terça-feira, 4 de agosto de 2015

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira



por Harlon Homem de Lacerda

Olhe só, você escuta a palavra “duelo” e nós já pensamos naqueles filmes norte-hollywood-americanos com Clint Eastwood e por aí vai. Ou quem é mais parecido comigo, lembra a cena antológica de Marty McFly, àquela altura, ele mesmo o Eastwood em De volta para o futuro III ao enfrentar o Bufford “Mad” Taney. A forma é a mesma. Homens a vinte passos de distância, numa rua de terra batida, às vezes uma bola de feno atravessando-se entre eles, pessoas meio escondidas querendo ver o acontecimento, uma hora marcada: “meio-dia” (ou, no caso, de Back to the future, 8:00h, por que o louco Taney gostava de matar antes do café), as mãos alisando o coldre da arma e uma música de fundo.

Mas isso tudo é o duelo lá do far West, o duelo que queremos falar aqui acontece no leste de Minas, isso bem frisado pelo narrador que gosta de informar até os graus de latitude e longitude do acontecido. Enquanto o duelo lá dos texanos acontece para quem é mais rápido no gatilho, o duelo de Sagarana é cozido em água fria por muitos meses a fio. As diferenças ditam o duelo narrado por Guimarães Rosa e os duelos deles lá em cima. A briga nem é só entre Turíbio Todo, o seleiro, e Cassiano Gomes, o soldado reformado. A briga é entre as palavras, entre o tempo e o espaço, entre os rios, entre a fartura e a miséria.

O conto magistral de Guimarães enquadra num pano de fundo de uma luta difusa entre dois homens a natureza mesma da vida humana, das necessidades que carregam as pessoas por muitos caminhos, por veredas, por entre rios – mesopotâmias. O duelo acaba não sendo entre dois homens enfileirados, mas entre o homem e a vida, entre o homem e a natureza, entre o homem e o desejo, a vontade, a busca. Salta no conto “Duelo” a grandeza também do destino. O destino que não nos deixa atravessar três rios, pra não esquecer o bem-querer, que nos carrega pra longe em busca de meios de vida, que nos faz encontrar no mais improvável lugar aquilo que dará termo a nossa vida. Vinte-e-um é carta marcada. É jogo feito de baralho. É a pontuação máxima. Foi justamente esse vinte-e-um, Timpim ou Antonio, que terminou o jogo para Turíbio, o seleiro. Quem deu termo ao jogo de Cassiano foi a vida, ela mesma já tinha dado as cartas para ele – doente do coração.

Quem lê o duelo de Guimarães com a cabeça no faroeste texano, fica tenso, querendo ver bala. As balas surgem à beira do rio, mas fruto de um mal entendido. As balas surgem no final de tudo, quando já não se espera mais morte nenhuma e não temos mais cabeça pra pensar nos texanos com seu feno e sua hora marcada.

Quando terminamos de ler o conto de Guimarães é que paramos pra pensar na “conversa a dois metros de profundidade” que lhe serve de epígrafe.

E grita a piranha cor de palha,
Irritadíssima:
- Tenho dentes de navalha, e
Com um pulo de ida-e-volta
Resolvo a questão!...
- Exagero... – diz a arraia –
Eu durmo na areia,
De ferrão a prumo,
E sempre há um descuidoso que vem se espetar.
- Pois, amigas, - murmura o gimnoto,
Mole, carregando a bateria –
Nem quero pensar no assunto:
Se eu soltar três pensamentos
Elétricos,
Bate-poço, poço em volta,
Até vocês duas
Boiarão mortas...

Duas metáforas para o duelo de Turíbio e Cassiano ou dos dois e a vida são o baralho e os peixes, o jogo e a natureza. Enquanto um quer contar vantagem sobre o outro, armar estratégia e exibir armas, vem a vida, qual enguia – gimnoto – e “bate-poço, poço em volta...” todos nós “boiarão mortas”...
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.


Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Febre e Mato
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Sapo ou Cágado?
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ - Sobre ‘O burrinho pedrês’
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