quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Corpos em marcha



por Amador Ribeiro Neto

Simone de Andrade Neves (Belo Horizonte, 1974) é contida na informação de seus dados biográficos. Tal como na poesia de Corpos em marcha (Belo Horizonte: Scriptum, 2015), recém lançado. Antes, publicara apenas um livro, O coração como engrenagem, em 1994. Ou seja, há 21 anos. Boa maturação.

Dela sabemos, pelo próprio livro publicado, apenas isto: “Infância e adolescência na cidade de Dionísio, MG”. Até na foto aparece olhando para o chão, numa imagem desfocada. Pouco, muito pouco. Mas o suficiente para nos darmos conta de que estamos diante de uma poeta que preza a parcimônia e a discrição. Na vida. E, lido o livro, constatamos: também na poesia.

Simone de Andrade Neves traz nova dicção para a cena de nossa poesia contemporânea. Ela poderia seguir as facilidades da nova geração: escrever bobagens palatáveis e digestivas. Apostar na superficialidade, tão bem apadrinhada por teorias e teóricos da moda. Mas prefere ir na contramão. Diz não ao fácil e líquido. Sabe que vale a pena apostar na linguagem e suas estruturas. Faz isto com desempenho admirável.

Corpos em marcha exige mais de uma leitura. Talvez várias. E, como tais leituras são instigantes e reveladoras, são feitas com todo prazer. A poesia de Simone Andrade Neves é seca, dura, tesa. E, ao mesmo tempo, recoberta por alegrias. Alegrias da descoberta de uma poesia que se faz nos interstícios do que é. E do que pode vir a ser. De algo que não se diz de imediato. E entrega-se, por fim, aos que buscam mais que passatempo e fricote na literatura.

Ler Simone de Andrade Neves é nos depararmos com o que a poesia pode nos dar de melhor: taxa de informação que se renova a cada contato. Pound, em algum lugar, disse que “literatura é novidade que permanece novidade; é linguagem carregada de significado em alto grau”. Pois bem, não há como não nos lembrarmos do grande poeta e crítico norte-americano quando lemos Corpos em marcha.

O livro todo, do primeiro ao último poema, é atenta e severa observação sobre o cotidiano mais imediato. Aquilo que é visto e vivido o tempo todo. No entanto, pouco conhecido. Com toda convicção podemos afirmar que não há um único poema que pudesse estar fora deste livro, tal o amálgama que os imanta na teia da mais metálica estrutura poética. Tudo numa polifonia que soa em uníssono. Tudo múltiplo e uno.

Nas orelhas, Mário Alex Rosa observa, com apuro e esmero, que talvez possamos não perceber “de imediato o lado mais dramático e tenso dessa poesia, absortos inicialmente em sua leveza e elegância construtiva”. Ele está coberto de razão. Estamos diante de uma poeta de peso. Cito “Os gados”, poema que abre o livro: “Os bois / cabeças e patas / em círculo centrípeto / urram e propagam / montanhas acima, / às orográficas, uma morte. // Cessado o réquiem / citadinos! / talhamos o bife / frigimos até as vísceras / apaixonados / sem compaixão”. Na primeira estrofe o ritmo das imagens em círculo abre-se para o alto das montanhas ecoando a dor bovina. Na segunda, a descrição cede lugar a um eu-lírico plural, que incorpora o leitor, e atordoa no par “apaixonados/sem compaixão”.

Outro: “Marulho”: “A cólera do mar / na cólica das águas / nos recifes: / choque de água e pedra / nos rochedos / a interrupção. / Ondas do mar / no percurso / da arrebentação”. Simone de Andrade Neves tem no movimento de imagens, sons, seres e objetos, um dos pontos fulcrais de sua poética. O silêncio se dá na secura que impacta o desfecho de cada poema.

Corpos em marcha. Poesia pensada. Poesia sentida. Poesia porrada. 
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 21 de agosto de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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