quarta-feira, 30 de maio de 2018

Aqui-e-agora cinematográfico



por Erick Linhares

A principal arma do cinema é o tempo. O tempo é o playground do cinema. O espaço é instantaneamente deformado em prol da temporalidade que o diretor intenciona em seu filme. O passado é terreno do cinema, não há nada na história pelo que o cinema não tenha se interessado ou que já não esteja resgatado nas telas, com reprodução de cenários, roupas, pessoas e costumes. O futuro é o espaço virtual desta arte. Assim como no passado, as possibilidades de reprodução são infinitas. Temos carros voadores, novas línguas, relacionamentos com robôs, escassez de água e tudo que nossa imaginação projeta para os próximos anos de existência humana.

Mas cada filme terá sua percepção temporal diferente. Em perspectiva, um filme dos anos 20 que tenha como tema a Idade Média seria muito diferente em perspectiva de um filme dos anos 50 que abordasse o mesmo tema, tanto quanto filmes dos anos 90, 2000 e assim por diante. Isso também vale quando a perspectiva é futurista. O que nos diz que o cinema é uma grande possibilidade de comprovação do tempo presente, do “aqui-e-agora”. O presente é o momento do agora onde o passado transita em direção ao futuro, e esta é a perspectiva temporal na qual o cinema está imerso.

Em Rashomon (Dir.: Akira Kurosawa, 1950), o enredo nos leva a conhecer várias versões sobre um assassinato. O momento do tempo presente seria o depoimento de cada personagem, falando sobre um passado que os atravessa. Todos eles viveram aquela história, mas ao descrevê-la, cada um olha para o que aconteceu e mistura com seus anseios e intenções, assim como pensamentos sobre as consequências do que vão dizer, na direção de um futuro que seria o julgamento baseado principalmente nos depoimentos uns dos outros.

Contudo, o autor brinca com o tempo de maneira fascinante. A hora dos depoimentos seria o flashback do flashback. Isso porque o começo do filme mostra a perspectiva de uma personagem que vai contar a história que ouviu, e essa história seria o depoimento das pessoas envolvidas no assassinato. O primeiro flashback é a cena desses personagens falando sobre o ocorrido, o segundo seria a história do ocorrido baseado nos depoimentos de cada um. Ou seja, o filme todo está carregado de passados e futuros, todos deturpados por cada perspectiva. Cada história seria um conto. Poderíamos dizer que essa é a história do cinema, em perspectivas mutáveis, flexíveis, voláteis, mas com uma dose bem generosa do mundo onírico, e isso nos extasia.

Em Abre los ojos (Dir.: Alejandro Amenábar, 1997), o diretor usa o sonho para brincar com o tempo no presente transiente: O protagonista assina o contrato com a empresa que vai congelá-lo em nitrogênio líquido, fazendo com que ele sonhe para sempre e viva assim seus maiores desejos e fantasias com os quais não conseguia lidar no presente. Ele está insatisfeito com seu passado e perdeu sua perspectiva de futuro, depois que um acidente  desfigura seu rosto, a mulher dos seus sonhos não quer mais estar com ele. O filme mostra no sonho vívido que todas as imagens que ele consegue ver e emoções que consegue sentir, ao se relacionar, têm a ver com coisas que ele aprendeu nos filmes, ou num encarte de CD da sua banda favorita, ou de histórias que ouvira de como ter um bom pai ou um grande amor. Todo esse passado se mistura no presente do sonho e vai em direção ao futuro, dos seus desejos, dos seus medos, onde ele passa a vida toda pra preencher a falta que o passado não conseguiu suprir.

O tempo talvez seja umas das maiores questões humanas. E para a montagem no cinema, tempo é tudo. A genialidade de um diretor que saiba brincar com a temporalidade nos faz viajar profundamente no transe que a história quer passar e automaticamente comprar a ideia do diretor/roteirista. O cinema tem várias facetas: cada “aqui-e-agora” é uma cena.

Referências:
BAZIN, A. O que é cinema?, Título original: Qu’est-ce que le cinéma?. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro, Prefácio e Apêndice: Ismail Xavier, São Paulo, Cosac Naify, 2014.
 

CARRIÈRE, JEAN-CLAUDE. A linguagem secreta do cinema. Tradução: Fernando Albagli, Benjamin Albagli, [Edição especial], Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014, (Saraiva de bolso).
 

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Tradução: Carlos Alberto Ribeiro do Moura, 4ª edição, São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2011, (Biblioteca do pensamento moderno).
 

MULLER-GRANZOTTO, M. J. & MULLER-GRANZOTTO, R. L. Fenomenologia e gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.
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Erick Linhares é formado em Psicologia pelo Centro Universitário Doutor Leão Sampaio, onde foi coordenador geral do Centro Acadêmico do curso. Atualmente é especialista em Gestalt Terapia Clínica e atua na área.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 41, de dezembro de 2017), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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