Pontal da Santa Cruz, sabe que uma miríade de lembranças salta junto a lágrimas pelos olhos. Cada pessoa e cada momento de nossa infância, no lugar que de costume crescemos e participamos carrega a força das descrições possíveis nos sentimentos rosianos. Cada leitor que tente emparelhar-se ao narrador de Rosa no conto “Minha Gente” irá, em algum momento, lembrar sua própria gente, seu próprio cadinho sentimental, de seu próprio passado, de seus causos, de suas lendas, de seus jogos de amor.

Não percebemos, ao passar os olhos rapidamente, aquele trato com a linguagem, característico de Guimarães. “Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais” relata o próprio Guimarães naquela carta a João Condé, que já conhecemos ao tratar desse conto. Mas a construção do enredo, ao acompanharmos de supetão a morte de Bento Porfírio dá lá seus sustos, tem também suas idas e vindas nas conversas com Maria Irma. O final com Armanda dá um quê de deus ex machina ao conto que, em nosso tino, enfraquece o conto, comprova, talvez, o “descanso” na sua produção. O que fica mesmo de “Minha Gente” é a possibilidade de transcender as Minas Gerais e voltarmo-nos a nós mesmos, co-criando a viagem sentimental com nossas próprias cores e descrições. 
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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