terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Antes de depois



por Camila Prado

No fim da década de 90 do século passado, o psicólogo Arthur Aron, da Universidade de Nova York, desenvolveu e publicou uma pesquisa em que busca comprovar ser possível fazer com que duas pessoas desconhecidas se apaixonem uma pela outra em poucas horas. Como o cupido seria convocado tão infalível e rapidamente? Através de 36 perguntas que os desconhecidos fariam e responderiam um ao outro, seguidas de 4 minutos de observação mútua. O que mais choca nesta pesquisa é a ideia de que é possível apaixonar-se por qualquer um, o que contraria a premissa básica do amor romântico de que a paixão é absolutamente singular, por aquela, e só por aquela pessoa, sua alma-gêmea. No entanto, se conferimos as questões elaboradas por Aron, percebemos que o que elas promovem é justamente que cada um fale sobre si, sobre suas experiências únicas, sobre sua história pessoal e seu modo idiossincrático de ver o mundo. Qualquer um se apaixona pela singularidade do outro que acolhe a sua própria singularidade: seria esta a conclusão?

O primeiro filme da trilogia “Antes de...”, Antes do Amanhecer (1995), de Richard Linklater, apresenta uma mulher e um homem jovens, que se encontram ao acaso em um trem na Europa, e que, após algumas horas de convivência em Viena, se apaixonam. Será a realidade-ficção promovendo o experimento de Aron? Sobre o que con-versa o amor? Sobre cada um. Suas experiências, o que lhes move, o que lhes alegra, o que lhes entristece, o que pensam do amor, da vida, da morte. É claro que o argumento do filme é clichê, um encontro inesperado em uma viagem pelo velho continente em que os protagonistas são jovens, convencionalmente  (embora excepcionalmente) belos, inteligentes, descolados, classe média. Mas é a simplicidade da troca pessoal, que ocorre com tanta fluidez entre eles, o que gera o encantamento do espectador.

Jesse (Ethan Hawke) é um criador de “experiências mentais”. Dos primeiros minutos do primeiro filme aos últimos do terceiro (Antes da Meia-Noite, 2013), ele apresenta várias propostas imaginativas, cujo foco principal é deslocar a experiência ordinária do tempo: imagine-se daqui a 10 ou 20 anos, diz ele para convencer Celine (Julie Delpy) a descer com ele do trem e passar uma noite em Viena. Este, aliás, é, para mim, o ponto fundamental da trilogia, não a paixão, mas o que a paixão faz com o tempo. Desde a distância temporal entre os três episódios, 9 anos entre cada um deles (que um espectador que assistiu os filmes em seus lançamentos também viveu pessoalmente), passando pela sua articulação com o ciclo do dia (amanhecer, pôr do sol, meia-noite), e chegando à experiência cíclica que encontramos entre a primeira cena da briga do casal de meia-idade no primeiro filme e a briga entre os protagonistas no último filme, vivemos experiências temporais múltiplas nestes 18 anos em algumas horas.

No primeiro filme, o que intensifica a experiência do encontro entre os jovens é a brevidade do tempo que terão juntos, que eles resolvem acolher como “eterno enquanto dure”, em jogos de reconhecimento que lembram, em alguns momentos, a experiência de Aron. No segundo filme (Antes do Pôr-do-Sol, 2004), o reencontro, já desde a recriação do antes, publicada como livro por Jesse, termina por esticar o tempo, e o sol se põe exigindo um depois. No terceiro filme, em que o antes já é uma vida comum, com seus desgastes e desencontros, a noite chega propondo um recomeço, que se oferece novamente desde o futuro, através da carta que Jesse “escreve” pela velha Celine. O agora – o que sempre temos e não temos – é sempre o antes de um depois. Mas para viver o agora efetivamente é preciso a paixão do encontro entre os tempos de um e outro. Sair do tempo ordinário e recriar, com/para/pelo outro, a experiência do extraordinário que cada um de nós é.

Ressinto, reassistindo aos filmes alguns anos mais velha, uma transformação realmente significativa nos personagens, que me parece não se dar porque o roteiro é escrito por um olhar um tanto sexista. Esta parcialidade da narrativa se explicaria, segundo alguns, por Linklater ter de fato escrito o argumento inicial a partir de uma experiência pessoal sua, de homem. Ou talvez a parcialidade seja do meu olhar atual, balzaquiano e feminista, sobre a obra, vai saber...

Os recursos do filme são simples: paisagens de cidades da velha Europa (Viena, Paris e uma deslumbrante ilha grega), diálogos ágeis seguidos de alguns silêncios, poucos mas importantes encontros com coadjuvantes, bons atores e uma trilha sonora que aparece em breves e significativos momentos, sem apelos à emoção fácil. Uma trilogia que vale a pena ser vista e (ser) revista.
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Camila Prado é professora e gosta de janelas.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 34, de agosto de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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