quinta-feira, 28 de maio de 2015

Quem tem e quem não tem



por Amador Ribeiro Neto

Charles A. Perrone (1951, Binghamton, New York, USA) é professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Flórida. Estudioso de nossa música popular, publicou Letras e letras da MPB (1988), atualmente em segunda edição. Com orelhas assinadas pelo poeta do menos, Augusto de Campos. O interesse de Perrone por nossa língua e cultura é antigo. Por isto mesmo é fácil encontrar inúmeros artigos seus em livros, revistas e suplementos literários.

Mas, além de tudo, ele é poeta. Sua parcimônia na produção de poesia acompanha a condensação de seus poemas. Publicou Designs (2001), Six seven (2008), Deliranjo (2013). Halves and Have Nots (em tradução livre “metades e aqueles que não têm”) é uma plaquete (Edinburgh, Scotland: Unit4art, 2014). O poema constitui-se de apenas seis versos, mallarmaicamente dispostos na página.

Perrone gosta de valer-se intensamente da palavra. Retira o significante e o significado de cada sílaba. Às vezes, como filigranista que é, chega à exploração dos campos de significação de um único fonema. Coisa de maluco. Coisa de perfeccionista.

E isto ele é de fato. Todo este zelo com a expressão resulta num universo ricamente revelador. Cada poema seu é como um instante de encanto diante do objeto desvendado. Ele sabe tocar o instrumento da palavra em suas múltiplas dimensões poéticas. Por isto mesmo requer uma leitura conscienciosa e disciplinada. Ou, quem sabe, igualmente indisciplinada. Que permita ler sua poesia de trás para a frente. E vice-versa.

A plaquete é formada por um único poema de apenas seis versos. Cito “Halves and Have Nots” no original: “kernels of knowledge / crackers of toy / chip crunching feral // alphabet porridge / sheared locks of joy / mind nearly virile”. Agora a tradução que o próprio poeta me enviou em primeira mão. Segundo ele, um “rascunho”.

Vamos a ela: “Metades e Sem Nadas”: “grãos de sabedoria / bolachas brinquedo / crocante chip febril // mingau alfabeto / corta mecha-alegria / mente quase viril”.

Eu estava apenas trocando mensagens com o poeta sobre a tradução do título, uma vez que eu me aventurara na tradução do poema mas empacara no título. A mim surgiram algumas hipóteses como “Metades e os que não têm nada” que me pareceu, por um lado, recuperar um pouco do trocadilho original. Mas, confesso, achei estranha  a tradução para o português falado no Brasil.

Surgiu-me então “Os que Têm e os que Não Têm Nadas”. Também não me agradou. Daí, considerando o corpo do poema pensei em “Quem tem e quem não tem”, numa tradução que se apropria de grande parte de um verso do Chico Buarque.

Perrone reforça que have está contida anagramaticamente em halves. Eu respondi que pra dar conta do trocadilho, sem perder a poética, só mesmo Augusto de Campos. Acho que do outro lado do meio eletrônico ele riu.

Mas o impasse permaneceu. Já para o poema pensei em “engrenagens do conhecimento / biscoitos de brinquedo / chip triturando ferozmente // mingau de letrinhas / cadeados de alegria abertos / mente quase viril”.

Mas isto são outros quinhentos. E chamo ao debate quem, de fato, conhece a língua inglesa e sabe traduzir poesia. Eu sou apenas um que se atreve. Um intruso que percebeu a beleza da plaquete-poema de Charles A. Perrone e quis trazê-la pra esta coluna. Perrone é um poeta quase bissexto. Mas o que escreve mantém o rigor da linguagem. E a criatividade sígnica em várias dimensões. Um poeta que adentra os sertões e mares bravios dos mundos sempre em aberto dos significados, das significações e dos significantes.

Um poeta para ser lido com o relógio parado. O mais não interessa.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 22 de maio de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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