sábado, 23 de maio de 2015

A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980)



por Ibertson Medeiros

O ineditismo, a novidade, a primeira impressão. Expressões que denotam uma sensação de indiferença, às vezes medo e estranheza diante do desconhecido. São palavras introdutórias a fim de que possa externar qual a minha sensação ao ser introduzido a uma obra do diretor baiano Glauber Rocha. Sim, em todos os meus anos de cinefilia nunca tinha dedicado um tempo para conhecer os filmes desse cultuado diretor. E o resultado é que comecei de uma forma errada, justamente com o seu último filme lançado antes de falecer, em 1981: A Idade da Terra, de 1980.

A pergunta surge: por que começar errado? E respondo: porque simplesmente deveria ter começado a ver filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe ou O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, filmes mais conhecidos e talvez com uma narrativa menos complexa que a de A Idade da Terra. Aliás, narrativa nada linear, diga-se de passagem. Não que isso seja um problema (pelo contrário, é até bom fugir das convenções e quebrar um pouco a normalidade em um filme, não deixar tudo explanado), mas, no caso do filme que comento, o diretor criou aquela que seria a sua tão sonhada obra-prima, um épico, mas que narrativamente não tem o seu início, meio e fim determinados. Simplesmente (ou complexamente) é uma montagem de cenas aleatórias, diálogos aparentemente nonsense e uma alegoria carnavalesca sobre a decadência de um país, através de simbolismos religiosos e sociopolíticos. Isso tudo em 148 minutos de duração!

O filme, baseado em um poema de Castro Alves, é caracterizado por longos planos, repetições de diálogos e cenas que beiram o surrealismo. Trata-se de um simbolismo maior para falar do Brasil em diferentes contextos, ao fazer críticas sociais e políticas através dos chamados profetas do Apocalipse do Terceiro Mundo, ou melhor, dos Quatro Cavaleiros da história bíblica à imaginação do diretor: O Cristo Negro-Ogum (Antonio Pitanga), O Cristo Índio (Jece Valadão), O Cristo Militar (Tarcísio Meira) e o Cristo Revolucionário (Geraldo del Rey). Ainda existem personagens que permeiam o filme como o lunático empresário estrangeiro Brahms (Maurício do Valle, ator que participou de outros filmes do Glauber), o Diabo (Carlos Petrovich), Aurora Madalena (Ana Maria Magalhães) e a Rainha Amazona (Norma Bengell).

A Idade da Terra foi marcado por polêmicas, tanto por ser lançado durante a ditadura militar no Brasil, quanto pelo seu teor anárquico e controverso. Rocha, que era considerado subversivo pelos militares, planejava inicialmente que seu filme tivesse diversas locações espalhadas pelos quatro continentes (África, Ásia, América e Europa) e que seria estrelado por Jack Nicholson. Ou seja, era um projeto ambicioso. Gerou também confusão no Festival de Veneza, em que Glauber, irritado ao não receber prêmio por seu filme, escreveu uma carta chamada “Um Aviso aos Intelectuais”, em que despeja críticas aos realizadores do evento.

A Idade da Terra é uma obra pretensiosa, sim, foi um fracasso de público e crítica na época e muito difícil de ser vista e apreciada, com sua longa duração de insanidades, portanto complexa, do tipo “Ame ou Odeie”. Nota-se, no entanto, um apuro técnico e visual do diretor magistrais, ao comandar a sua câmera por longos planos, contém uma fotografia bela e uma trilha sonora tão caótica quanto o próprio filme. Destaco o plano inicial com o nascer do Sol (belíssimo, por sinal), ao som de manifestações tribais, o diálogo do Cristo Negro com o escritor Carlos Castelo Branco sobre a ditadura militar no Brasil (aliás, interessante ver esse diálogo e fazer uma alusão às atuais comemorações aos 50 anos do golpe militar de 1964, com uma tentativa falha dos manifestantes ao emular a Marcha da Família com Deus agora em 2014) e as vociferações de Tarcísio Meira ao apontar para dejetos no mar e gritar: “Esta é a cloaca do mundo. Houve uma explosão no centro da Terra. Uma guerra entre seres abissais. Nossos alicerces foram destruídos. A qualquer momento poderemos ser tragados”.

Em conclusão, foi difícil ver A Idade da Terra. Apesar de não ter apreciado, fiquei interessado em ver os outros filmes do diretor e é necessário apontar qualidades a essa obra tão controversa. É um retrato do nosso país na visão lisérgica de Rocha. É um poema visual que contém diversas críticas à política e sociedade. Interessante que há um documentário chamado Anabazys, dirigido por Paloma Rocha e Joel Pizzini, que conta todo o processo de filmagem de A Idade da Terra e até pode tornar o filme mais compreensível. Índios, colonizadores, negros, políticos, revolucionários, messias, militares, arquitetos do apocalipse, esquerdistas, direitistas, personagens constantes nessa obra para ilustrar o nosso tão multifacetado Brasil. Uma viagem indigesta de LSD nas nossas feridas tupiniquins. 
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Ibertson Medeiros é formado em Direito pela URCA, trabalha na Caixa Econômica Federal e possui um fascínio por cinema. Trata o cinema não como uma simples diversão escapista, mas como a verdadeira arte que é. Já possuiu dois blogs sobre cinema (o extinto Cinema para Todos e o paralisado Cinema Lato Sensu).

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 19, de outubro de 2014), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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