segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Pudoridades da década de 90



por Hudson Jorge

Era maio e Célio estava sentado num banco de praça colocado embaixo de uma jovem timbaúba em um dos pátios do colégio. Pensativo, com uma vara verde cutucava as folhinhas secas caídas no chão. Seu semblante demonstrava uma certa angústia de alguém que procurava compreender algo.

Célio era um sujeito calado e, apesar da avançada idade para a média da turma do 1º ano (tinha 22 anos numa turma cuja média era 16), demonstrava-se sempre tímido e envergonhado. Fugia de situações. Era um poeta que andava de mãos dadas com o amor não correspondido e a solidão.

Passei por perto, arrodeei o banco e sentei ao seu lado.

— E aí? Beleza?
— Opa! Tudo bem. Digo, acho que tá tudo bem. Assim, tô procurando saber se está tudo bem.
— Hum... E o que pega?
— Rapaz, a Andréa, saca?  Eu tava lá, sentado no meu canto, tentando assistir a aula de química e ela pediu pra eu escrever uma poesia pra ela. E eu escrevi...
— Sim, e isso num é legal?
— Bom, não era uma poesia minha. Era uma letra de Cazuza...
— Olhaí! Querendo arrebatar corações, né, poeta?
— Não era nem isso, não... Mas, ela ficou chateada. Aliás, ficou com raiva e jogou a poesia em cima da minha mesa e ralhou comigo perguntando se aquilo era lá poesia que lhe escreve e terminou com um “Que desaforo!”
— E o motivo, poeta?
— Ainda não tive a coragem de perguntar, disse e ficou com sua varinha verde cutucando folhinhas secas, ainda procurando compreender tudo.

Me levantei e continuei a andar pela escola. Mais à frente lá estava Andrea, sentada em outro banco mexendo nos cabelos impacientemente. Só tinha 16, mas havia horas que parecia ser mulher bem resolvida e determinada na vida. Do auge dos meus também 16 anos, ela me parecia ter uns 25.
E cutuquei a onça:

— E aí Andréa, tudo belezinha?
— Tá sim! Quer dizer... Não, não tá não!

E como quem não sabia de absolutamente nada:
— hahaha também ainda não entendi essas fórmulas de química.
— Não, não, não é isso... Tô aqui só chateada com o Célio. Tu imagina que eu pedi pra ele me escrever uma poesia e ele escreveu umas imoralidades. Tu acha?  Falou um negócio de meu sexo, minhas coxas e ainda disse que me fazia um filho... Tu acha que pode? E ele nem me conhece direito. Achei um desaforo, sinceramente. Que você acha?

Pensei alguns segundos e antes de prosseguir no meu passeio, disse: “Não liga, Andréa, faz parte do show dele”.
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ilustração: Reginaldo Farias

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