terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Marguerite Duras: narrativa erótica e poética



por Amador Ribeiro Neto

Uma mulher e dois homens. Mais um triângulo amoroso na infinita geometria das relações humanas? Sim, se o triângulo não fosse montado pela genialidade absolutamente avassaladora de Marguerite Duras em Olhos azuis cabelos pretos (trad. Vera Adami).

A novela de Duras é apresentada como "um amor impossível entre um homossexual e uma mulher", tendo ao fundo a figura de um jovem estrangeiro — o de olhos azuis e cabelos pretos. O jovem que passa pela vida dos dois num relance. E retorna pelas seguidas invocações da memória.

Se o leitor opta por esta via temática vai debater-se nos ângulos solitários e esvaziados do triângulo amoroso. Duras reduz a condição humana a estilhaços de corpos que não cabem em si. E explodem no nada da existência. Nesta antiperspectiva a novela derrapa e muito pouca coisa tem a dizer. Não é objetivo da autora mergulhar na psicologia das personagens, nem tecer um painel social das mesmas.

Duras tira de letra tratados sobre homo/hétero/bissexualidade. Sabe (e como sabe) que a matéria da literatura não é o assunto, mas a linguagem. Ou, para evitar as dicotomias forma/conteúdo que tanto aperreiam quem lida com literatura, podemos dizer que para a autora a linguagem é o assunto da literatura.

A linguagem como assunto da literatura — um belo princípio que o nouveau roman radicalizou com maestria. Principalmente na figura de Marguerite Duras.

Aqui tocamos a linha dorsal (estrutural) de Olhos azuis cabelos pretos: um texto, antes e acima de tudo, poético. Poético na construção das imagens, nos cortes sintáticos, no ritmo denso e sedutor.

Lê-se esta novela como se lê um longo poema de T.S. Eliot – "The waste land", por ex. Como assim? Sob o sol dos objetos, das cenas, das personagens anônimas em close contínuo. Ao compasso das imagens paratáticas (uma ao lado da outra, justapostas) imprimindo uma lentidão de coito amoroso à narrativa. Imagens do silêncio que se movem entre pausas. Cena de cinema. "Mise en scène" do amor.

O amor movido pela dúvida de personagens sem nome: ele/ela/ele entrelaçam as pontas do triângulo. A falta de definição das personagens, dos cenários, das falas conduz a um campo de luz e sombra absolutos.

O sol, o verão, o branco das roupas, o amarelo-ouro. O pano preto, à noite. Tal como se apresenta, a bipolaridade nos remete às duas narrativas marcadamente delineadas: a marcação teatral (instruções para uma possível representação cênica) e a ação propriamente dita (o campo das personagens). Mas também nos remete ao par junguiano anima/animus. Mas em Duras, sem psicologismos — como já vimos. E, semelhantemente à pintura impressionista, dando pinceladas em um todo que só se entrega à distância.

É preciso estar à distância para que se veja melhor "Olhos azuis..." Como tudo aqui está no mundo do possível e jamais do provável (melhor dizer, do comprovável), o leitor, aceitando as regras poéticas do jogo de Duras, pode ir colhendo índices do texto que remetem à unicidade da personagem. Sim, é provável que não tenhamos três personagens mas apenas um sujeito que se desdobra para melhor construir sua identidade. Que tal ler a novela por aí? É algo a se pensar.

Há textos que permanecem na memória por muito e muito tempo depois de lidos. Ficam como uma sensação de qualidade inominável. Algo que caminha conosco e irrompe na memória nos momentos mais inusitados. Para nosso deleite, susto, surpresa, alegria e medo. Um copo de cólera, de Raduan Nassar, é um deles. Olhos azuis cabelos pretos é outro. "Como um gozo sufocante". Danado de belo e denso e uno e arasador.

Absolutamente genial, é capaz de nos remeter ao cerne da palavra numa viagem orgasmaravalha. E aqui cabe destacar a propriedade e a delicadeza da tradução de Vera Adami, sempre poética. Deixando o texto de Duras ser e estar, sem mais nem menos. Coisa rara.

Com Olhos azuis cabelos pretos Marguerite Duras chega para arrasar. Em 115 páginas de deslumbramentos. Imperdíveis.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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