quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Garimpo



por Amador Ribeiro Neto

Líria Porto (Araguari-MG, 1945), poeta, publicou Borboleta desfolhada (2009), De lua (2009), ambos em Portugal, e Asa de passarinho (2014), que comentamos nesta coluna há pouco mais de um ano. Garimpo (Belo Horizonte: Editora Lê, 2014) é seu mais recente livro e foi finalista do Jabuti 2014.

A lírica de Líria Porto tem lugar de destaque na nossa poesia contemporânea por aliar concisão, leveza, imagens inusitadas extraídas do mais reles cotidiano. E, acima de tudo, por conferir um tratamento especialíssimo ao trocadilho, que recebe os zelos de som, sentido e imagem em elaborado minério poético.

Ela consegue o que poucos atingiram quando propuseram-se a fazer lirismo com jogos de palavras. Seus trocadilhos têm a rara beleza de uma mistura de certo Bandeira com certo Leminski. Não sendo um nem outro. E estando milhas e milhas distante das gracinhas e facilidades que empesteiam nossa poesia hoje. Líria Porto, penso, ocupa um lugar único nesta serra tão almejada, quanto mal escalada. Sua dicção poética é rigorosamente construída com a emoção mais pensada. Um lirismo arquitetado por mãos e coração que conhecem bem o caminho ambíguo e oblíquo da poesia.

Líria Porto é sensibilidade sem resvalar para a pieguice. Sem querer fazer humorzinho. Sua poesia é pura emoção e festa da palavra. E de palavras.

Por isso mesmo, o título de sua mais recente publicação já traz em si o meticuloso empenho de garimpar, numa metalinguagem que se infiltra em cada poema. O resultado? Poemas puro ouro de mina. Poemas diamantes. Poesia precisa. Obra de rara ourivesaria.

A poesia de Líria Porto pede para ser lida com tempo e atenção. Ela veio para bussolar poetas e leitores. Ninguém sai o mesmo de suas páginas.

Vejamos o poema “Borrão”: “a caneta do poeta / fica assim aos borbotões / como se fora um acesso / de raiva tosse ou vômito / quando uma rima indiscreta / movida pelo complexo / ataca de jeito incômodo / e contrapõe-se”. O poema todo é vazado por rimas toantes. Aquelas que o Cabral usava com a desculpa de não serem minimamente sonoras. Pois aqui ela é o ruído que cava verso a verso. Ora em forma da vogal tônica “o”. Ora como a vogal tônica “e”. Vai perfurando o poema, encharcando-o, manchando seu corpo a golpes de sons secos. Soco na boca do estômago, o poema é um touro. Borrado no chão da arena. Mas permanecendo touro-poema.

Consideremos “Retorno”: “inspiração quando volta / é quase descobrimento / traz navio caravela canoa / e barcos de papel // (às enxurradas)”. A descoberta de que a inspiração é um ‘quase’, vem corroborada pela rarefação dos substantivos do paradigma ‘navegação’: navio > caravela > canoa > barcos de papel. E, ao final, a inspiração rola, isomórfica à iconicidade das águas, aqui representadas pelo uso dos parênteses. Poeta que é poeta sabe desconstruir para, em seguida, edificar. O leitor sai edificado da poesia de Líria Porto.

E o poema inicial, homônimo ao título do livro, diz: “esta procura tem um nome insanidade / passei da idade de tentar fazer sonetos / eu só consigo descrever cinzas e pretos / acho que o verso não alcança claridade // pelas gavetas prateleiras escondidos  / ainda agarro pelo rabo alguns cometas / quero as estrelas não encontro as suas tetas / sinto a fissura dos pequenos desvalidos // a minha escrita sempre foi penosa esgrima / desde menina que não tenho paradeiro / eu aço sapo com bodoque o dia inteiro / nesta esperança de catar melhores rimas // vasculho as glebas / os grotões e quem diria / bateio o sol chego a pensar / que a noite é dia”. Lavar o sol na bateia, tomando a noite pelo dia, tem a magistral força do verso maiakovskiano: “a tarde ardia com cem sóis”.

Líria Porto revolve os meandros da criação. E revigora a tão surrada metalinguagem. Em sua poesia, o fazer poesia é prática reveladora de um mundo que não há. E que passa a ter existência graças ao seu poder de criar mundos no mundo. O poeta é aquele que sabe “o saber e o sabor” da palavra lavrar. Líria Porto garimpa. Com um diferencial: tudo que toca vira ouro. Ela é, e sabe ser, Midas das minas e minerações da linguagem poética. Nós, leitores revolvidos por suas páginas, agradecemos.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 18 de dezembro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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Um comentário:

  1. agradeço o professor amador ribeiro neto e o jornal o berro pela feitura e pela publicação desta matéria sobre meu livro garimpo - grande abraço!

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